OS SETE PECADOS MORTAIS - Conto Clássico Sobrenatural - Selma Lagerlöf
OS SETE PECADOS MORTAIS
Selma Lagerlöf
(1858 – 1940)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
O Maligno, querendo mofar e escarnecer de um monge, cobriu-se com uma capa ondulante e um grande chapéu de abas caídas, sob os quais era difícil reconhecê-lo e, assim disfarçado, dirigiu-se à catedral, onde nesse dia o monge esperava os seus penitentes no confessionário.
—Muito venerando pai — disse o Maligno —, sou agricultor e filho de agricultores. Levanto-me com o sol, sem jamais esquecer as minhas orações da manhã, e, em seguida, trabalho o dia todo nos campos. Alimento-me de pão e laticínios, e, quando desejo regalar-me com meus amigos, encho-os de frutas e de mel. Sou o único arrimo de meus velhos pais; sou solteiro porque nunca me interessei pelas mulheres, frequento bastante a igreja e ofereço um dízimo de tudo quanto possuo. Venerando pai, ouviste minha confissão. Queres absolver-me?
—Meu filho — respondeu o frade —, és o homem mais perfeito que já encontrei. De boa vontade te absolveria. Deixa-me, somente, contar-te primeiro um caso que recentemente aconteceu nesta região. Hás de te alegrar com ela, porque ouvirás referências a muitas ações louváveis, e, contudo, poderás dizer aqui mesmo o que aqueles que as praticaram não passavam de pobres pecadores comparados contigo.
—Pai, enches-me de orgulho — disse o Maligno.
—Livre-me Deus de tal pecado! — respondeu o frade. — Depois de ouvires a minha narrativa, pensarás diversamente.
E começou:
“— O nobre cavaleiro que possuía o grande castelo da outra margem do rio, resolveu um dia casar sua filha com um homem rico e poderoso que muito a amava. Ora, a jovem entristeceu-se com isso, porque já se havia comprometido com outro.
Escreveu, então, a seu bem-amado, contando-lhe que seu pai, sem a menor consideração por seus rogos, forçava-a a desposar outro homem. “Digo-te mil vezes adeus — escrevia — e suplico-te que não tentes contra a tua vida por minha causa, porque no íntimo de meu coração continuo fiel a ti”.
Mas o cavaleiro seu pai interceptou essa carta e destruiu-a. Chegou o dia do casamento. A nobre senhorita recebeu-o com muitas lágrimas, mas, quando entrou na igreja, não chorava mais. A dor marcara-lhe as feições e todos a lastimavam ao vê-la. O senhor seu pai percebeu, também, que o desgosto desfigurava sua filha e atemorizou-se com sua má ação. De volta da igreja chamou-a, fechou-se com ela e disse:
— Querida filha, agi detestavelmente para contigo.
E, embora fosse um homem muito orgulhoso, confessou-lhe que roubara sua carta. Tinha receado, dizia, que seu bem-amado, informado do dia do casamento, acudisse com seus escudeiros e raptasse a desposada.
Ela respondeu-lhe:
—Que lhe seja levado como desculpa, meu pai, não haver o senhor compreendido o mal que me causou.
E afastou-se sozinha para o balcão.
Aí foi procurá-la seu marido.
—Querida — disse —, por que teu rosto revela uma dor tão grande?
A desposada respondeu:
—Porque amo um homem a quem havia jurado fidelidade.
Ele, porém, disse-lhe:
—Não te aflijas pelo fato de te haveres tornado minha mulher. Sinto tanto amor por ti que ninguém te amaria mais, nem te tornaria mais feliz do que eu.
—Assim pensam todos aqueles que amam — respondeu ela tristemente.
— Dize-me apenas o que poderei fazer para afastar de teu coração o desespero — disse ele — e eu te provarei que é verdade.
A desposada, então, reuniu toda sua coragem, pensando: “Dir-lhe-ei tudo. Deus talvez abrande seu coração”. E confiou-lhe que ela e seu bem-amado havia jurado que, caso um fosse traído pelo outro, o abandonado se mataria no dia do casamento.
