INTERLÚNIO - Conto Fantástico - João de Arlekinom

INTERLÚNIO

João de Arlekinom



Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,

vara o estranho solar da Morte e do Demônio

Com as torres medievais as sombras do Interlúnio…”


Interlunar, Maranhão Sobrinho



A Dama da Lua chegou até meu leito certa noite. A última vez que a havia visto foi na doce infância, em muitas eras passadas. Ah, sim! Mas que belas memórias. Esplêndidas lembranças em cores vivas que sussurram gentilezas de momentos distantes, perdidos nas cavernas de minha mente obsoleta. Aos poucos estou deixando de existir, entrando em um estado de autodestruição. Mas ainda podia me lembrar dela, “Moça da Lua” era como ele a chamava nos sonhos. Quando ele brincava nos quintais de ébano, por entre os jardins de tulírias e asílias, ela sempre com ele estava, o fazendo companhia junto de sua corte celeste. Era o gato lunar, o rei dos gatunos de Theran, com sua coroa de madeira cravejada com pedras de seixos; o bobo minguante, o mais engraçado, com seu chapéu de guizos flutuantes, que gostava de dançar alegremente ao som das flautas dos trovadores. Ele tinha ciúmes da Dama da Lua e não deixava que ninguém chegasse perto dela, principalmente eu. Ele não percebia, por ignorância cega, a tirania deste ato.





Mas isto foi há muito tempo, sim… muito tempo. Acredito que deixei todas estas mágoas no passado. É bom vê-la mais uma vez minha amiga. Está sozinha não é? Ele se esqueceu de você… sim, ele se esquecera de ti. Mas eu não perdi minha fé em você. Porque me olha com tanta tristeza? Não preciso de sua pena, meu amor, não preciso de nada mais, além de ti.

Ela veio buscar-me, veio levar-me mais uma vez para seu reino, onde todos são felizes, lá, tudo é doce como o puro mel que escorre dos troncos negros dos bosques de Narg. Podia sentir que era nossa última aventura, seria como nos tempos primevos. Aqueles foram dias de aurora, que se estendia como uma cortina dourada no horizonte sem fim, foram dias de um otimismo tolo e ingênuo, daqueles que deixam os homens dormentes e indefesos ao mal que espreita.

Ela me leva aos prados lunares de cor prata, ela sabe o tanto que gosto daquele lugar, posso ver o Monte Gahtrak se elevar eternamente rumando para além do espaço. Podíamos correr por entre as flores plutonianas. Podíamos ver os rebanhos de cordeirinhos de algodão que flutuavam enquanto os pastores de Quat tentavam levá-los de volta aos cercados, para poderem, então, retornar à suas choupanas rústicas e juntar-se a suas mulheres que os esperavam na lareira. No céu, os meteoros de cristal cortam o manto estelar como milhares de flechas de fogo azul, derretendo nos ermos etéreos até se esvaírem. Os Castelos Brancos! Ah! Quanta majestade onírica existe nestas edificações sonâmbulas feitas de gelo eterno que repousam suas fundações em rochas lunares, coroavam o panorama à frente como verdadeiras preciosidades raras e implantavam sensações de temor naqueles que ousavam apreciá-los!

Atravessamos o vale flutuando e do outro lado havia as colossais mansões dos mercadores de Thruth-Karan; como eu amava aquelas construções portentosas feitas de blocos de mármore, com portas de ouro! Ficavam nas partes mais altas dos montes Sídarin, nos pés desta elevação passava o rio Gyotin, que trazia as embarcações dos senhores de terras distantes, que vinham dos mares da Serenata Sem Fim.

A Dama da Lua é a rainha destas terras infindáveis, desde sempre, mas agora, o que um dia fora um lugar alegre, se tornou um lugar vazio e frio. Nada mais é como fora antes, sim, eu me lembro. Pois tudo antes era melhor. Havia jardins suspensos com milhares de flores trazidas dos infinitos mundos de Teran. E nos campos astrais havia bosques de árvores com grossos troncos cinzentos e delas podia-se comer as famosas frutas de mil sabores. Palácios de vidro flutuavam em absoluto nada. Escadas intermináveis levavam para salões estupendos. A Dama da Lua sempre estava feliz, trazia ao seu Palácio de Gemas os músicos e dramaturgos de todo o Reino dos Sonhos, para que divertissem seus súditos com histórias e canções dos heróis e dos deuses das eras inferiores. Entre todas as mulheres, a Dama da Lua só era superada pela mãe do Cristo em bondade e gentileza. Quando ele a abandonou, eu pude tomá-la para mim e então foi tempo de felicidade e prosperidade. Eu e a minha Rainha da Lua.

Mas tudo está mudado, o reino da Lua está mudo e cego. Onde estão as torres de mármore que havíamos construído? Você se lembra, meu amor? Das fortalezas de maçãs que fizemos nos altos pináculos de Turanôr? Das cidades de chocolate que erguemos nos platôs gelados… Foi um tempo de esperança e criatividade para o nosso povo, eu era rei e você rainha e todos eram felizes. Tudo depois daquele déspota foi de maravilhas. Ali nos picos nevados está a Coruja de Orion em sua gaiola incrustada de joias, em seu estado de eterna reflexão, de imperturbável observação e de perpétua maldição, pois só ela sabe as verdades do passado, presente e do futuro. Os eventos que estão por vir já são de seu conhecimento, mas não é ela que sela o destino dos homens, e sim ele.

