O ENJEITADO - Conto Clássico Cruel - Roberto Bracco
O ENJEITADO
Roberto Bracco
(1861–1943)
Tradução de autor anônimo do início do séc. XX
…Por fim, antes do dealbar da aurora, o ladrão achou oportuno fazer alguma coisa de producente. Cheio de fadiga e já desanimado de longas caminhadas e de infrutíferas emboscadas, achava-se perto dos jardins da praça Cavour, escuros e desertos como um cemitério, sentado a um banco impregnado de umidade, maldizendo a sua má sorte e olhando os lentos carros que, com o rumor grave e retumbante de suas grandes rodas sobre o calçamento desigual, avançavam entre os imponentes palácios da ampla e velha rua de Foria, dirigindo-se à rua do Museu ou à de Constantinopla.
Por felicidade sua, não passava nenhum carro naquele momento e os que por ali transitavam já acusavam muito ao longe os seus rumores. Então, ele saltou ao flanco de um caminhante de compleição franzina, pôs-lhe um braço ao pescoço e, tendo-lhe seguro, ameaçou:
— Depressa, tudo o que tens contigo!…
Era um homenzinho fraco, incapaz de reagir.
— Não me mates! — suplicou, batendo os dentes de terror e ajoelhando-se, de modo que ainda parecia menor do que era em realidade.
—Tome o relógio e a corrente, mas por piedade, não me faça mal!
—Relógio e corrente não me bastam.
— São de ouro.
—Pouco importa. Preciso de dinheiro.
E o ladrão pôs-lhe um punhal à garganta.
—Espere… Que adianta me matar? Dar-lhe-ei tudo…
—Será o melhor.
Revistou-lhe os bolsos, apressadamente. Tirou um lenço, uma chave, dois cigarros e uma carteira. Devolveu-lhe o lenço e a chave, e despediu-o com calma:
— Vai-te à tua vida, e não voltes. Bom sonho!
A vítima escapou, como caça perseguida, e o assaltante, ansioso por saber o que continha a carteira, saltou a vala que rodeia os jardins e internou-se em uma recôndita avenida de árvores para examinar a presa, sem receio de ser descoberto.
A noite outonal era tranquila e amena; e dispunha-se já o ladrão a abrir a carteira quando a sombra de uma mulher, que deslisava, esgueirando-se entre árvores, fê-lo tremer de susto; porém, ela, assustada também, exclamou, dirigindo-se a ele:
— Não me podes denunciar! Ainda estou aqui… não o havia abandonado ainda… não me podes denunciar!
Em uma pequena escavação do terreno divisava-se um vulto.
—Ah, infame! — sussurrou o ladrão, afogando um grito. — Aquilo é uma criança morta.
— Ainda está viva! — disse ela, pretendendo justificar-se.
—Quero ver.
—Não lhe toques, dorme.
—Dorme?
—Nasceu forte e lindo. Conservei-o quatro dias entre algodões, porque não me podia erguer do leito. Esta noite, porém, não tive coragem para matá-lo.
—E querias enterrá-lo vivo?
—Não, ia confiá-lo à sorte… Tinha pensado: — Quem sabe se Deus misericordioso o salvará?!…
—Mas essa cova? Não a havias aberto para ele? Miserável!
—Não fui eu, juro-te! Já a encontrei aberta. Parecia estar-lhe esperando.
—E tinhas coragem de deixar à intempérie esse anjo?
—Não me podes denunciar, porque eu não o havia abandonado ainda!
—Foras o ser mais infame do mundo e o cárcere seria pequeno castigo para a tua malvadez! Vem.
Ele a segurou por um dos pulsos, para arrastá-la. Ela não se defendeu, mas replicou, ameaçadora:
— Se me denuncias, faço-te prender como ladrão.
Imediatamente ele abriu a mão que lhe prendia o punho e inquiriu calmamente:
— Então, viste-me?
— Sim. Entrei por aquele lado mais escuro e te vi sentado a este banco. Pensei em fugir. Mas, admitindo que fosse um policial, receei que a retirada brusca me comprometesse. Ali fiquei, escondida. Quando te ergueste para assaltar aquele pobre homem, pensei: “— É um gatuno; menos-mal!” Então movi-me também. Enquanto saqueavas, levei o pequeno à vala. Não constava que voltasses, mas claramente se vê que o diabo nos quer unir como pecadores. Voltaste; e, agora, se não te calas tu, não me calo eu. Juntos iremos para o cárcere.
—Tens razão! Mas achas que, por eu roubar, expondo minha vida para manter minha mulher, que é honrada, sou o mesmo que tu, capaz de sepultar vivo o teu próprio filho?
— Eu não tenho ninguém que pense em mim: nem pai, nem marido, nem um irmão, nem um amante. O que me possuiu pela violência, esse é já morto. Trabalho sem descanso, para minha mãe e para mim. Se soubessem que tive um filho, cuspir-me-iam na face e não encontraria mais trabalho. Além de quê, como o criar? Tenho má saúde. A a parteira já me advertiu que qualquer imprudência me pode custar cara e, se eu morro, que será de minha mãe paralítica?
—Ah! — exclamou ele, meio comovido. — As coisas deste mundo nunca saem à medida dos nossos desejos… Tudo ao contrário… Sempre o revés… Mas…
Tirou o gorro, coçou a cabeça e refletiu. Inclinou-se depois sobre a cova e levantou o pequenino fardo, cuidadosamente. A cabecinha do recém-nascido ficou descoberta: tinha os olhos fechados e os lábios entreabertos. Colou o ouvido ao peito da criança e, já convencido, murmurou:
—Não está morto. Respira.
Pousou de novo, no chão, o pequenito. Abriu a carteira. Contou cuidadosamente as notas que ela continha e, falando a si próprio:
—Está bem.
Depois, repetiu secamente as palavras com que costumava dar liberdade aos incautos que assaltava:
—Vai-te à tua vida e não voltes.
—Que tens pensado? — perguntou a mulher em voz baixa e trêmula.
—Levo-o para casa — respondeu ele sem fitá-la, enfiando o gorro. — Melhor estará lá que enterrado vivo. Este dinheiro servirá para alugar-lhe a ama; minha mulher arranjará o mais. Seria capaz de dar os olhos para ter um filho, e sempre se enfada quando me ouve repetir que as coisas deste mundo saem sempre ao contrário do que se deseja. Este não é filho dela, mas é um presente que eu lhe faço. Tem-me aborrecido tantas vezes a dizer que ao menos desejaria criar um enjeitado!… Quando o ouvir chamando-a mamãe, como a pobre ficará contente…
Inclinou-se de novo, e, com cautelas para não despertar o pequenito, tomou-o nos braços. E, como a mulher o contemplasse de perto, com a fisionomia sinistramente atônita, ele insistiu:
—Vais ou não vais?
—Vou-me.
—Pois anda. E olha, que não nos conhecemos. Compreendes? Sim ou não?
—Compreendo.
—Pois, vai-te à tua vida e não voltes.
Ela se adiantou sem voltar os olhos.
O ladrão beijou a fronte da criança.
Fonte: “Leitura para Todos”, edição de novembro de 1919.
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