O MÁRTIR - Conto Clássico Cruel - Gabriele d’Annunzio
O MÁRTIR
Gabriele d’Annunzio
(1863 – 1938)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
Ao cair da tarde, o lugre Trinità, com carga de trigo, levantou âncora com destino à Dalmácia. O navio desceu o rio tranquilo, por entre as barcas de Ortona, ancoradas em fileira, enquanto as luzes se acendiam em terra e os marinheiros cantavam de volta ao porto.
Depois de ter atravessado lentamente a estreita embocadura, o lugre alcançou o Adriático.
O tempo era bonançoso. Num céu de outubro, a Lua cheia, quase à flor da água, era como lâmpada suspensa lançando uma claridade doce e rósea. Para trás, as montanhas e as colinas tomavam atitudes de mulheres deitadas. Voos de gaivotas passavam silenciosos no alto e desapareciam.
Primeiramente, os seis marinheiros e o grumete manobraram de maneira a apanhar o vento de feição. Depois, logo que a brisa enfunou as velas tintas de vermelho e ornadas de figuras toscas, os seis homens sentaram-se e começaram a fumar tranquilamente. O grumete, a cavalo na proa, pôs-se a cantar uma cantiga da sua terra.
Talamonte, o mais velho, esguichando a saliva por entre os dentes, e metendo novamente o cachimbo na boca, disse:
― Este bom tempo não dura muito!
A esta profecia todos olharam ao largo, sem dizer palavra. Eram marinheiros robustos e aguerridos nos trabalhos do mar. Muitas vezes tinham navegado para as Ilhas Dálmatas, e para Zara, Trieste e Spálatro. Conheciam bem o caminho. Mais de um tinha saudades das frutas das ilhas e daquele bom vinho de Dignano, que tem o sabor de rosas.
O mestre do lugre era Ferrante La Selvi. Os dois irmãos Talamonte, Cirù, Massacese e Gialluca, todos naturais de Pescara, compunham a tripulação. O grumete chamava-se Nazareno.
Como era lua cheia, os homens demoraram-se no tombadilho. O mar estava semeado de barcos de pesca. A cada instante algum deles passava junto ao lugre e os tripulantes trocavam algumas palavras com familiaridade. A pesca parecia correr bem. Passados os barcos, Ferrante e Talamonte desceram à câmara para descansar. Massacese e Gialluca, acabados os cachimbos, fizeram o mesmo. Cirù ficou de quarto na ponte.
Antes de descer, Gialluca pôs um dedo no pescoço e disse para o companheiro:
― Olha, vê lá o que eu tenho aqui!
Massacese respondeu:
― Isso não é nada. Não faças caso.
Era um pontinho vermelho parecido com uma mordedura de inseto. E no meio havia uma borbulha pequena.
Gialluca acrescentou:
― Está doendo.
*
De noite, o vento mudou de rumo e a vaga começou a engrossar. O lugre pôs-se a dançar sobre as ondas, que o arrastavam para leste, fugindo ao rumo náutico. Durante a manobra, Gialluca dava pequenos gritos, de vez em quando, porque cada movimento rápido da cabeça causava-lhe dor viva.
Ferrante La Selvi perguntou:
― Que tu tens?
Gialluca, à luz da madrugada, mostrou onde lhe doía. A nódoa vermelha alastrara-se e, no centro, percebia-se a ponta de um tumor pequeno.
Depois do exame, Ferrante disse, também:
― Isso não é nada. Não faças caso disso.
Gialluca pegou um lenço e embrulhou o pescoço. Depois, pôs-se a fumar.
O lugre, açoitado pelas vagas e arrastado pelo vento contrário derivava para leste. O ruído do mar cobria as vozes. De tempos a tempos uma onda vinha quebrar-se no convés, rugindo surdamente.
À tarde, a borrasca declinou, e a Lua emergiu da água como uma cúpula de fogo. Mas o vento tinha caído. E, na calmaria, o lugre ficou quase estacionário, com as velas distendidas. Por vezes, soprava uma brisa passageira.
Gialluca gemia da dor. Os companheiros, não tendo mais nada que fazer, pensaram em ocupar-se do doente. Cada um indicava remédio diverso.
Cirù, como mais antigo, tomou iniciativa e propôs um emplastro de mel e farinha. Tinha vagos conhecimentos de curandeiro porque, em terra, a sua mulher exercia simultaneamente a medicina e as artes mágicas, e tratava de doenças com drogas e feitiços. Mas não havia nem farinha nem mel. E certamente a bolacha de bordo não seria eficaz.
