O LOBISOMEM - Conto Clássico Sobrenatural - Luís Guimarães Júnior

O LOBISOMEM

(Lenda do Norte)

Luís Guimarães Júnior

(1847 – 1898)



Conte-nos uma história, tiazinha. A noite está escura e fria deveras! O vento geme como uma alma desesperada em vãos do telhado e entre as árvores esgalhadas pela beira do caminho. Os pequenos não têm sono e eu ando triste hoje como se tivesse perdido o coração inteiro.

Uma rajada abalou os caixilhos partidos da janela e o velho cão, deitado na cinza, uivou surdamente.

Conte! Conte, tiazinha! Conte uma história! A gente não está com sono hoje, tia! Olhe, fale daquele rei do turbante de ouro e da rainha de cabelos azuis, que mora no fundo d’água!

A velha tossiu, recolheu-se um momento nas suas lembranças fugitivas e disse:

Cheguem todos para junto de mim, vamos. Ponham aquele lampião mais para cá, que a chuva não tarda, e é capaz de apagá-lo. Querem uma história, não é verdade? Uma história de almas do outro mundo?

Nova rajada de vento norte abalou os caixilhos, e o velho cão, deitado na cinza, ergueu a cabeça, uivando surdamente.

Daqui a pouco, Manuel, daqui a pouco o lobisomem da várzea sai da toca e vai correr o fado por estas estradas do além…

Os meninos, assustados, achegaram-se à velha e a moça dos cabelos castanhos ficou levemente pálida.

A chuva pôs-se a cair em grossas e vagarosas gotas sobre o telhado.

O vento zunia furioso como um bando de abutres esfaimados pelas estradas negras, entre os arvoredos estorcidos, partindo-se de encontro às janelas, que pareciam voar em pedaços.

O velho cão erguera meio corpo e uivara lugubremente.

A velha disse:

Eu conheci um moço, meus filhos, um moço de vinte e cinco anos, airoso e forte, branco como uma cera e que parecia um santo. Era um padre…

Estão batendo na porta, tia!

Oh, tia, estão batendo na porta!

A chuva despenhava-se em torrentes.

A moça de cabelos castanhos afagou os cabelos dos meninos, acrescentando:

Continue, tiazinha. Quem bate na porta é o vento e a chuva. Cala-te, Manuel!

E a velha disse:

Era um padre moço, airoso e forte, o padre Serapião do arraial. Dizia missa na igreja da nossa freguesia, e um sermão que ele pregou no dia de Nossa Senhora das Dores fez-me chorar três dias com três noites. Havia naquele tempo uma moça, Maria da Anunciação, que o espírito maligno perdeu para sempre.

A voz da velha tremia murmurando essas palavras.

O vento enfraqueceu a fúria. A chuva continuava pausadamente e o velho rafeiro, baixando a cabeça, adormeceu nas cinzas.

Os meninos, atentos, escutavam. A moça dos cabelos castanhos acariciava a cabeça das criancinhas, tranquilas e boquiabertas.

Maria da Conceição era bonita (Deus me perdoe!) como a imagem da Senhora do Amparo, que está no segundo altar do lado esquerdo da capela. Tinha uns olhos azulados, à feição do céu quando não há trovoada, e um modo de sorrir e chorar que fazia doer a alma dos outros. O padre Serapião…

A voz da velha foi interrompida pelo vento tempestuoso, que zunia com mais fúria, acompanhado de sete relâmpagos.

As crianças achegaram-se mais e a moça dos cabelos castanhos escondeu os olhos, balbuciando:

Virgem Santíssima, protegei-nos!

O velho cão, envolto nas cinzas, dormia profundamente.

O padre Serapião era um rapaz bonito e triste. Satanás quis perdê-lo e… um dia, Maria da Anunciação deixou a mãe dormindo, doente, na cama, o irmãozinho a morrer, para ir ser das desgraçadas mulheres deste mundo de Deus!

A moça dos cabelos castanhos pendeu a fronte, como a flor de jabuticaba quando o Sol está ardente e a chuva escasseia no céu.

Os meninos, que não compreendiam, escutaram a velha com um grande sorriso na boca inocente.

O vento ora gemia, ora suspirava, sumindo-se pelos côncavos do morro e nas sinuosidades dos caminhos obscuros.

A coruja, amedrontada, gritou sete vezes entre os galhos do espinheiro isolado.

O velho rafeiro ofegava, dormindo profundamente.

Nunca mais se ouviu falar em de Maria da Anunciação, nem do padre. Também ninguém passava mais pela casinha do José Caboclo, perdida na encruzilhada do mato grande. Ali moravam, debaixo da maldição de Deus, Maria e Serapião.

Morreu a família toda, pai, mãe, menos Maria, e, por todo espaço de seis anos, perdeu ela seis filhos machos, que Deus rejeitava por serem filhos do pecado negro.

O sétimo é que nasceu, viveu e cresceu para ser a figura da desgraça e do crime, Jesus!…”

Os meninos começaram a chorar de medo. A moça dos cabelos castanhos olhava desconfiada para a porta.

