GUERRA - Conto Clássico Cruel - Jack London
GUERRA
Jack London
(1876 – 1916)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
Era um jovem de vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Seus olhos negros miravam tudo com curiosidade e seguiam o movimento de cada galho de árvore, seguindo depois até a linha do horizonte. Ia a cavalo, mantendo-se sempre do mesmo lado do caminho e, com a mesma intensidade com que olhava, escutava, embora fosse por lugares silenciosos. Somente do longínquo oeste chegavam o roncar dos canhões, que começara muitas horas antes. E, devido à própria monotonia daquele ruído, o jovem só teria reparado neles se houvesse cessado.
Na parte da frente da sela tinha a carabina. A tensão de seu espírito era tal que o grito de uma perdiz entre as patas do cavalo era o bastante para fazê-lo colher as rédeas com rapidez e empunhar a carabina. Depois, com um trejeito de impaciência, reacionava e continuava o caminho.
Ginete e corcel estavam empapados de suor. Eram precisamente doze horas de um horrível dia de verão. Até os pássaros temiam aventurar-se ao sol, e permaneciam nas árvores. Invariavelmente, o homem olhava para os galhos antes de atravessar um claro. Avançava sempre para o norte, embora o caminho fosse tortuoso; e do norte temia que chegasse o que procurava.
Aquele homem não era um covarde. Tinha o valor próprio da maioria dos homens: mas desejava viver, e não morrer.
Subiu por uma colina, tão escarpada, que teve de levar o cavalo pela brida. Mas quando aquela estreita senda dobrou para oeste, o jovem apartou-se dela para continuar novamente para o norte. Do outro lado a colina oferecia uma inclinação brusca: tinha de descer em zigue-zague. O jovem respirava ruidosamente e isso lhe produzia uma perturbação maior, pois, por vezes, temia que o ruído da própria respiração o delatasse. Detinha-se a cada instante, ouvidos atentos, para certificar-se de que nenhum rumor subia do vale.
Em baixo, achou-se num bosque denso, de extensão incalculável. Pôde montar novamente. Aqui a vegetação era diferente da da colina: as árvores erguiam-se retas, altas, fortes. Ao fim de três horas de viagem, deteve-se nos limites de uma planície. Aquele espaço aberto não teria mais de meia milha, mas o jovem não queria aventurar-se por ele. Um fuzil, centos de fuzis, poderiam esconder-se nos costados da planície, entre as árvores que a limitavam e as margens do rio.
Duas vezes ia avançando e se deteve. Sua própria solidão o assustava. Os ruídos da guerra no oeste sugeriam à sua imaginação lutas violentas e encarniçadas. Mas lutar, em definitiva, não era nada de espantoso; espantoso era, sim, essa outra situação: o silêncio e ele, nada mais que o silêncio e ele.
Sua missão era a de descobrir o que temia descobrir a cada passo. Tinha de avançar, avançar até que em algum lugar encontrasse outro homem ou outros homens, pertencentes ao campo inimigo e destacados, como ele, para explorar o terreno.
Resolveu costear a planície internando-se um pouco no bosque. Ao fim de algum tempo, saiu novamente de dentro dos altos troncos. Desta vez, em meio da planície, viu uma pequena casa. Não havia nenhum sinal de vida. Da chaminé não saía fumo, nem movimento de animais nos arredores. A porta da cozinha estava aberta.
Rapidamente, depois de olhar intensamente o retângulo da porta, o soldado esporeou o cavalo e se lançou a galope sob o sol. Passou diante da casa e dirigiu-se para a fileira de árvores próxima ao rio. Estava dominado pelo terror de uma possível detonação no silêncio do meio-dia; e, por isso, se sentia frágil, indefeso, e se inclinava sobre a sela.
*
Amarrou o cavalo a uma das primeiras árvores e continuou a pé até chegar ao curso d’água. Era um riacho sereno de águas claras. E o soldado tinha sede. Mas… e a outra margem?… Oculto por trás da cortina de folhagem, fixou os olhos na outra margem. Para que a espera fosse mais suportável, sentou-se no chão, colocando a carabina entre os joelhos.
Transcorreram dez minutos. A tensão de seus nervos cedeu. Por fim, pensou que não havia perigo algum, mas, no momento exato em que se afastava os galhos para se inclinar sabre a água, notou um movimento entre as árvores na outra margem.
Um pássaro?… Sim, podia ser um pássaro.
Esperou. Novamente os galhos se agitaram; e depois, de súbito, apareceu um rosto entre eles. E o soldado sentiu uma sensação tão aguda que esteve a ponto de soltar um grito.
Era um rosto coberto por uma barba de várias semanas. Nos olhos se adivinhava um cansaço mortal.
O soldado podia ver, com microscópica clareza, todos os detalhes daquele rosto, pois a distância que os separava era de poucos metros. Apesar de sua surpresa, levou a carabina ao ombro; e apontou bem, muito bem, embora a tão pequena distância fosse impossível errar o tiro.
Mas não apertou o gatilho. Lentamente, baixou a carabina e ficou olhando. Viu uma mão que segurava uma garrafa. O rosto do homem inclinou-se para frente, e a mão entrou na água como para encher a garrafa. O soldado julgou ouvir o gorgolejo da água desalojando o ar do recipiente. O braço, a barba — uma barba cor de enxofre — e os olhos desapareceram por um instante entre os galhos.