Então Cirù tomou uma cebola e uma mancheia de trigo. Pisou o trigo, cortou em pedaços a cebola e compôs o emplastro. Ao contato desta mistura, Gialluca sentiu que as dores aumentavam. Um quarto de hora depois arrancou a ligadura e deitou tudo ao mar, cheio de impaciência e irritação.
Para vencer a dor, subiu à ponte e durante muito tempo foi à roda do leme. O vento levantara-se. As velas palpitavam alegres. Na claridade da noite, distinguia-se no horizonte uma ilhota, certamente Pelagosa, que parecia uma nuvem pousada sobre as águas.
De manhã, Cirù, que tomara a peito a doença de Gialluca, quis examinar o tumor. A inchação tinha aumentado e ocupava grande parte do pescoço, tomando nova forma e cor mais escura que, do ponto central, tendia para o violeta.
― Ai! O que é isto? ― exclamou ele, perplexo, com um tom de voz que fez estremecer o doente. E chamou Ferrante, os dois Talamonte, todos os companheiros.
Várias foram as opiniões. Ferrante imaginou um mal terrível que talvez sufocasse o infeliz. Gialluca, com os olhos arregalados, um pouco pálido, ouvia com atenção os prognósticos. O céu cobria-se de nevoeiro. O mar assumira um aspecto sinistro e bandos de gaivotas forcejavam por alcançar a costa, adejando velozes, soltando gritos. Tudo isto penetrou a alma do desgraçado de um terror vago.
Finalmente, o jovem Talamonte disse, sentencioso:
― É uma pústula maligna.
Os outros se apavoraram.
― É, é possível.
Efetivamente, no dia que se seguiu, serosidades sanguinolentas levantaram a película do tumor, que rebentou. E toda região doente tomou o aspecto de um ninho de vespas, donde o pus corria abundante. A inflamação e a supuração iam-se aprofundando, alastrando-se com rapidez.
Gialluca, aterrado, invocou São Roque, advogado das feridas. Prometeu dez libras, vinte libras de cera. Ajoelhado no meio do tombadilho, o pobre marinheiro erguia os braços ao céu, fazendo suas “promessas” com gesto trágico, nomeando o pai, a mãe, a mulher, os filhos.
Em torno, os companheiros, a cada invocação, benziam-se com modo grave.
Ferrante La Selvi, que sentia aproximar-se um tufão, lançou um grito de comando, em voz rude, no tumulto do mar. O lugre inclinou-se para um lado. Massacese, os Tamamonte e Cirù precipitaram-se para a manobra. Nazareno subiu a um mastro. Num instante, foram colhidas as velas, ficando somente dois cutelos. E o lugre, quase em árvore seca, principiou uma corrida louca sobre as vagas.
― São Roque me valha! São Roque me valha! ― gritava Gialluca com crescente fervor, comovido também por toda aquela algazarra, curvado sobre o joelho e sobre as mãos para resistir ao balanço.
Por instantes, uma vaga mais forte vinha quebrar-se de encontro à proa e a água varria o convés em todo o comprimento.
― Vai lá para baixo! ― gritou-lhe Ferrante.
Gialluca desceu à câmara. Sentia um calor, uma ardência terrível em toda a pele. E o medo da doença oprimia-lhe o peito. Sob o convés, com a luz mais fraca, as formas, as coisas tomavam aspectos singulares. Ouviam-se as pancadas surdas das ondas contra o costado do navio e o estalar de todo o cavername.
Meia hora depois, Gialluca subiu ao tombadilho, tão abatido como se saísse da tumba. Gostava mais de estar ao ar livre, expondo-se ao nevoeiro, ver os homens, respirar o vento.
Ferrante, surpreendido pela sua palidez, perguntou-lhe:
― Mas o que tu tens?
Os outros marinheiros, sem abandonarem os postos, puseram-se a discutir remédios, em voz alta, quase gritando, para dominar o estrépito temporal. E animavam-se, cada um preconizando um método diferente. Doutores não teriam discursado com tanta afoiteza. A polêmica fazia-os esquecer o perigo.
Dois anos antes, Massacese tinha assistido a uma operação feita por um verdadeiro médico num caso análogo, na ilharga de Giovanni Margadonna. O médico havia lancetado a pústula. Depois, esfregara-a com pedacinhos de madeira untados de um líquido fumegante. E, finalmente, com uma espécie de colher, tirara a carne queimada, que apresentava a aparência de café molhado.