—Por isso hoje o meu amigo se matará — concluiu; e deixou-se cair aos pés do marido. — Permite-me que o procure, fale com ele e o empeça! — disse com voz angustiosa.
Havia em seu desespero uma força tão persuasiva que o marido, embora pensando que, se a deixasse encontrar-se com o seu amado, jamais tornaria a vê-la, dominou-se e respondeu:
—Procede como achares melhor.
Ela se ergueu rapidamente e gradeceu-lhe chorando. Depois reuniu os convidados, que já estavam à espera ao redor das mesas servidas, impacientes por começar o festim, após a longa cavalgada para a igreja e a longa missa.
— Nobres senhores e damas — disse-lhes a desposada —, preciso confiar-lhes que, com a autorização de meu marido, vou-me dirigir à residência do amigo que abandonei, porque ele se está preparando para se suicidar esta noite. Devo dizer-lhe que só o traí compelida e forçada. Não se surpreendam que eu vá em pessoa, porque nem carta nem mensageiro o convenceriam. Mas peço-lhes que, em minha ausência, comam, bebam e se regozijem. Voltarei assim que tiver salvo a vida daquele a quem amo.
Todos os convidados, comovidos com a sua angústia, responderam:
— Não queremos absolutamente nos regozijar quando tu suportas um desgosto tão grande. Vai e volta. Quando voltares, começaremos o banquete.
E afastaram-se das mesas.
Chegado ao pátio de honra, a desposada ouviu um grande tumulto na direção da cozinha. Um pajenzinho tinha comunicado ao cozinheiro que o festim só se realizaria daí a algumas horas. Pesaroso com a ideia de que a sua fama de hábil profissional ia ficar comprometida, o cozinheiro derrubou com uma bofetada o pajenzinho e dispôs-se a sová-lo.
A desposada acudiu em socorro do pajem e o cozinheiro, comovido por seus rogos, soltou a criança.
E depois exclamou:
— Louvado seja Deus por tê-la feito tão meiga! Longe de mim aumentar tua tristeza.
E, sem uma palavra sequer de cólera, retornou aos seus espetos.
A desposada atravessou sozinha a grande floresta, porque desejava chegar sem escolta à residência de seu amigo, da mesma forma que se vai à capela da Santa Virgem quando se está em grave perigo. Mas na floresta habitava um proscrito que vivia de assaltos.
Ele viu passar a desposada. Ela trazia nos cabelos uma coroa de ouro, anéis, uma pesada corrente de ouro à cintura, pérolas ao pescoço. O ladrão pensou: “Eis uma mulher indefesa; poderei facilmente apossar-me de suas joias. Elas permitirão que eu vá para outro país onde serei um homem respeitado e levarei vida honesta.”
Mas, quando a desposada se aproximou dele e ele viu seu rosto, toda a sua força o abandonou, porque Deus a fizera muito meiga. Ele pensou: “Não lhe posso fazer mal; é uma desposada. Como a deixaria chegar sem suas joias à casa nupcial?”. E temeu a Deus que criou a mulher tão fraca e tão forte; e deixou-a prosseguir seu caminho.
Na mesma floresta vivia também um santo eremita. Ele mortificava o corpo dormindo apenas um dia em cada sete. Obrigava-se, se alguma coisa o impedia de dormir na noite que havia marcado, a velar mais seis outras noites. Ora, o seu sétimo dia chegava ao termo sem que ele tivesse absolutamente descansado, porque grande número de doentes o tinham perturbado. Acabava de despedi-los e dispunha-se a deitar-se para conciliar o sono, quando avistou a desposada que passava quase a correr através da espessa floresta. E o eremita pensou: “Como esta mulher, que parece tão apressada, fará para atravessar o rio que as últimas chuvas transformaram em caudal?”. Abandonou o seu leito de folhas, acompanhou a jovem até o rio, levou-a nos ombros pelo vau. De volta à sua caverna, como seu tempo de descanso tivesse terminado, teve de velar mais seis dias e mais seis noites, por causa daquela desconhecida. Mas não se lamentou por isso, porque ela irradiava tanta meiguice que todos aqueles que a viam sentiam-se felizes em se privar de alguma coisa por sua causa.
