O INOCENTE QUE QUERIA SER GUILHOTINADO - Narrativa Verídica Criminal - Pierre Bouchardon
O INOCENTE QUE QUERIA SER GUILHOTINADO
Pierre Bouchardon
(1870 – 1950)
Tradução anônima do início do séc. XX
Se o estoicismo chega a fazer do suicídio uma virtude, em certos casos não se pode dizer que os desesperados escolham sempre o meio mais simples para saírem deste mundo. Alguns, ao contrário, graças à fertilidade de imaginação macabra, chegam a darem-se mortes as mais teatrais, as mais complicadas, as mais terríveis.
Não houve um desequilibrado que fabricou, ele mesmo, uma guilhotina, que manejava de maneira que, uma vez estendido na prancha, não era preciso mais do que calcar num botão para se decapitar de um só golpe?
Mas alguém quis fazer mais ainda, há pouco mais de cento e dez anos. E o infeliz, de que se segue a historia da horrível aventura, achou um meio de conciliar as leis religiosas, que proíbem o suicídio, com o seu impetuoso desejo de pôr fim à existência. Este incrível processo merece ser tirado do esquecimento
*
Na noite de 3 de agosto de 1827, o conferente de alfândega Verni e um de seus prepostos regressavam, em carro, da aldeia de Houssen, onde tinham ido a serviço.
Aproximavam-se de uma ponte, a pouca distância de Colmar, guando viram, impedindo um lado da estrada, uma massa escura que lhes pareceu um corpo humano. Descendo do carro, foram examinar o obstáculo. Quando chegaram perto bastante para enxergar na escuridão da noite, viram um homem imóvel por terra. Dispunham-se a socorrê-lo quando a mala postal de Estrasburgo veio numa carreira louca, ruidosa, com os guizos dos cavalos e o ranger das rodas. Vinha, precisamente, pelo lado da estrada onde estava o desconhecido.
Os funcionários aduaneiros não tiveram senão o tempo de se afastarem. Gritaram ao postilhão para parar, mas este, seja por não ter ouvido com o barulho ensurdecedor ou, antes, por ter desconfiado das intenções daqueles dois homens, em pé, à a noite, no meio da estrada, não parou e, ao contrário, fustigou os cavalos, acelerando a marcha.
Naqueles tempos, os ataques na estrada, à mão armada, não eram raros e começavam às vezes procurando um meio de fazer parar o veículo, e, então, a salvação estava na rapidez da fuga.
Neste caso, o acaso de sua louca carreira fizera com que a pesada carruagem passasse sobre o homem estendido, e um estalar sinistro advertiu que uma das rodas esmagara a cabeça do infeliz. Eram duas horas e meia da madrugada.
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Chegando às portas de Colmar, M. Verni relatou à guarda o drama a que acabava de assistir. A polícia foi avisada e preparou-se para ir ao local, ao amanhecer.
É bom saber-se, desde já, que, sem a revelação que se vai seguir, os magistrados se teriam visto muito embaraçados para concluírem sobre a realidade de um crime. Quando se procedeu ao exame do cadáver, o médico só pôde verificar que a cabeça havia sido esmagada pela roda.
Este traumatismo teria sido a causa imediata da morte? Ou estaria já o desconhecido morto antes da passagem da mala postal? Foi o que o profissional se declarou impotente para dizer. Só pôde opinar que, se no momento de ser esmagada a cabeça, a vítima já estivesse morta, o derramamento de sangue teria sido menos abundante e a medonha ferida no rosto estaria mais seca. Mas, a despeito desta observação, não estava caracterizado o assassínio. Acontece, com efeito, que pessoas atingidas por uma congestão, resultante de qualquer causa, caem na estrada onde passam à noite, sujeitas a perigos, quando a morte não as tenha fulminado.
ACUSADO POR SI PRÓPRIO
Em todo o caso, uma cena teatral ia pôr fim à perplexidade da justiça, antes mesmo que ela tivesse tido tempo de se manifestar. No momento mesmo em que a polícia saía da cidade, um homem andrajoso, pálido de fazer medo, esquelético, apresentou-se dizendo:
— Senhores, peço-lhes para prender-me. Matei um homem na estrada e desejo que me levem à prefeitura.