Margadonna escapara com vida.
Massacese ia-se exaltando, e repetia com uma insensibilidade de cirurgião:
― Precisamos corta isso! Precisamos cortar isso!
E, com a mão na direção do doente, fazia gesto de quem corta.
Cirù era da opinião de Massacese. Os dois Talamonte acabaram por concordar também. Só Ferrante La Selvi abanava a cabeça.
Finalmente Cirù apresentou a proposta a Gialluca. Mas Gialluca não queria consentir.
E Cirù, fora de si, com um arranque brutal, que não pôde dominar, exclamou:
― Ah, não queres? Pois então morre aí!
Gialluca empalideceu mais e olhou para o companheiro com os olhos pasmados de terror.
Caía a noite. Por causa da escuridão, dir-se-ia que o mar bramia com mais fúria. As vagas, passando na luz projetada pelo farol da proa, chispavam clarões. A terra estava longe. Para resistirem aos embates do mar, os marinheiros agarravam-se às cordas. Ferrante estava ao leme e, de tempos em tempos, a sua voz bradava no meio da tempestade:
― Vai para baixo, Gialluca!
Mas uma estranha repugnância pela escuridão impedia Gialluca de descer, agoniado que estava. Também ele se agarrava às cordas, com os dentes rilhados de terror. A cada vez que uma massa de água chegava, os marinheiros abaixavam a cabeça e soltavam um grito, todos juntos, como fazem os operários quando no trabalho combinam um esforço comum.
A Lua, saindo dentre as nuvens, diminuiu o horror. Mas o mar continuou bravio toda a noite.
De manhã, Gialluca, fora de si, disse aos companheiros:
― Cortem-me esta pústula!
Primeiro, os marinheiros combinaram gravemente, numa espécie de conselho deliberativo. Depois, examinaram o tumor, agora da grossura de um punho fechado. As crostas que dantes lhe davam o aspecto de um ninho de vespas ou de um crivo, agora formavam apenas uma única úlcera.
Massacese disse:
― Vamos lá! Haja coragem!
Era a ele que tocava a parte de cirurgião. Experimentou na unha o gume das facas e acabou por escolher a do Talamonte mais velho, porque estava recém-afiada. Repetiu:
― Vamos lá! Haja coragem!
O doente agora parecia profundamente entorpecido, assombrado: olhos fitos na faca, boca entreaberta, mãos caídas ao longo do corpo, como idiota.
Cirù fê-lo sentar, tirou-lhe a ligadura e, com os beiços, fez instintivamente o ruído que indica o nojo.
Todos se inclinavam para a ferida, silenciosos, atentos. Massacese disse:
― Por aqui e por ali.
E indicava com a ponta da faca a maneira por que era necessário cortar.
Então, de repente, Gialluca desatou a chorar. Todo o corpo lhe tremia, sacudido de soluços.
― Coragem, coragem! ― repetiam os marinheiros, segurando-o pelos braços.
Massacese cortava devagar, mas com mão certeira, tendo a ponta da língua fora da boca, como costumava sempre que queria fazer qualquer coisa difícil com atenção. Mas o navio tinha um balanço terrível, e a incisão fazia-se de modo irregular. A faca ora cortava de menos, ora de mais. Uma onda mais forte fez enterrar o ferro na carne sã. Gialluca gritou pela segunda vez e debateu-se todo cheio de sangue, como um animal na mão dos carniceiros. Já não queria prosseguir naquilo.
― Não, não, não! ― urrava.
― Não te mexas! ― Não te mexas! ― gritava Massacese por trás dele, teimando agora em continuar o seu trabalho, com medo de que a incisão interrompida não fosse agravar ainda mais o perigo.
O mar, sempre bravo, bramia em torno do navio, sem descanso.
Nuvens em forma de trombas marinhas subiam do extremo horizonte e invadiam o céu, de onde as aves tinham desertado.
No meio do estrépito, na luz duvidosa da manhã, uma excitação estranha apoderava-se daqueles homens. Na luta para segurar o ferido, sentiam-se involuntariamente tomados de cólera.
― Não te mexas!
Massacese deu ainda quatro ou cinco golpes. Sangue misturado com matéria esbranquiçada escorria das feridas. Estavam todos manchados, a não ser Nazareno que, tremendo, se conservava na proa, no espanto daquele espetáculo atroz.
