A LINHA DE MONTAGEM ÓRFICA - Conto de Ficção Científica - José Ángel Conde
A LINHA DE MONTAGEM ÓRFICA
Uma história de José Ángel Conde
Segundo o quadro “El Génesis”, de Carlos Mensa
Tradução de Paulo Soriano
Ninguém tinha pedido autorização à carne para ser violada. A alma teria de esperar novamente a sua vez, agachada atrás da parede amniótica que agora constituía o seu único céu e horizonte, depois de ter percorrido as estradas da metempsicose. A carne estava em constante peleja consigo mesma e com o exterior para conseguir uma forma que variava com a idiossincrasia própria de cada unidade espaço-temporal em que se desenvolvia. O abrir de olhos deveria acontecer mais uma vez e tudo se desenrolaria segundo a lógica dos ciclos de transmigração. Mas desta vez não seria um alumbramento voluntário. Desta vez não seria um nascimento, mas um assalto às regiões ocultas da alma para arrebatar aquilo que não deveria eclodir prematuramente. As paredes internas da concha produziam movimentos sísmicos, golpeadas por uma vontade externa que se opunha à do éter infinito, uma entidade que só compreendia o físico e o corruptível, que não professava senão um ódio profundo por tudo o que suas extremidades não pudessem agarrar e privar de essência e de livre arbítrio. Esse ser ou seres não tinham rosto nem forma, e talvez por isto a sua principal motivação vital fosse a ânsia de apoderar-se de quem os tinha, de tudo o que existia, para aprisioná-lo no seu próprio plano aberrante, seu reino dimensional. Essa entidade era uma nuvem sombria que só desejava, essa forma informe…
O recém-nascido é produzido e logo começará produzir por si mesmo. Como ele, milhões se movem ao longo da correia transportadora, todos tão necessários, embora jamais possam ter consciência de sua verdadeira finalidade. Com o passar do tempo, nossa manufatura evoluiu tanto que lhes foram arrebatados os deuses e crenças, e se lhes restou apenas sua mais imediata e imprescindível fisicalidade. Nunca mais voltariam a ser únicos, mas isso não mais era necessário, porque no seu conjunto cumpriam exitosamente a função para qual haviam sido concebidos. São artefatos de extraordinária precisão, o auge da ciência de nossa raça, e nos servem muito bem. Um prodígio da evolução. A produção em massa não nos permite parar e apreciar seu acabamento como ele merece. Devemos verificar cada um deles, mas raramente refletimos sobre o que esse produto particularmente implica. Observo pelo monitor a composição de um, em particular, e analiso todos os seus dados quanto à forma, temperatura, peso... Mais uma vez, um trabalho perfeito e só tenho que esperar que ele se abra e saia. O invólucro se desdobra como uma vagina fria que é excitada mecanicamente, lubrificando um óleo que amolece a crosta metálica, rachada em fendas crescentes que se assemelham ao circuito da placa-mãe de qualquer um de nossos líderes informáticos. É a sua imagem e semelhança miniaturizada, mais controlável que nos tempos em que cometíamos aqueles erros genéticos. Sem rosto, sem extremidades, o esqueleto voltado para fora, formado por pequenas turbinas e pistões capazes dos mais rápidos e contínuos movimentos, produzindo enormes quantidades de energia. Somente se moverão quando lhes for mandado, somente pensarão o que lhes foi programado. Levanto o ovo em direção à parede escura da nave industrial, similar a um infinito horizonte noturno, e observo como minha luva isolante o mantém igual à superfície de um planeta onde o produto estivera deitado, enquanto a graxa negra de seu sangue reluzente se funde com a casca de celulose que se vai derretendo. Logo estará pronto para funcionar.
Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI .
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