O FRIO DA MORTE - Conto Clássico Fúnebre - José María Carretero Novilo
O FRIO DA MORTE
José María Carretero Novilo
(1887 – 1951)
Tradução de Albertus de Carvalho
(Séc. XX)
O nosso amigo doutor Rivera fez uma pausa muito teatral em seu relato, que já começava a interessar-nos. Antes de prosseguir, encastoou com elegância parisiense o monóculo e olhou-nos um a um. O doutor Rivera, além de um grande médico, era um homem do mundo e um “causeur” muito sugestivo. Possuía esse raro dom que tem algumas pessoas para atrair a simpatia de todos. Seu porte de impecável elegância predispunha em seu favor. Sabia, como ninguém, dar colorido a uma palestra.
Estávamos de sobremesa no terraço do Cassino de Madri. Éramos quatro amigos inseparáveis: Pepe Moncada, Alberto Luna, o doutor e eu. Já brilhavam os licores nos pequeninos cálices e começávamos a saborear os ricos havanas, cujo aroma nos ia embriagando docemente, quando o doutor Rivera prosseguiu:
— Bem; pois, como vos ia dizendo, por aquele lar passava a maior felicidade. Mara e Jacinto eram jovens, amavam-se apaixonadamente e estavam formando sua família, para a qual já tinham, aos seis anos de casados, quatro angelicais descendentes. Ela, Mara, era de uma beleza e de uma gentileza extraordinárias… Uns olhos negros rasgados e imensos em um rosto de puríssimas linhas. A boca parecia uma flor de carne e nácar. Os cabelos muito negros e sedosos eram apartados ao centro de sua linda cabeça e duas vastas tranças emolduravam-lhe o colo de seios turgentes e tentadores. Lúcido contraste… Tinha um nimbo misterioso, o divino rosto daquela mulher. Ele — ah, amigos!—, o marido, era um belo moço, alto, elegante, despreocupado.
*
Rivera fez uma pausa para umedecer os lábios com o conhaque de seu cálice. Não nos atrevemos a interromper aquele silêncio. Logo depois, continuou:
— Eles, além de serem meus grandes camaradas, eram também meus clientes. Eu assistia a todos os transes maternais de Mara e a saúde dos pequenos estava recomendada à minha direção. Pois bem: há coisa de quatro anos, uma noite do mês de janeiro, foi meu criado buscar-me no teatro Real, alarmadíssimo… Em casa de Jacinto Leal me reclamavam com urgência: Mara agonizava. Surpreendeu-me a notícia. Mara tinha uma saúde admirável.
“Saí precipitadamente, subi rápido para o meu automóvel e a dois minutos estava em Rosales, no magnífico palacete de Jacinto. As portas, abertas... Subi e cheguei até a alcova. Não esquecerei jamais o espetáculo. O leito de Mara se achava rodeado de seus filhos, dos criados e de gente estranha. Mara jazia hirta sobre o confortável leito. Jacinto, de joelhos, beijava-lhe os pés e, com gritos de desesperado estupor, chamava-a... chamava-a:
“— Mara!… Mara!… Minha querida Mara!… Minha vida!… Não me abandones!…
“Os filhos, quase sem compreender a situação, choravam também.
“Jacinto, ao ver-me, cristalizou a amargura em gritos de anelante esperança:
“—Doutor, Mara morre, não é verdade?
“Com incoerências, contou-me o ocorrido. Nada. Chegara do teatro e caíra ao solo como uma vara de nardos que se trunca. Recomendei-lhe calma. Depois, auscultei-a… Nada… Nem o menor estremecimento, nem a mais leve palpitação… Apliquei-lhe um espelho à boca… Não se empanou… Estava morta, não restava a menor dúvida… Porém, de quê? Nós, os médicos, ditamos quase sempre o mais aproximado da realidade; porém, quase nunca sabemos desentranhar a verdade. Assim, pois, eu, naquela balança duvidosa, certifiquei que Mara morrera ‘de um colapso cardíaco’. Isto era, desde logo, o mais aproximado, o mais verossímil.
“O desespero de Jacinto não tinha limites. Eu creio que perdia a razão. Que horrível dor a daquele homem ao ver derrubada para sempre, e sem remédio, a felicidade de seu lar!… Por fim, logramos arrancá-lo da alcova.
