A MESA DO DIABO - Conto Clássico de Horror - A. F.

A MESA DO DIABO

A. F.

(Séc. XIX)

Tradução de autor desconhecido do séc. XIX



Saint-Mihiel é uma linda cidadezinha de Lorena, muito agradável por suas recordações históricas, por seus contornos e habitantes. Aí passei o ano passado quarenta e cinco dias deliciosos; e creio que desejaria aí morar toda a minha vida.

Esta cidade é rodeada por colinas muito elevadas. Sobre uma delas, encontram-se ainda vestígios dum campo romano. Outra possui raros restos dum antigo castelo-forte, cuja arquitetura, em partes perfeitamente conservada, lembra o estilo simples da Idade Média. Pela parte meridional se prolongam os montículos coroados por maneira mui pitoresca. Pedras enormes estão suspensas sobre a estrada de Verdun; e sua massa escalvada e escura é bela nos dias claros e se cobre de cores sombrias nos dias tempestuosos.

Diversos fenômenos têm sucessivamente impresso nestes rochedos sua lembrança indelével: aqui as lentas destruições do tempo despiram as anfractuosidade da pedra; mais longe, as ondas do mar destruíram a parte superior que os caprichos do acaso revestiram depois de formas fantásticas. Por toda a parte, desenvolve-se a imensidade dos tempos, e a vista, depois de se ter abatido tristemente sobre esse minguado fio d’água que murmura sua agonia ao pé da pedra, se levanta e vai perguntar aos céus qual inteligência pôde expelir para tão longe de seu primeiro leito um oceano inteiro, sem haver, ao mesmo tempo, destruído o sistema harmônico que rege o Universo.

Algumas destas sumidades graníticas têm, até hoje, resistido às exploradoras tentativas do homem; outras, mais acessíveis, estimulam a curiosidade do viajante, que encontra na magnífica variedade dos sítios que a cercam ampla remuneração às fadigas de sua viagem. Entre estes, porém, há um sobretudo célebre pelas tradições locais, e que seguramente merece toda a atenção dos naturalistas. Sua conformação oblonga, sua superfície lisa e polida a assemelham à tábua duma mesa, que é sustentada em sua posição horizontal por uma coluna de pedra que se prende vigorosamente e faz parte da rocha principal. Esta semelhança acidental com um dos nossos móveis mais comuns lhe deu o nome que tem; e, depois, o maravilhoso, tendo, por fim, conseguido apossar-se da credulidade dos camponeses, fê-la a Mesa do Diabo, que é o lugar de parada de todo o exército infernal. Quantas vezes as boas mulheres de Saint-Mihiel têm visto essa mesa diabólica iluminar-se espontaneamente lá por essa meia-noite! Quantas vezes têm elas ouvido a voz rouca de Satanás entoar um cântico de sabá, presidindo a uma orgia à qual assistiam seus negros acólitos! Vivo sentimento de temor se apodera dos autóctones quando se atrevem a aproximar-se do lugar temido; e, bem que não seja muito difícil subir até o ponto mais elevado da pedra, nunca o pé supersticioso dum natural de Saint-Mihiel se aventurou a pisar a pedra maldita onde se assentam os agentes de Belzebu.

Nós, soldados, que somos assaz desgraçados por não havermos compartido a fé cândida que povoou o universo de feiticeiros e mágicos, nós que procuramos com os olhos da razão descobrir a causa dos acontecimentos sobrenaturais que impõem à multidão, projetamos um dia, dando grande escândalo às velhas da cidade, ir cear à mesa satânica. Éramos oito bons diabos, muito capazes seguramente de nos defender contra a milícia do Inferno, mesmo quando Sua Majestade, o príncipe das trevas, julgasse conveniente tentar alguma sortida contra os violadores de seu domínio. Uma noite, depois de nos havermos fornecido dalgumas carnes frias e de um número suficiente de garrafas de Bar-leDuc, pusemo-nos alegremente em caminho, protegidos por uma noite sombria e nebulosa. Algum risco corremos para subirmos um após do outro ao pico terrível, porquanto a obscuridade fazia perigosa a empresa. Vencemos, porém, felizmente todos os obstáculos e, graças ao fósforo que levamos, a chama de vinte pequenos castiçais apareceu brilhante e dourada no meio das trevas que nos cercavam.

