APARIÇÃO - Conto Clássico de Mistério - B. Medici

APARIÇÃO

B. Medici

(Séc. XX)

Tradução de autor desconhecido



Tu compreendes... — explicava- me com gravidade o meu amigo, o pintor Chabichou, que qualificava a si próprio de "superindependente" e cujos quadros, mesmo com o auxilio do texto explicativo, continuavam perfeitamente incompreensíveis ao profano. — O teu corpo astral se difunde, quando tu dormes, em todo o teu apartamento, ou no quarto, se ocupas apenas um aposento. Admitamos, por exemplo, que toquem à porta: não é, como acreditam comumente, o ruído que acorda o dormente, mas o seu corpo astral que comunica o fato, por meio do subconsciente, e tira-o do sono. O corpo astral se encontra em toda parte e, por conseguinte, também na campainha. Pode-se fazer a experiência no estado de vigília, mas é preciso uma concentração do pensamento e uma vontade de que poucos são capazes. Ensaiei, uma vez, eu próprio, mas quando a campainha retiniu, pareceu-me que um sino pesado vibrava repentinamente no ouvido. Tive o tímpano quase dilacerado e uma vibração nervosa, que me tirou o desejo de recomeçar…

Eu escutava as elucubrações do meu amigo, com as quais estava habituado — quando não era o corpo astral, era o plexo solar, o yoga ou alguma outra experiência espírita —, com um ar distraído, folheando uma revista.

Tu és cético — dizia-me ele. — Façamos juntos uma experiência. Esta noite eu vou me esforçar para materializar, diante de ti, o meu corpo astral, mas é preciso que me ajudes. Ouves-me? — acrescentava ele, agitando furiosamente a sua barbicha e passando a mão nos seus cabelos sempre desgrenhados.

Sim — fiz eu, vagamente interessado.

Esta noite, às onze horas, irás te deitar e pensarás em mim. Tentarás concentrar fortemente o pensamento sobre a minha pessoa. Durante esse tempo, eu me difundirei; quero dizer: o meu corpo astral se espalhará no apartamento e, se os teus pensamentos me chamam com bastante constância, tu me verás aparecer sob o aspecto de uma forma vaporosa, ligeiramente luminosa, um pouco maior do que a minha pessoa física, mas respeitando fielmente os contornos. De acordo?

Decidido a convencer o meu amigo da inépcia dos seus raciocínios, tanto mais que se entregando às suas alucinações espíritas — ele pintava telas cada vez mais incoerentes e impossíveis de vender, de sorte que toda as despesas do nosso apartamento em comum pesava sobre os meus ombros —, aprovei o seu projeto e fui me deitar, alegrando-me antecipadamente de o confundir pela manhã.

Estendi-me, todo vestido, sobre o meu leito e esforcei-me, a fim de bem representar o meu papel, de evocar o meu amigo, mas devia ter bem pouco de prática de me concentrar, quando adormeci ligeiramente. Tinha perdido durante alguns instantes a consciência da realidade, quando um sentimento de incômodo — aquele que causa a presença invisível de um terceiro — tirou-me do torpor. O quadrante luminoso do meu relógio marcava onze horas e trinta minutos. Escutei, mas não ouvi nenhum ruído. Esforcei-me de perscrutar a obscuridade para perceber a forma vaporosa e ligeiramente luminosa do corpo astral do meu amigo, mas não vi nada. Pareceu- me, somente, que a cortina, que mascarava a janela do terraço, agitava-se fracamente — era um pouco de vento? — e, pouco a pouco, eu supus distinguir uma forma humana, que se destacava contra a clareza de uma noite sem nuvem. Uma leve emoção apoderou-se de mim. “Não nos deixemos sugestionar...” — disse a mim próprio. “— E, portanto, se com o meu ceticismo era eu o ignaro e o tolo? E se o meu amigo tivesse razão? Em que regiões sobrenaturais seu espirito, aguçado pelo estudo e a pratica das ciências ocultas, não devia planar? Quem sabe de que alegrias refinadas eu não me privava assim!”. Estava aí nas minhas reflexões, quando a cortina abriu-se ligeiramente, ao que me pareceu, e a forma humana deslisou sem ruído no meu quarto. Fiquei um pouco surpreendido que não tivesse passado através da cortina, mas tive tempo, à luz das estrelas, de notar uma pequena barbicha e cabelos desgrenhados. Sem dúvida, era bem Chabichou. Parecia-me maior e mais grosso do que ao natural e a aparição não era nem vaporosa, nem luminosa, mas antes nítida, ainda que sombria. Era que eu possuía, sem supor, dons de médium e por isso conseguira do primeiro golpe materializar, sob a forma física, o corpo astral do meu amigo? Como a aparição, sempre sem ruído, aproximava-se do meu leito, não pude duvidar mais tempo e não soube reprimir uma exclamação de alegria à ideia de tal sucesso. Logo senti uma corrente de ar frio sobre o meu rosto, a cortina da porta agitou-se violentamente e nada mais se moveu no quarto. Esperei um bom quarto de hora amaldiçoando a minha exclamação intempestiva, que tinha, sem dúvida, produzido em Chabichou um despertar em fanfarra muito desagradável e, depois, como nada se manifestasse mais, acendi a lâmpada. O quarto estava vazio e apresentava o seu aspecto habitual. Indaguei de mim próprio se não havia simplesmente sonhado. Contudo, a impressão de uma presença subsistia e dirigi-me para o quarto do meu amigo. Um roncar sonoro me acolheu desde o corredor.