Ferrante La Selvi viu que o navio estava em perigo e gritou uma ordem de comando:
― Larga as escotas! Vira de bordo!
Os dois Talamonte, Massacese e Cirù executaram as manobras. O lugre chegou-se ao caminho balouçando de popa à proa.
Longas estrias luminosas, rompendo dentre as nuvens, caíam do Sol sobre as águas, e mudavam segundo as vicissitudes do céu.
Ferrante ficou ao leme. Os outros voltaram para junto de Gialluca. Era preciso limpar as incisões, queimar a carne, pôr fios.
Agora, o operado estava em prostração profunda. Parecia não entender coisa alguma. Olhava para os companheiros com olhos sem luz, envidraçados, semelhantes aos dos animais que vão à degola.
De tempos a tempos repetia, como se falasse consigo mesmo:
― Estou morto! Estou morto!
Cirù, com um bocado de estopa grossa, procurava limpar a ferida. Mas tinha uma mão pesada e a irritava.
Para seguir até as últimas o cirurgião de Margadonna, Massacese aguçava atentamente os bastonetes de pinho.
Os dois Talamonte tratavam do alcatrão, pois com esta substância tinham decidido cauterizar a ferida. Mas não havia meio de acender o fogo no convés, inundado pela água a cada instante. Os dois Talamonte desceram à câmara.
Massacese gritou a Cirù:
― Lava com água salgada!
Cirù seguiu o conselho. Gialluca sujeitava-se a tudo, soltando gemidos constantes, tiritando. O pescoço tornara-se enorme, muito vermelho, quase roxo em alguns locais. Em torno dos cortes já despontavam nódoas escuras. O doente respirava e engolia com dificuldade. A sede atormentava-o.
― Encomenda-te a São Roque ― disse Massacese, que acabara de aguçar as varinhas e estava à espera do alcatrão.
O lugre, empurrado pelo vento, desviava-se agora para o norte, para as bandas de Sobenico, e perdia a ilha de vista. Mas, apesar de haver vagalhão, o temporal parecia perto de acabar. O Sol brilhava em pleno céu, entre nuvens cor de ferrugem.
Os dois Talamonte trouxeram um vaso cheio de alcatrão fumegante.
Então, para renovar a sua promessa a São Roque, Gialluca pôs-se de joelhos. Benzeram-se todos.
― Ó, senhor São Roque, sede meu salvador! Prometo-vos uma lâmpada de prata, azeite para todo o ano, e trinta libras de círios. Ó meu rico santo, sede meu salvador, porque tenho mulher e filhos… Piedade, misericórdia! Senhor São Roque, valei-me!
Gialluca estava de mãos postas e falava com uma voz que não parecia a sua. Depois, sentou-se e disse simplesmente a Massacese:
― Vamos! Anda lá!
Massacese enrolou pedaços de estopa em volta dos bastonetes de pinho, mergulhou-os um a um no alcatrão fervente, e sucessivamente esfregou a ferida com cada um deles. Gialluca não soltou um gemido. Os outros estremeciam à vista deste suplício.
Do seu posto, Ferrante La Selvo disse, sacudindo a cabeça:
― Vocês deram cabo dele!
Desceram Gialluca à câmara, meio morto, e o colocaram num beliche. Nazareno ficou junto a ele, de enfermeiro. Ouvia-se em cima o grito gutural de Ferrante, comandando a manobra e os passos precipitados dos tripulantes. O Trinità reagia todo ao virar de bordo. De repente, Nazareno percebeu que o navio fazia água. Gritou, chamando os companheiros. Os marinheiros desceram imediatamente. Gritavam todos ao mesmo tempo e trabalhavam furiosamente para calafetar a fenda do casco. Parecia que o barco ia afundar.
Apesar da prostração física e moral, Gialluca ergueu-se no beliche, imaginando que iam a pique, e agarrou-se desesperado a um dos Talamonte. Suplicava, frágil como uma mulher:
― Não me deixem! Não me deixem!
Acalmaram-no, fizeram-no deitar de novo. Agora ele tinha medo. Balbuciava palavras sem sentido. Chorava. Não queria morrer.
Como a inflamação lhe tinha invadido todo o pescoço e toda a nuca, chegando já ao tronco, e como a inchação se tornava enorme, o desgraçado parecia sufocar.
― Levem-me para cima! Sinto falta de ar! Se ficar aqui, morrerei!