Nossa ceia se passou o melhor possível. Orgulhosos por havermos dado cabo a tão grande aventura, propunhamo-nos a fazer dela objeto duma história mais espantosa do que todas as outras, quando uma singular aparição veio, de repente, fazer calar em nossas almas um sentimento de confusão e terror. Não posso, todavia, dar conta do que se passava em meus camaradas, mas confessarei que, por alguns momentos ao menos, me achei dominado pelo medo a ponto de fixar os olhos involuntariamente, temendo encontrar-me face a face com a legião infernal de que um instante antes nos ríamos de tão boa vontade.

Era um corpo alto, magro, macilento e descarnado; raros cabelos brancos caíam em desordem por seu pescoço de bronze, e seus olhos, que horrivelmente se prendiam em um rosto só composto de ossos, se dirigiam para nós com estranha expressão de estúpida curiosidade. Farrapos de vestidos a cobriam apenas. Era urna mulher. Este hediondo esqueleto se aproximou da mesa. Sua mão descarnada se estendeu sobre a pedra, que em vão procurava abalar. Depois, uma voz, que parecia sair de uma caverna, vibrou nos ares:

Satanás, que fizeste de minha filha?

É a noiva do diabo — disse um dos nossos camaradas, voltando de espanto.

Seguiu-se geral explosão de gargalhada. Quanto a mim, não tenho hoje vergonha de dizer: eu estava comovido.

Satanás, que fizeste de minha filha? — repetiu a mesma voz.

Vejamos se a podemos reter— continuou Lescot. —Esta infeliz é louca, mas tem às vezes lúcidos intervalos. Se conseguirmos tirar-lhe a desconfiança, talvez nos contará a catástrofe que a privou da razão. Além disso, ela não tem outro recurso que não seja a pública beneficência, e será uma boa ação dar-lhe algum socorro.

Desceu, então, da mesa de pedra sobre que estava sentado e procurou chegar-se para a desgraçada mulher; mas esta, cujo olhar convulsivo tinha observado todos os seus movimentos, deu alguns passos para trás, atirou-se resolutamente para a parte inferior da pedra e desapareceu. Julgamos que se houvesse espedaçado na queda. Felizmente, ela mesma dissipou nossos receios, porque em dois ou três minutos, sua voz rouca atravessou o nosso espaço e nos fez esta despedida:

Satanás, faltaste à tua promessa. Pediste-me minha filha, dei-a para achar seu pai e o seu pai não voltou. Amaldiçoado sejas, Satanás; Satanás, amaldiçoado sejas!

Dificilmente ouvimos estas últimas imprecações, porque a voz se ia ouvindo cada vez mais longe.

Esta inesperada cena nos havia incomodado e, a despeito dos inoportunos esforços de muitos de ente nós, a conversação se tornou fria e lânguida. Aproveitei-me desta circunstância para convidar Lescot a contar-nos a história da louca. Lescot não se fez de rogado e começou nestes termos:

Júlia Larue é uma dessas vítimas de amor sobre as quais passa o tempo como se comprouvesse em deixá-la envelhecer com as dores que não têm cura. Ela é quase centenária e não há menos de oitenta antos que ela sofre sem encontrar a morte — que lhe é tão necessária — para pôr termo a seus sofrimentos, e que, todavia, teme invocar.

Em 1745, Júlia era uma das moças bonitas de Saint-Mihiel. Sem outra fortuna que sua profissão pouco lucrativa, ela trabalhava com tanta coragem e despendia com tanta economia o que ganhava, que este ganho não só bastava para suas necessidades, mas para as do enfermo velho que lhe havia dado o dia.

O pai de Júlia havia servido sob o comando de Villars e conhecia o coração dos soldados. Sabendo que sua idade e enfermidade lhe trariam a morte em breve, resignou-se corajosamente a morrer, mas, em seu leito de dor, exigiu de sua filha o juramento de nunca casar-se com militar. Júlia o prometeu sem saber a que se obrigava, e o veterano de Denain dormiu o eterno sono. Ela chorou por seu pai, chorou muito e por muito tempo; depois, foi mister continuar a trabalhar para existir; e o trabalho é a consolação dos que sofrem.