Como matar um homem que tinha sede? O soldado esperou muitos minutos mais; e, por fim, com sua sede insatisfeita, voltou para junto do cavalo, atravessou lentamente a planície queimada pelo sol e penetrou na sombra do bosque.
*
Outro dia, quente e sufocante.
Uma casa deserta, em meio da planície. Do bosque, com a carabina na sela, chegou o jovem de inquietos olhos negros. Respirou com alívio quando entrou na casa. Apareciam ali, com toda clareza, vestígios de um combate que se travara no começo da estação. Cartuchos vazios estavam no chão. Adiante, na horta, distinguia-se as cruzes de madeira, numeradas. Perto da porta da cozinha, pendiam os cadáveres de dois homens: cadáveres castigados pelas intempéries. Os rostos não pareciam humanos, tal a sua desfiguração. O cavalo, ao passar por perto, relinchou. O cavaleiro bateu-lhe no pescoço, para acalmá-lo.
Ao entrar em casa, o jovem encontrou tudo em ruínas. Passou de um aposento para outro caminhando sobre montões de cartuchos vazios. No chão de um deles, viu manchas que não deixavam dúvidas: ali tinham colocado um ferido.
Tornou a sair, levou o cavalo ao estábulo e entrou no quintal. Uma dezena de árvores estavam carregadas de maçãs. O jovem encheu os bolsos e comeu uma. Teve uma ideia e, olhando para o sol, calculou o tempo de que dispunha para regressar a seu acampamento.
Tirou a camisa, deu um nó em cada manga, converteu-a numa bolsa e começou a enchê-la de maçãs.
Quando pôs o pé no estribo do animal e montou, viu que este erguia de súbito as orelhas. O soldado pôs-se a escuta e ouviu, fraco, um rumor de cascos na terra macia.
Foi, silencioso, até o ângulo do estábulo e olhou para fora. Uma dúzia de homens a cavalo vinham em fila da parte oposta da planície e se achavam a menos de cem metros. Aqueles homens foram até a casa. Alguns desmontaram, porém outros permaneceram em sela, demonstrando, assim, que não pensavam demorar-se muito ali. Falaram durante alguns instantes, utilizando a língua dos invasores. E o tempo passava sem que, segundo parecia, aqueles homens ficassem de acordo.
O soldado esperou impaciente. E, ao ouvir um passo que se aproximava, afundou violentamente as esporas nas ilhargas do cavalo, e este, com um gemido de dor, precipitou-se para frente. No ângulo do estábulo, o intruso afastou-se rapidamente para um lado para não ficar sob as patas do cavalo. O cavaleiro chegou a vê-lo: era um moço de menos de dezenove anos. Logo depois viu também os outros inimigos, e notou que levavam fuzis. Deitou-se sobre o pescoço do cavalo, pressentindo o ataque, e afundou outra vez as esporas nos flancos do animal.
Soou uma detonação. Mas o cavaleiro oferecia o menor alvo possível a seus inimigos. E não abandonava, apesar do perigo, a camisa cheia de maçãs.
Poucos metros adiante, ficava o arroio que corria por trás da horta. O soldado conhecia seu cavalo. E transpôs o arroio a toda carreira, num salto magnífico, entre as balas de doze fuzis.
O bosque ficava a oitocentos metros. O cavalo transpunha a distância a grande velocidade. Todos os inimigos continuavam atirando. E as detonações se sucediam com tanta rapidez que formavam uma só, ininterrupta.
Uma bala atravessou-lhe o boné, mas o soldado não o viu. Um segundo depois sentia, sim, que outra bala atingia a bolsa de maçãs. Tremeu e se abaixou mais ainda. Outra bala, muito baixa, pegou numa pedra entre as patas do animal, e revoluteou no ar, zumbindo e silvando como um inseto fantástico.
Os disparos se espaçavam à medida que se iam esvaziando as armas. Por fim cessaram. O jovem estava como ébrio. Havia saído ileso do ataque. Voltou-se para olhar: com efeito, os inimigos tinham já esvaziado as armas. Alguns carregavam-nas de novo. Outros corriam para casa em busca dos cavalos. Dois se lançaram logo em perseguição do jovem. No mesmo instante, este viu o homem da barba cor de enxofre. Ajoelhava-se no chão, apoiava o fuzil na clavícula e, friamente, fazia pontaria.
O jovem afundou as esporas no flanco de seu cavalo. E fugiu em marcha ondulante para desconcertar o homem da barba de enxofre. A cada salto do cavalo o bosque se aproximava. Duzentos metros mais, e estaria salvo…
Mais uma vez comprimiu as esporas nos flancos sensíveis.
E depois… Depois ouviu a última coisa que ouviria em sua vida. E caiu da sela, morto.
E os que olhavam da casa viram que caía também a bolsa branca e que as maçãs se espalhavam no chão. Ante aquele espetáculo inesperado, soltaram uma gargalhada e aplaudiram com entusiasmo a pontaria certeira do homem da barba de enxofre.
Fonte: Síntese/RJ, edição de agosto de 1945.
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