O vagabundo falava com um pronunciado sotaque estrangeiro. Levado imediatamente à presença do procurador real, Capin, completou a confissão nos seguintes termos:
— Chamo-me Joseph-Ignace Platz e nasci na Suíça. Venho da Rússia, onde vivi muitos anos em condições quase de escravo. Abandonado pelo mundo inteiro, reduzido a viver de esmolas, cansado da existência miserável a que o destino me condenara, resolvera, desde algum tempo, cometer um crime, a fim de obrigar a justiça dos homens a me livrar do fardo da vida, uma vez que a Igreja me proibia de fazê-lo por minhas próprias mãos. Esta noite, um pouco depois das onze, encontrei, na estrada real de Estrasburgo, perto de Colmar, um viandante que praguejava. A ocasião que eu procurava apresentava-se bruscamente. Tomei-lhe um cacete que levava e vibrei-lho na cabeça, até que caiu morto. Agora, senhor procurador real, venho entregar-me; confesso meu crime e peço o castigo na forma da lei, o que será o fim de meus tormentos.
Esta estranha autodenúncia não deixou de surpreender um pouco a autoridade de Colmar, mas concordava com os elementos já conhecidos. Desde o momento em que um homem fora encontrado morto na estrada, com a cabeça esmagada pela mala postal, subsistia a dúvida sobre se esta esmagara um cadáver ou um ser ainda vivo; esta dúvida alguém acabava de dissipar, acusando-se de ter antes abatido a vítima a cacetadas.
O dever da justiça estava indicado. M. Capin denunciou Joseph-Ignace Platz por crime de assassínio e, depois do interrogatório pelo juiz de instrução Stackler, o denunciado foi recolhido, com mandado, à prisão de Colmar.
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Em vista da confissão do culpado, as investigações do juiz não foram nem longas, nem complicadas. Desde o primeiro momento ficou estabelecido que a vítima era um israelita de nome Heymann, que passara em Colmar o dia 2 de agosto. Contudo, Platz, que parecia indiferente à sua sorte, mantinha uma atitude desconcertante, que dava que pensar aos magistrados. Não havia dúvida de que, quando era levado ao gabinete de M. Stackler, renovava sua confissão sem reservas, e quando personagens oficiais, a quem a curiosidade atraía, visitavam sua célula, falava-lhes a mesma linguagem. Mas quando, no pátio da prisão, os guardas e os presos procuravam captar-lhe a confiança e conseguiam fazê-lo quebrar o mutismo, ouviam-no às vezes murmurar que não era o autor da morte de Heymann e que, se se acusava, era para que o desembaraçassem duma existência intolerável.
Quase sempre estava bisonho, taciturno, procurava a solidão e mal tirava os olhos de um pequeno livro de orações que lhe permitiram conservar. Passava horas inteiras na capela da prisão. Orava com fervor; chorava lágrimas ardentes e batia com a testa nos degraus do altar, a ponto de se ferir.
O juiz de instrução não procurou aprofundar mais o confuso caso. Apesar de que, perante a incerteza do laudo médico, a realidade do crime pudesse ser posta em dúvida, ele sentia-se perfeitamente seguro com a confissão do culpado. E, depois de seu relatório à Câmara do Conselho, o processo foi levado à Câmara das Acusações da Corte de Apelação de Colmar, que abrangia o tribunal do Alto Reno.
Os debates foram marcados para o dia 7 de dezembro. Mas, então, houve uma nova cena teatral neste caso tão fértil em incidentes. Nos dias que precederam, o acusado teve de ser submetido a novo interrogatório, como preceitua o Código de Instrução Criminal. Ora, apenas o conselheiro de Golbery lhe fez a pergunta de estilo (“Tem alguma coisa a acrescentar ou a modificar nas suas declarações precedentes?”), ele respondeu, com estupefação desse magistrado:
—Não sou o autor da morte de Heymann. Se me fiz esta falsa acusação, foi para cumprir um voto feito na Rússia. Quis fazer-me condenar à morte para ter mérito diante da Divindade.