Daí a pouco tempo, chegou o regimento real de dragões1, que vinha para guarnecer Saint-Mihiel. Havia muito tempo que não vinham tropas a esta cidade, e, por isso, foram recebidos os homens d’armas com grandes demonstrações de alegria, e, para testemunhá-los convenientemente, os habitantes resolveram ir ao encontro dos militares. Homens e mulheres, todos quiseram ir, e mesmo Júlia não pôde fugir às instâncias de suas amigas. Além disto, posto que ela fosse reservada, era mulher e curiosa, pois é desgraçadamente digno de notar-se que a prudência não exclui a curiosidade, bem que este último sentimento seja muitas vezes o escolho do outro!

Os dragões desfilaram ao som duma música militar: era um bonito regimento! Júlia, que quase se não atrevia a admirar esses homens fardados tão belos e brilhantes, conservava baixos seus grandes olhos: interiormente estava confusa por se haver exposto a tantas vistas. De repente, o cavalo dum dos cavaleiros se espanta e pula, relinchando, para tão perto da moça, que o medo lhe faz levantar a cabeça e dar um grito de terror.

Não tenhas medo, senhora — disse o cavaleiro, inclinando-se com graça para o pescoço do cavalo. Segunda vez se inclinou e fez sentir suas esporas ao nobre animal, que entrou na forma, trêmulo de impaciência. O dragão voltou, então, a cabeça e não deixou de olhar para Júlia, senão depois que lhe foi impossível vê-la.

Este jovem era muito bonito! Ela pensou nele toda a noite.

No outro dia, inquieta por não ter podido acabar com a lembrança do dragão, Júlia pôs-se a trabalhar, mas esteve todo dia distraída e preocupada. Veio a noite e o soldado se reproduziu em todos os sonhos de seu sono. E, quando de manhã chegou à janela para distrair-se, viu passar o dragão. Ele olhou para ela, saudou-a com galanteria e continuou o seu caminho.

Nesse dia, tendo Júlia saído para fazer algumas compras indispensáveis, viu vir ao seu encontro um militar… Era ele. Ela entrou a toda pressa em sua casa e o jovem não pôde dizer uma palavra; mas os olhos também falam.

Então Júlia, que desconfiava de si, tomou um partido corajoso: resolveu não sair mais de casa sozinha e condenou-se a não chegar mais à janela. Esforços baldados! Quanto mais procurava se subtrair ao militar, tanto menos o conseguia; parecia que ele era a sua sombra. E, depois, todas essas privações eram baldadas: quando o dragão não aparecia, sua memória supria essa falta, e a memória está muito perto do coração.

Uma vez, quatro dias se passaram sem vê-lo e teve a consequência de se queixar disso a Josefina, moça gorda e jovial que vinha de tempos em tempos partilhar de sua voluntária reclusão.

Ah! Sei de quem queres falar — disse a confidente. — É de João Dubois.

Não sei como se chama — respondeu Júlia, corando. — Mas como tu o conheces?

Vou dizer-te. Seu camarada Pedro Jely me corteja. E ele me contou que Dubois está louco de amores, de sorte que eu não sabia que era por ti, mas sei que ele faltou ao serviço e foi preso por isso.

Assim, João Debois sofria e sofria de amores por causa dela… E esta ideia lhe fez tanto mal!…

Quando chegou a tarde, Júlia, sem saber que motivos a faziam obrar, chegou à janela como costumava. Apenas o fez, apareceu o dragão.

No outro dia, quando Josefina entrou em casa, Júlia estava muito agitada. Ela não pôde deixar de confessar-lhe a promessa que havia feito a seu pai moribundo, e a impressão que Dubois tinha produzido sobre ela. Até não lhe ocultou os combates que tinha dado para vencer sua nascente paixão.

Sua amiga disse assim:

Em uma aldeia pouco distante daqui, em Lacroix, mora uma feiticeira. Vai procurá-la e pede-lhe um conselho. Como ela lê o futuro, poderá dizer-te se serás mais feliz casando-te com Dubois do que obedecendo a teu pai.

Que me propões, Josefina?

Pois eu já estive com ela três vezes.

E que te disse ela?

Oh, ela me predisse tudo que me havia acontecido! E, depois, me assegurou que eu faria um bom casamento.

Pois bem, irei — disse Júlia suspirando. — Irei amanhã. Se tu me quiseres acompanhar…

Nada! É necessário ir só. A velha me disse.

Irei amanhã.

Pois vai!

E a alegre Josefina se foi, mas teve a indiscrição de contar tudo isso a seu amante…

Na tarde do dia seguinte, Júlia foi visitar a feiticeira. Era uma mulher baixinha, feia e velha que o Céu havia dotado dum grande fundo de malignidade, de que ela se servia para aproveitar a credulidade pública. Logo que viu Júlia, disse-lhe:

Eu te esperava.