“Eu então, examinei mais detidamente a bela morta. Parecia dormir docemente e seu rosto tinha uma eterna tranquilidade. Seu corpo já tinha a rigidez natural dos mortos. Seus lábios iam-se velando de uma violácea palidez. Pobre Mara! Amortalhada de carmelita, foi depositado o tesouro de seu corpo em um ataúde de caoba. Eu ajudei a todas estas operações com um fervor de amigo da alma e consolei Jacinto, que chorava como uma criança.
“Passamos longas horas na sala fúnebre, até que chegou o trágico momento do enterro. Obstinou-se meu amigo em entrar com seus filhos na capela ardente para dar o último ‘adeus’ à adorada… Não conseguimos fazê-lo desistir. Em desolada procissão de amarguras e desconsolos, o pai, seguido dos três meninos mais velhos, penetrou na capela mortuária… Aroma de cera e flores… Aquela cena, meus queridos amigos, jamais se apagará de minha memória… Jacinto, abraçado ao ataude, beijava o rígido corpo de Mara, que, com o hábito, estava divina… Os pequenos choravam e chamavam pela mãe.
“De súbito, o corpo de Jacinto deu um arranco louco e, como se lhe houvessem queimado as carnes da morta, deu um salto atrás e se separou do ataúde. E, num desgarrado grito de terror, disse-me:
“—Ela se moveu, doutor! Senti-o! Não reparou o senhor?
Julguei-o louco.
“—Qual!" — respondi. — Uma alucinação…
“—Não, doutor! Seu corpo estremeceu!… Mara!… Mara!… — gritava, sem acercar-se da morta, alguns passos distante do caixão.
“Os filhos, invadidos pelo medo, escondiam-se por trás do pai.
"—Mara! Mara! — voltou a exclamar.
“E, então, senhores, foi o espantoso… Mara abriu seus formosos olhos!… Olhou em derredor e disse com voz fraca:
"—Jacinto, meu amor; onde estão as crianças?
Fez outra pausa o doutor Rivera. Por todos nós, passou um calafrio de horror, gelando-se-nos o sangue nas veias. E, depois, continuou:
— O marido ficou imóvel como uma estátua. Os filhos fugiram, medrosos… Eu ainda tive tranquilidade para colher a ressuscitada pela cintura e levá-la para o leito abandonado. Jacinto olhava com o terror estampado no rosto. Mara, lentamente, ia voltando à vida. Havia estado sob os efeitos de um sono cataléptico…
“Vós sabeis, por certo, que os médicos nunca souberam averiguar que diferença existe entre a catalepsia e o sono eterno. E, oh, amigos, quão rara é a psicologia humana! Aquele enamoradíssimo Jacinto, que, momentos antes, beijara desesperadamente a morta, agora não se atrevia a acercar-se da ressuscitada.
“Por fim, conseguiu dominar seu terror e se abraçou a ela em um abraço estranho de incompreensível desconfiança. Chamei os filhos… Ninguém se atrevia entrar na alcova. Momentos depois, entraram os meninos, acompanhados pelos criados… Ninguém queria passar da porta. Mara foi, pouco a pouco, recobrando seu conhecimento e, depressa, se deu conta de tudo… de tudo! Até daquele terror que lhe gelava o sangue e lhe partia o coração.
*
—Terminou? — perguntou Pepe Moncada, aproveitando uma pausa de Rivera.
—Qual, homem! Pois se agora vem o inaudito!
“Um ano após, fui chamado novamente à casa de Jacinto. Fui. Mara estava caída sobre o leito. Cravara um punhal em pleno seio esquerdo e, como uma fita de seda vermelha, corria um fio de sangue de seu coração… Jacinto fazia esforços para chorar, mas não podia. Em sua elegante secretária, deixou Mara uma carta que, se mal recordo, dizia, aproximadamente:
“Não posso viver. Meu marido e meus filhos necessitam de minha morte. Sou, nesta casa, algo sobrenatural, que impõe… Dou medo… Não pude, no período de um ano, reconquistar o lugar que tinha no coração de meu marido e de meus adorados filhos. Por que ressuscitei, meus Deus? Desde aquele dia horrível da morte, minha vida variou por completo: meu marido, que me amava, olha-me agora como algo misterioso, como algo do outro mundo; meus filhos, que antes dormiam em meu regaço, agora fogem de mim e, se me vêm caminhar pelas galerias para buscá-los em seus aposentos, gritam aterrados; os criados não se atrevem entrar em minhas habitações... Afogo-me em amarguras e já até eu mesma quero fugir de mim... Por isso atiro-me à morte para levar o frio que, ao passar por minha casa, ficou nela. Adeus — Mara”.
Fonte: “Primeira”/RJ, 25 de julho de 1928.
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