Finalmente, a desposada chegou à residência do seu amigo. Ele se havia fechado e puxara os pesados ferrolhos de sua porta. Ela bateu, mas ele não abriu, porque já havia desembainhado a espada a fim de atravessá-la em seu corpo.
A jovem, sufocada pela angústia, não gritou, nem chamou. Mas suas lágrimas caiam pesadamente e, através da grossa porta de carvalho, o rapaz percebeu-lhe os soluços. Correu a abrir a porta.
Ela se conservou diante dele de mãos juntas e disse-lhe que somente compelida e forçada é que consentira em desposar outro Quando ele viu que continuava sendo o único a possuir o seu amor, prometeu-lhe não se suicidar. Ela aninhou-se então em seus braços e beijou-o, e ambos sentiram num minuto toda a alegria e toda a dor que o coração pode conter.
Depois, ele lhe disse:
— Agora vais voltar, porque pertences a outro.
E ela respondeu:
—Como poderei fazê-lo?
O cavaleiro que a amava desprendeu-se de seu abraço e disse-lhe:
— Não ofenderei àquele que te deixou vir até mim.
Mandou selar dois animais e levou a jovem de volta a casa de seu pai."
O frade, depois de ter contado ao Maligno toda essa história, calou-se. Em seguida, perguntou-lhe quem, em sua opinião, fizera maior sacrifício, porque o frade era um homem cheio de sabedoria e não ignorava que pessoa alguma é tão isenta de pecados quanto aquele desconhecido pretendia ser. Com essa narrativa, esperava descobrir qual era o seu pecado predileto entre os sete pecados mortais. Teria sido o pai, ou o esposo, ou os convidados, ou o cozinheiro, ou o salteador, ou o eremita quem fizera maior sacrifícios?
Conforme a resposta, o frade saberia se a alma do seu penitente era sujeita ao orgulho, ao ciúme, à gula, à avareza, à preguiça ou à luxúria. Porque aquele homem não duvidava que a virtude que seu penitente mais admirasse em outrem seria aquele que ele teria mais dificuldade em imitar.
O Maligno estava por demais preocupado com sua artimanha para desconfiar da astúcia do frade.
— De fato — disse —, não é coisa fácil responder à tua pergunta. Parece-me que o marido não fez um sacrifício inferior ao do namorado; e que os convidados, em sua renúncia, não fizeram menos que o salteador. Penso que todos eles merecem grandes elogios.
—Pelo amor de Deus! — exclamou o frade. — Diz-me que ação preferes ou se não consideras nenhuma delas muito meritória!
— Certamente, meu reverendo pai — respondeu o Maligno —, que elas me parecem todas difíceis de realizar, e eu não poderia colocar uma acima de outra.
O frade inclinou-se para seu penitente, e, com voz arquejante, murmurou:
— Suplico-te que reflitas e me apontes aquele que, na tua opinião, fez maior sacrifício.
Mas o Maligno recusou-se e pediu absolvição.
— Nesse caso, és culpado de todos os sete pecados mortais — exclamou o frade apavorado. — Deves ser o próprio diabo e não um homem!
E o frade correu para fora do confessionário e, refugiando-se junto ao altar, começou a recitar a forma de exorcismo.
— Vade retro, Satanás!
Quando o Maligno viu que se havia traído, estendeu seu grande manto como se fossem asas e subiu por entre as escuras abóbadas da igreja, semelhante a um morcego.
Não apenas falhara em seu intento, mas, pela graça de Deus, seu mau desígnio redundou em bênção. Porque a narrativa do frade serviu durante muito tempo para penetrar no coração do homem. Para quem sabe utilizá-la, essa narrativa é tal uma rede na mão do pescador. Lança-se a rede ao mar para colher os peixes e lança se essa narrativa na alma humana para fazer os pecados subirem até a luz do dia a fim de identificá-los e combatê-los.
Fonte: Síntese/RJ, edição de novembro de 1945.
Fizeram-se brevíssimas adaptações textuais.
Ilustrações: PS/Copilot e PS/Perchance.
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