Pois tu sabias que eu havia de vir? — disse Júlia, admirada.

Minha arte me tinha anunciado a tua chegada. Entra.

Então, a velha introduziu Júlia em um gabinete mal esclarecido. Figuras cabalísticas estavam penduradas no muro; ossos humanos jaziam em desordem no assoalho; em uma palavra, havia-se reunido neste lugar tudo quanto pode surpreender ou desvairar a imaginação. A feiticeira cobriu a cabeça com um comprido barrete, pôs sobre os ombros um pedaço de pano encarnado, pegou na varinha adivinhadora e, tendo-se fechado em um círculo mágico, pronunciou gravemente estas palavras:

Teu pai exigiu de ti mais do que podias prometer. A natureza e a força de minhas conjurações te dispensam de teu irrefletido juramento. De agora para sempre, tens a liberdade de dar teu coração e tua pessoa a quem deres preferência. Devo, porém, prevenir-te que no mundo há um único homem que te pode fazer feliz; e este homem tu o verás agora.

Júlia palpitava de tremor e ansiedade: no mesmo instante apareceu uma figura no fundo do gabinete, atravessou-o e pareceu sumir-se por uma parede. Júlia reconheceu Dubois nessa figura. Atemorizada, mas satisfeita, recompensou generosamente a feiticeira e, à pressa, voltou para a cidade. Tinha apenas feito o terço do caminho quando seu amante se ofereceu a sua vista. Júlia teve medo ao princípio, mas ele a tranquilizou facilmente: com rapidez persuadimos os que nos amam!

Esta entrevista decidiu a sorte da infeliz: vítima das maquinações da velha e de seu cúmplice, a supersticiosa Júlia se entregou sem reserva ao sentimento que a dominava e Dubois nada mais teve que desejar…

Dois meses depois, Júlia chorava sua falta. Seu amante, a quem ela tinha confiado sua posição, começava a desprezá-la; raras e frias eram suas visitas. Os descorados dias de Júlia se passavam em dores inúteis; suas noites eram agitadas e, no delírio de seus sonhos, julgava muitas vezes ouvir a voz de seu pai exprobar-lhe sua culpada desobediência… Mais pungentes males ainda a esperavam.

Reinava então em França Luís XV. A paz brilhante de 1748 ia findando e a Inglaterra, desgostosa do tratado de Aix-la-Chapelle, ameaçava recomeçar as hostilidades sob o pretexto de se haverem desconhecidos seus direitos sobre o Canadá. A França e a Áustria, rivais havia dois séculos, se coligaram para vencer o inimigo comum, e a guerra foi de novo declarada. Os dragões tiveram ordem de ir guarnecer as fronteiras.

Sabendo desta notícia fatal, Júlia quase morreu. Até então, tinha esperanças, mas esta partida inesperada a deixava só — só, com a vergonha e sem um nome para o infante que tinha no ventre! Que suplício por um erro! Oh, ela não chorava seu amante; chorava alguma coisa mais sagrada, que ela podia abandonar a vida, mas esse fruto do amor, que se agitava em seu seio, devia também ser condenado à morte? E, entretanto, Dubois não aparecia. Ele a tinha abandonado! Fortalecendo-se com a sua ternura materna, foi ao quartel na véspera do dia determinado para a partida; e, aí, tendo encontrado o seu amante, exprobou-lhe o procedimento… O infame deu uma risada, e para subtrair-se às importunações de sua amante, fugiu, deixando-a exposta aos insultos de seus camaradas. Júlia compreendeu que estava perdida e, tranquilizando-se à força de desesperação, voltou para casa, meditando vingar-se. Nesta mesma noite o regimento deixou Saint-Mihiel.

Entretanto, a exaltação febril de Júlia se dissipava para ser substituída por uma melancolia profunda e absorvente, que lhe minava a vida insensivelmente. Em pouco tempo, alterou-se a sua saúde, suas forças foram em diminuição e, por intervalos, perdia a razão. Deu, porém, à luz a uma menina e saboreou sua última alegria de mulher dando seu primeiro beijo de mãe… Muito desgraçada, não quis se separar de sua filha e criou-a.