Ah, bem!…” pensei, embaraçado.

Chabichou dormia sobre o dorso com a boca aberta. Sacudi-o e só com grande custo tirei-o das profundezas onde se abismara, esgotado, sem dúvida, pelo esforço.

Realizou-se!… — gritei eu. — Vi apareceres, mas falei e tu desapareceste. Entendes?

Oh!… minha paz — resmungou.— Tenho sono…

Mas se te digo que a experiência surtiu efeito.

E sacudi-o vigorosamente:

Vais me aborrecer muito tempo? — fez ele, sentando-se com o olho furioso e a cabeleira em batalha

Meu velho… — retorqui alegre, sem me deter com a sua atitude. — A experiência realizou-se. Teu corpo astral me apareceu!

Ao termo “astral”, Chabichou acordou de fato. Seu olho pacificou-se, iluminado por um pouco de inteligência e sua boca distendeu-se num sorriso suave.

Conta-me — disse; e era ele que agora tomava um tom cético. Narrei-lhe a história, do começo ao fim. Tinha o ar tão surpreendido como eu e interrompia-me a cada instante com um “Não! Não é possível!” admirativo.

Então, estás convencido agora — concluiu. — É por isso que estou morto de fadiga.

A sua atitude parecia escarnecer de mim. Não liguei grande importância no momento, pensando que, depois de um exercício tão extenuante, seu espírito não recuperara ainda toda a sua lucidez habitual, reservando-me de o espantar pela manhã com os meus dons de médium. Voltei a me deitar, com a cabeça repleta de ideias delirantes, mas acabei assim mesmo por adormecer, porque tinha vinte anos e nessa idade as experiências mais cativantes não conseguem roubar o sono. E levantei-me parcialmente esquecido dos acontecimentos da noite, quando avistei perto da janela um pequeno cartão branco, que não notara na véspera: “Pierre Bélecris, agente literário”, li eu.

Eis bem mais um desleixo dessa estúpida criada... — exclamei, considerando na jovem que vinha todos os dias arrumar o quarto. — Não lhe tenho eu dito, cem vezes, que deve me advertir, quando alguém vier visitar-me e deixar os cartões à vista, e não em qualquer lugar? Esse Belécris... — onde li esse nome recentemente? — vinha sem duvida se oferecer como intermediário na publicação dos meus últimos poemas. Eis bem a minha veia! Quem sabe desde quando esse cartão rola por aí…

E, maldizendo a sorte, continuei vestindo-me e fui ter com o meu amigo no estúdio, que servia às vezes de gabinete, salão e de sala de refeições.

Ele estava absorvido na leitura dos fatos diversos, no jornal da manhã.

Escuta isto!… — gritou ao me ver. — Nós falamos anteontem do domínio tão pouco conhecido das alienações mentais. Eis o que te vai interessar:

Um perigoso monômano escapou-se ontem, pela manhã, do Asilo de X. Trata-se de Claude C…, que tinha sido internado, recentemente, depois de haver estrangulado, num acesso de loucura furiosa, um dos seus vizinhos de pensão e, depois de tentar assassinar desta maneira diversas pessoas, Claude C... assinou a sua passagem na nossa cidade, por um novo crime cometido ontem à noite, à rua dos Postes (perto daqui). Os sinais deste perigoso indivíduo são os seguintes: corpulência média, talhe de l,78m quase, cabelos à escova, olhos cinzentos, bigode e pequena barbicha em ponta. Estava vestido quando fugiu do asilo de roupa cinzenta clara, sapatos marrons, sem chapéu. Pode ser que se apresente sob o nome de Pierre Belécris, agente literário, uma das suas vítimas, à qual roubou certos papeis...”

Que tens tu? Estás doente?

Tinha caído no sofá e devia estar lívido quando Chabichou, soltando o jornal com um grito de espanto, precipitou-se para mim e estendeu-me um copo com água, que traguei de um gole.


Fonte: O Malho, edição de maio de 1940.



 

Comentários

  1. amigo Barão, fui pesquisar na lupa no canto superior direito e achei este conto. Irei lê-lo nessa noite quente , aqui, com a janela aberta mostrando parte do céu noturno e estrelado.

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  2. oh amigo Paulo, que contaço este! Muito bom este conto!

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  3. este é um conto que merece ser relido com atenção pois foi muito bem construído.

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