Ferrante chamou os homens ao tombadilho. O lugre bordejava, único meio de aprumar o rumo, mas a manobra era difícil. Com o leme em punho, o mestre espiava o vento e dava as ordens necessárias. À medida que a noite se aproximava, o mar ia-se pondo manso.
Ao fim de algum tempo, Nazareno subiu ao convés, todo transtornado, gritando:
― Gialluca está morrendo! Gialluca está morrendo!
Os marinheiros correram e acharam o companheiro já morto no beliche, todo decomposto, os olhos abertos, a face entumecida como a de um enforcado.
O Talamonte mais velho disse:
― E agora?
Os outros calaram-se, pasmados diante do cadáver.
Subiram todos em silêncio ao convés. Talamonte repetia:
― E agora?
O dia abandonava lentamente a superfície das águas. A calma descia na atmosfera. Pela segunda vez, largaram as velas e o navio ficou de capa. Estavam à vista da ilha de Solta.
Reunidos à proa, os marinheiros discutiam os acontecimentos, muito inquietos, com apertos de coração. Massacese estava pálido e pensativo. Observou:
― E se disserem que fomos nós que o matamos? Estamos metidos numa dos diabos!
O mesmo receio já atormentava o espírito de toda aquela gente supersticiosa e desconfiada. Alguém respondeu:
― Tens razão.
Massacese insistiu:
― E então? O que haveremos de fazer?
O Talamonte mais velho respondeu simplesmente:
― O rapaz está morto, não está? Vamos jogá-lo ao mar. E diremos que foi durante o temporal que o mar o levou... Com certeza, é o melhor a fazer.
Os outros aprovaram. Chamaram Nazareno.
― Olha lá, ouviste? Nem um pio! Mudo como um peixe!
E, com gesto ameaçador, selaram-lhe o segredo na alma.
Depois, desceram para trazer o cadáver. As carnes exalavam um cheiro fétido. A cada estremeção, matérias purulentas escorriam.
Massacese disse:
― É preciso metê-lo num saco.
Foram buscar um. Mas, como o cadáver não cabia de todo, amarraram o saco pela altura dos joelhos, deixando o resto das pernas de fora. Instintivamente, ao praticarem a fúnebre operação, olharam em volta do navio. Nem uma só vela se avistava. Depois da borrasca, o Adriático tinha uma ondulação larga, muito igual. Ao fundo via-se a ilha de Solta, toda em azul.
Massacese disse:
― Ponhamos também uma pedra.
Escolheram um pedregulho e amarraram-no aos pés de Gialluca.
Massacese disse:
― Vamos com isto!
Levantaram o cadáver à altura da cinta do navio e fizeram-no passar por cima da borda. A água fechou-se agitadamente. O corpo desceu primeiro com uma oscilação lenta; depois, desapareceu.
Os marinheiros voltaram à proa, à espera que o vento se pusesse a favor. Fumavam calados.
A cada momento, Massacese fazia um gesto inconsciente, como sucede às pessoas que estão a refletir.
Levantou-se o vento. As velas palpitaram um momento e inflaram. O Trinità partiu em direção a Solta. Depois de duas horas de rápida navegação, o navio dobrou no canal.
A Lua iluminava a margem. O mar tinha quase uma tranquilidade de lago. Dois navios saíam do porto de Spálatro, e vieram cruzar-se com o lugre. As tripulações cantavam.
Ouvindo a cantiga, Cirù disse:
― Olha! São de Pescara!
Vendo as figuras e as letras de conta inscritas nas velas, Ferrante observou:
― São os lugres de Raimonde Calare…
E falou com os compatriotas.
Estes responderam-lhe com alegres brados. Um dos navios levava figos passados, outro tinha um carregamento de jumentos.
Quando o segundo barco passou a poucas braças do Trinità, trocaram-se saudações.
Uma voz gritou:
― Oh, Gialluca! Onde diabos se meteu Gialluca?
Massacese respondeu:
― Nós o perdemos no mar, durante o temporal. Participem o fato à mãe dele!
Diferentes exclamações partiram do barco carregado de jumentos. Depois disseram adeus uns aos outros.
― Adeus! Adeus! A Pescara! A Pescara!
E, ao afastarem-se, as tripulações recomeçaram suas cantigas ao doce clarão da Lua…
Fonte: A Leitura – Magazine Literário, vol. XI, Lisboa, 1895.
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