Havia pouco mais ou menos três meses que Júlia tinha voltado a suas antigas ocupações; e o repouso, em falta de felicidade, começava a voltar à sua alma amortecida, quando um dia recebeu a visita estranha da feiticeira que preparara a sua perda. Posto que ignorava toda a parte que esta miserável tivera em seu destino, ela não pôde deixar de estremecer, vendo-a.

Minha filha — disse-lhe a velha —, sei o que te aconteceu, e de ti me compadeço. Venho dar-te conselho e procurar-te alívio.

É impossível.

Tem confiança em mim. Teu fiel amante, por virtude dos segredos que possuo, pode ser de novo constrangido a ter-te amor.

Já o não amo; desprezo-o.

Eu te creio; mas tu tens uma filha.

E então, que me cumpre fazer?

Vai à meia-noite à Mesa do Diabo, e lá te direi. É necessário que leves contigo tua filha; ela é indispensável para minha operação.

Lá irei e levarei minha filha. Mas não me enganes, que eu me vingaria de ti, ainda mesmo que estivesses no Sabá.

Nada temas e sê discreta. Aqui tens — continuou a velha, dando-lhe um frasco cheio de um licor negro —, aqui está uma composição que deves beber antes do partir. É um filtro, cujo efeito será iniciar-te nos mistérios de minha arte e comunicar-te parte do meu poder. Não te esqueças de o beber. Adeus.

À meia-noite, Júlia estava ao pé do rochedo. Um incômodo geral a atormentava. Seu estômago sofria certa opressão, sentia a cabeça pesada e, a cada passo que dava, quase caía de cansaço. Uma chama viva brilhava na parte superior da rocha. Júlia pensava que esta claridade era sobrenatural e sentiu-se desfalecer. A velha veio em seu socorro. Júlia viu-se obrigada a sentar-se.

Dá-me a tua filha — disse a velha mágica. — Conheço melhor o caminho que vai dar na Mesa do Diabo e, além disso, estás cansada.

Nunca me separarei de minha filha! — exclamou Júlia. — E apertava a inocente criatura em seus braços.

Mas depressa se viu obrigada a ceder à influência de um sono invencível. Seus olhos se facharam, caiu e adormeceu. A feiticeira riu-se com a alegria de um tigre: Júlia já tinha bebido toda a dose de ópio… Ela pegou a menina, subiu à escarpada rocha e logo se ouviram gritos agudos no cume…

A infeliz acordou nesse momento. Seu primeiro cuidado foi procurar sua filha; ela não a achou. Horrível suspeita veio ao espírito da pobre mãe e, então, já não temia, já não tinha medo! Em alguns instantes, chegou à Mesa do Diabo, e espantoso espetáculo se ofereceu a seus olhos. Sua filha, fruto de suas estranhas, estava queimando no meio de chamas ardentes; e, ao lado, a desapiedada mágica resmungava tranquilamente algumas palavras dum livro ininteligível…

A esta vista, a raiva e a vingança se apoderaram do coração de Júlia. Lançou-se furiosa sobre a maldita velha e, prestando-lhe novas forças sua desesperação, a agarrou pelo meio do corpo, atirou-a de encontro aos rochedos vizinhos e caiu sem conhecimento ao lado do cadáver meio consumido de sua filha.

No outro dia, tendo alguns viajantes por acaso empreendido visitar o lugar em que se passara esta cena horrível, aí acharam Júlia ainda desmaiada. Levaram-na para sua casa, mas os remédios que lhe prodigalizaram foram impotentes. Ela estava louca.

O corpo mutilado da velha foi também achado. Ela tinha na mão seu livro infernal e, na página aberta, lia-se:


Meio infalível de transformar metais em ouro.

Tome-se urtiga seca e queime-se à meia-noite em um lugar consagrado ao espírito maligno. Procure-se depois o corpo vivo de uma criança de peito e lance-se nas chamas. Ajunte-se depois, com cuidado, todas as cinzas e os metais que se esfregarem com este pó se mudarão em ouro imediatamente.’


A feiticeira e seu livro maravilhoso foram enterrados no lugar em que lhe tinham descoberto o corpo; mas, para conjurar os malefícios, se colocou uma imagem da Virgem na pedra que cobre os ossos desta miserável.

João Dubois foi morto na Guerra dos Sete Anos.”


Fonte: Gabinete de Leitura/RJ, edição de 10 de setembro de 1837.

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Nota:


1Soldados de cavalaria.

 

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