O velho cão levantou o corpo da cinza morna e prestou ouvido a misteriosos rumores. Um ou outro som longínquo cortava o espaço tempestuoso: eram as primeiras badaladas da meia-noite na alva torre da freguesia afastada.

As torrentes mugiam e o vento passava como um turbilhão irresistível.

Continue, tiazinha — disse a moça com a voz trêmula e suave.

Ao ruído monótono da chuva, prosseguiu a velha, tossindo, de espaço em espaço:

Maria da Anunciação ficou sendo uma mulher como muitas, que andam por aí a gemer na miséria e longe do amor de Jesus…

Por que, tiazinha? Por quê? — perguntaram os meninos, agarrando-se à saia da velha narradora.

A moça dos cabelos castanhos não perguntou nada; limpou tristemente uma lágrima silenciosa.

Pobre da Maria da Anunciação!… Quando a desgraçada da Ângela acordou de manhã cedo e chamou pela filha… Deus do céu!

Então, tiazinha?!

Ela já não vivia em casa meus filhos. O demo tinha-a carregado!…

A moça dos cabelos castanhos rezava a oração de todas as noites, fria dos pés até a ponta dos cabelos.

As crianças agrupavam-se, receosas, acotovelando-se umas às outras. A velha cruzou as magras mãos sobre o peito e recolheu-se um momento.

A tempestade continuava mais irascível e tenebrosa. A chuva, impelida pelo vento, atravessava as frestas e borrifava a poeira do pavimento da cabana.

O velho cão eriçou o pelo sinistramente e desprendeu um latido trêmulo. Os tições do brasido apagaram-se te todo.

O padre Serapião pregou só uma vez mais na sua vida. Foi no dia da festa da Senhora do Amparo. A capela da freguesia estava apinhada de povo. O padre subiu à tribuna, magro e triste como um defunto. O povo começou a resmungar quando serapião fez o sinal da cruz, com os olhos pregados no santo lenho do Senhor.

“— Aquela alma danada!

Credo! Ainda tem coragem de falar na casa de Deus! Já viram coisa assim?

A voz do padre era mais fraca do que sempre: parecia o gemido de quem está se despedindo desta para melhor vida. O povo resmungava, resmungava, resmungava.

O pai de Maria da Anunciação estava na igreja também. Chorava, olhando para o padre que o tinha feito mal-aventurado pelos restos de seus dias…”

Os relâmpagos cruzavam-se sete vezes no ar com incrível rapidez. A trovoada roncava ao longe. Ouvia-se o sussurro das árvores, desgrenhadas pelo vento, e o barulho da água pelos caminhos lamacentos.

O velho cão dormia, grunhindo na cinza.

Quando a gente mal esperava, entrou na igreja Maria da Anunciação.

A mulher viu o pai e, branca como uma morta, quis ir ter com ele.

Pediu licença para passar. As mulheres olharam para ela e não se mexeram.

O padre Serapião nesse momento virava os olhos para a entrada da capela. Viu Maria e a palavras suspendeu-se-lhe na boca meio aberta.

Quando a pobre mulher conheceu que todos estavam de olhos presos nela, gritou:

“— Santo nome de Jesus, protegei-me!

E caiu sem sentidos para trás!”

Os meninos, de olhos úmidos e seio ofegante, seguiam a triste narração.

A moça dos cabelos castanhos debruçou a cabeça com o maior desespero deste mundo. Pareceu-lhe ver na penumbra o vulto silencioso de Maria da Anunciação, coberto de luto e de lágrimas eternas.

A tempestade aproximava-se novamente, ecoando de morro em morro e reboando sinistra como uma ameaça divina.

As aves da noite gemiam, metidas pelos ramos inundados d’água.

O sétimo filho de Maria da Anunciação é hoje o lobisomem da várzea.

Meu Deus!

Porque o espírito maligno escondeu-se no corpo do sétimo filho macho do padre pecador, para fazer um só purgar os crimes da família toda.

Serapião e Maria morreram, não se sabe como, e os seus corpos não tiveram sepultura, nem rezas, em lágrimas de ninguém. A casinha da encruzilhada caiu em ruínas e o lobisomem corre o fado há três anos, todas as noites depois da…

As últimas badaladas da meia-noite gemeram piedosamente no espaço sombrio.

O vento zunia mais desenfreado e o velho cão lançou-se à porta latindo, com o pelo hirsuto e as pernas bambas.

As crianças, gritando, esconderam o rosto no seio da tia.

A moça, pálida e amedrontada, abraçou-se à velha narradora, enquanto uma nuvem de cabelos castanhos derramava-se-lhe ao longo das costas virginais.

O sino da freguesia lançara à eternidade o último som da meia-noite.


Fonte: O Guarani/RJ, edição de 14 de maio de 1871.

Fizeram-se brevíssimas adaptações textuais.

Imagem: PS/Copilot.



 

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