M. de Golbéry disse-lhe, então, para declarar se tinha escolhido um defensor.
E foi esta a resposta:
— Meu defensor é Deus.
Mas como não se tratava ainda senão de coisas terrestres, Joseph-Ignace Platz viu ser-lhe designado um defensor, um jovem advogado dos tribunais de Colmar, de nome Géraldy.
UM CANSADO DA VIDA
Este caso pouco comum atraíra um público numeroso. Quando o acusado apareceu, todos olharam para ele. De uma palidez extrema, de cera, e cabelos pretos, Platz fazia o efeito de um crucificado. Tinha no rosto a expressão de uma tristeza incurável e, ao mesmo tempo, de completa resignação.
Seu primeiro gesto foi de saudar a imagem de Cristo, colocada acima da cadeira do presidente. Depois, persignou-se por diversas vezes e via-se, pelo rápido movimento dos lábios, que rezava.
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Era o conselheiro Golbéry quem presidia o tribunal. Depois do juramento dos jurados, da leitura do libelo acusatório e da chamada das testemunhas, procedeu ao interrogatório.
— Platz, levante-se. É acusado de ter, na noite de 2 para 3 de agosto último, dado, voluntariamente a morte a um tal Heymann.
E Platz, depois de inclinar-se respeitosamente perante seus juízes, respondeu:
— Seja feita a vontade de Deus!
— No decurso dos interrogatórios declarou que foi o autor desse crime. Persiste nestas declarações?
—Concordo que confessei. Mas não sou o culpado. Não falei a verdade. Sou um grande pecador, mas não um assassino.
— Por que então se acusou? Não é costume um inocente pedir que lhe levantem um cadafalso.
— Que quer? Estava cansado de viver. Mas, como a nossa santa religião proíbe que nos demos a morte por nossas próprias mãos, eu queria que me fosse dada por sentença da justiça pelo carrasco.
— Então diga-nos como empregou seu tempo na noite de 2 Para 3 de agosto.
— Às oito horas da tarde eu deixava o albergue além de Sé-lestat. Entre Guémar e Ostheun, a noite me surpreendeu e deitei-me debaixo de uma árvore. Um morcego esvoaçou em volta de minha cabeça. Não conseguindo afastá-lo, refleti: “Parece que teu lugar não é aqui”. E fui deitar-me um pouco mais além. Adormeci e, quando acordei, já era dia. Levantei-me e atravessei Ostheim. Estava a uma légua de Colmar, quando dois pequenos pastores me mostraram um ponto na estrada onde estava o cadáver de um homem com a cabeça esmagada. “Ah —pensei — eis aí uma ocasião de pôr um fim à minha miséria”. E resolvi acusar-me da morte desse homem. Pobre, abandonado de todos, o que fazer e em que me empregar na terra? Voltar para a Suíça, meu país natal, que havia deixado há tanto tempo? Ninguém, talvez, se lembraria mais de mim. Arrastar-me de prefeitura em prefeitura, para receber meus três soldos por légua. Que miséria horrível! Melhor será — pensei — refugiar-me junto de meu pai celeste, que saberá bem me reconhecer e distinguir os pecados que cometi dos que sou acusado sem culpa.
Estas palavras, que pareciam sinceras, causaram na sala uma impressão profunda, a que os magistrados e os jurados não ficaram insensíveis.
Com uma voz em que se sentia a compaixão, o presidente Golbéry insistiu ainda:
—Então, retrata-se?
E Platz responde:
— O que é verdade, é verdade; o que é falso, é falso. Não matei o judeu. Mas peço para acreditar que o matei.
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Tinham sido arroladas dezenove testemunhas. Os depoimentos da maioria nada tinham que ver com a morte de Heymann. Quando o carcereiro da cadeia de Colmar disse que Platz rezava com uma espécie de frenesi e que batia tanto com a testa nos degraus do altar, que se tinha feito uma ferida, o acusado levantou-se e interrompeu-o:
— Concordo, mas dessas orações, dessas lágrimas que derramei e desta ferida, também, só Deus sabe o segredo.