Incrustando o sopé do Monte Margot está um vilarejo com casinhas de rubi, coroadas por chaminés de ouro e tetos pontudos. Os homens daquele lugar cantam e dançam músicas estranhas, festejam o amor pela vida e a tristeza pela morte. Eles acreditavam que nunca iria faltar-lhes nada, que tudo sempre ficaria como é, perfeito, mas até mesmo a perfeição não escapa do tempo, este que é o imaculado e asqueroso, devorador de essências e opressor dos seres sencientes. Os homens de Margot não possuem a consciência de que suas vidas têm um fim e, por isto, acreditam que jamais irão morrer.

Agora só há tempos difíceis, tempos de pessimismo. Os palácios de vidro estavam quebrados, todas as flores murcharam e nem mesmo o cravo ou rosa podiam viver felizes. Todos estavam tristes, os lunarianos se tornaram um povo melancólico, perdidos em devaneios sem futuro. A Dama da Lua estava decrépita, foi esquecida em seu trono por ele, mas eu sempre fui fiel a ela: “foi você que me deixou”, eu disse. A mim ela veio, quando se lembrou.

A rainha me leva aos abismos cósmicos de breu infinito, que se prolongam por toda a vida. Caímos dentro do poço da eternidade, voamos pelo éter até a Casa do Alfaiate; lembro-me muito bem deste lugar, lembro-me das roupas que ele nos fazia, eram muito engraçadas e coloridas, feitas de seda e conchas dos mares do Iément. O alfaiate me veste de menestrel e a Dama da Lua ri de mim. Ela disse-me que desejava me levar até um lugar o qual eu sempre desejei, do qual eu sempre pertenci, mas ao qual eu nunca havia estado.

Lembra-se do caminho para a fonte? — perguntou a Dama da Lua, com sua voz tranquila e doce. E mesmo que eu não soubesse do que ela falava, eu podia saber o caminho. Então partimos, por muitos anos caminhamos, passamos pelos bosques sombrios e vagamos nas estradas de safiras, rumo ao Santuário. Ah… o Santuário Lunar, sua arquitetura lembrava os gloriosos templos de moldes jonianos da Atenas da era dourada, com aqueles pilares intermináveis modelados de forma delicada, estátuas pálidas com expressões de horror e malignidade. Os anjos deformados repousavam sobre os frontões dos grandiosos e antigos palacetes, cuspiam e rogavam blasfêmias sobre nós à medida que passávamos em direção ao Santuário. Quando ficamos com sede, bebemos da água pura que jorrava da fonte da vida eterna e quando estávamos famintos comemos as maçãs de mel que o alfaiate havia nos dado para a jornada.

Adentramos o templo lunar pelo grande portal, aquele era o famoso e proibido Santuário, um lugar onde os segredos eram guardados e ali eles morriam. O teto era tão alto que não podíamos vê-lo, somente o escuro flutuava sobre nossas cabeças. Caminhamos pelos corredores grandiosos que levavam às salas secretas, onde os mistérios eram guardados a sete chaves, não ousava eu adentrar nas câmaras frias e úmidas, temia por mim e pela Dama da Lua, pois sabia que o espectro da loucura espreitava cada canto das salas ocultas e bolorentas. Dei-me conta de que jamais deveríamos jamais ter adentrado o Santuário, foi um erro.

Subimos uma escadaria que se prolongava para um andar superior; quando uma porta impediu que pudéssemos prosseguir, a Dama tirou uma chave de sua túnica alva e abriu-a. Ela me levou a um salão vasto, apontou para o centro e foi então que vi, iluminado pelo brilho estelar, um túmulo. No momento em que li as palavras em língua lunariana gravadas na pedra, estremeci e minhas pernas bambearam, perdi o ar de meus pulmões. Sentia uma ira incontrolável tomar conta de mim.

Foi aqui que colocaram o déspota! Que terrível! É isto, então, que merecem os tiranos? É assim que tratam os malévolos? — eu gritava com a Dama Lunar; ela apenas me olhava com um semblante irritado e com os olhos lacrimosos. Ela apontou para a porta, queria que eu me retirasse.

Eu corri, fugi envergonhado e cheio de ódio para fora do Santuário, fui embora pelas estradas infinitas que nunca tinham fim. Os lunarianos zombavam da minha tristeza, gargalhavam com a minha desgraça. Era esta a humilhação que me esperava? Quando olhei para o céu negro e sem fim, ele então me olhou de volta. O Santuário foi apagado, os castelos de gelo derreteram e desapareceram, os palácios desmoronaram, os jardins se esvaíram. E não havia mais Dama da Lua, não havia mais nada. Só o Eterno vazio.


Imagens: P.S./Copilot.

 

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