Durante os outros depoimentos, não tirou a vista do quadro representando Cristo na cruz. Seus lábios não cessavam de murmurar preces e o semblante parecia iluminado pelo fervor do seu misticismo.
Convidado, como é de lei, depois de cada depoimento, a formular objeções que tivesse a fazer em sua defesa, limitava-se a murmurar:
—Que Deus seja louvado! Façam de mim o que o Salvador quiser!
E recomeçou a rezar. Seu espírito, visivelmente, flutuava longe deste mundo.
A temperatura era glacial. Num dos intervalos da audiência, M. Géraldy perguntou-lhe se não sentia frio nos pés. Platz agradeceu-lhe com um sorriso melancólico e disse:
— Deus deu-me a vida. Deus a tirará quando chegar a hora, quer eu tenha, nesse dia, os pés quentes ou frios.
Tanto quanto era possível sustentar a acusação, de que não subsistia grande coisa depois da retratação de Platz, o conselheiro auditor Atthalin, ocupando a cadeira do ministério público, requereu, com hesitante convicção, um veredito afirmativo. Imediatamente mestre Geraldy levantou-se, vibrando de mocidade e de emoção, e a Gazeta dos Tribunais, então no seu terceiro ano, conservou-nos algumas passagens de sua generosa defesa:
— Senhores jurados — começou ele —, nunca, talvez, um defensor se encontrou numa situação mais espantosa do que a minha. Cabe-me lutar contra uma acusação rica de provas? Não. Na falta destas presunções graves vêm lançar vossos espíritos numa duvida que me compete dissipar? Também não. Que voz acusadora foi então que se elevou neste recinto? Uma só, a do meu infeliz cliente. É Platz que confirma a acusação. É Platz quem fecha a boca do seu advogado. Mas não é para isto que a lei me colocou na cadeira da defesa. “Entrego-lhe — disse-me ela — ponho entre vossas mãos este infeliz. Sede seu amigo; salvai-o de si mesmo. Que, graças a vós, ele não olhe mais a vida como o mais insuportável dos tormentos e o túmulo como o porto tranquilo onde a sorte cessará de persegui-lo! Sede seus amigos; ele quase que esqueceu esta palavra…”. Doce e nobre causa que eu aceitei com fervor e reconhecimento, que eu quero ardentemente defender!
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E, depois da discussão rápida de algumas acusações que o requisitório acreditara poder sustentar, mestre Géraldy analisou a confissão:
— Será preciso abordar esta confissão, quando tudo o que acabo de destruir, quando tudo nela é inverossímil, a não ser o desespero que a inspirou? Diante da ideia de uma condenação determinada por um tal motivo, não poderei eu evocar os tempos em que o juiz condenava por confissões arrancadas pela tortura? Que digo? Os infelizes submetidos a ela podiam, num instante, reunir toda sua coragem e resistir à violência. Mas onde encontrar uma alma capaz de resistir a um suplício por muitos anos? Quando cada dia traz sofrimentos sem uma esperança, miséria sem um socorro, dores sem consolação, compreende-se com que serenidade se deseja o repouso da morte, estremece-se quando se pensa que o meio mais seguro de consegui-lo é o que empregou este pobre-diabo. Estremece-se, repito, quando se pensa que, se a confissão do acusado bastasse para determinar a morte, o gládio da justiça serviria de arma ao suicida.
Ouvindo esta defesa que partia do coração, muitos olhos se umedeceram de lágrimas. Desde muito, o jovem advogado ganhara a causa1.
Fonte: A Cigarra/SP, edição de julho de 1938.
Fizeram-se brevíssimas adaptações textuais.
Ilustração: PS/Craiyon.
Nota:
1Platz foi, realmente inocentado, conforme publicado na Gazette des Tribunaux (IIIme. Anée Judiciaire): “Sentença declarando Joseph-Ignace Platz inocente do homicídio do qual ele se acusa para se livrar da própria vida (1º de janeiro)”. (N. do E.)
Barão amigo, esse título do conto faz a gente ler o conto na hora rss rss exemplo de título perfeito, que aguça a curiosidade do leitor. Impossível ler o título do conto e não prosseguir lendo.
ResponderExcluirSir, concordo com você. Mas não é um conto...
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