O LADRÃO DE CADÁVERES - Conto Clássico de Horror - Robert Louis Stevenson

O LADRÃO DE CADÁVERES

Robert Louis Stevenson

(1850 – 1894)



Todas as noites nós nos reuníamos na taberna de George, em Debenham: o empresário do serviço funerário, o dono da taberna, Fettes e eu.

Às vezes vinham outros amigos conversar conosco, mas nós quatro éramos infalíveis, e não havia chuva ou tempestade que nos impedisse de vir àquela palestra. Fettes era um velho alcoólico sem educação, mas muito inteligente; tanto que conseguia viver sem exercer profissão alguma. Chegara a Debenham ainda muitos antes desta aventura e tornara-se, com o tempo um verdadeiro burguês da cidade. O capote azul, com que andava dia e noite, era considerado uma antiguidade local, como a torre da igreja.

Sua presença assídua na sala da taberna de George, sua obstinada abstenção de quaisquer atos religiosos e seus vícios crapulosos tinham-no tomado o homem mais conhecido da cidade.

Tinha poucas e vagas opiniões sobre os principais problemas desta vida e afirmava-os batendo na mesa com mãos formidáveis, que faziam tremer toda a taberna.

Bebia regularmente uns cinco copos de rum todas as noites e passava a maior parte do tempo sentado, imóvel, com o copo na mão direita, num estado de saturação de álcool, que o punha melancólico. Nós o chamávamos o “doutor”, porque o sabíamos possuidor de alguns conhecimentos de medicina e já o tínhamos visto, em casos de urgência, reduzir uma fratura ou acertar uma luxação; mas, fora isso, nada sabíamos sobre seus antecedentes.

Uma noite, o taberneiro só pôde vir se sentar junto de nós depois das nove horas;

O albergue, que George organizara no primeiro andar do prédio, abrigava agora um doente, um proprietário dos arredores, que sofrera um ataque de apoplexia quando se dirigia ao Parlamento. Como era um homem rico, seus amigos tinham mandado chamar um médico famoso de Londres tratá-lo.

Era a primeira vez que acontecia semelhante coisa me Debenham, porque a inauguração da linha férrea datava de poucas semanas e estávamos todos muito impressionados com isso.

O médico chegou — disse George, sentando à mesa.

Como se chama ele? — perguntei.

Dr. MacFarlane.

Fettes estava no fim do terceiro copo e, estupidificado pela embriaguez, ora bamboleava a cabeça, ora olhava fixamente para diante. Quando o taberneiro disse o nome do médico de Londres, ele repetiu esse nome por duas vezes. Da primeira vez, em tom perfeitamente tranquilo, mas, da segunda, com uma súbita emoção.

Sim — disse George. — Li seu nome na etiqueta da mala: Dr. Wolfe MacFarlane.

Fettes tornara-se subitamente lúcido. Seus olhos retomaram a vivacidade; sua voz voltou a se tornar forte e firme; a língua, desembaraçada.

Essa transformação foi tão repentina e completa que nós tivemos a impressão de ver um morto ressuscitar.

Peço-lhe que me desculpem — disse Fettes —, mas não estava prestando atenção ao que diziam. Que é esse Wolfe MacFarlane?

O taberneiro repetiu sua narração e Fettes, visivelmente agitado, exclamou:

Não é possível! Não é possível!. Em todo o caso, quero ver esse homem, encontrar-me com ele face a face.

O senhor conhece-o? — perguntou o empresário do serviço funerário.

——Deus não me livrou disso! — foi a resposta de Fettes. — Mas esse nome é por demais típico. Parece-me estranho que haja dois homens chamados assim. Diga-me, George: ele já é velho?

Hum… — fez o taberneiro. — Já não é rapaz; tem alguns cabelos brancos, mas parece mais moço que o senhor.

Pois é mais velho, muito mais velho! — afirmou Fettes, batendo fortemente na mesa. — Foi o rum que me deu este aspecto. Esse médico, decerto, tem uma consciência tranquila e boas digestões! Eu disse consciência? Então ouçam-me. Certamente, não duvidarão se eu lhes disser que já fui um bom sujeito, um cristão perfeito, não é verdade? Mas eu não o direi por que nunca soube dissimular. Dissimular para quê? — continuou exaltando-se. — Poderia modificar todo aspecto de meu corpo, minhas palavras, minhas ações, mas o cérebro ficaria o mesmo — concluiu, batendo com força na fronte calva.

Mas — ousei observar, após uma longa e penosa pausa. — Não sei em que o fato de conhecer esse médico poderia alterar a boa opinião que George tem a seu respeito.

Fettes, ao que parece, não ouviu estas minhas palavras. Parecia mergulhado em uma profunda reflexão, que terminou subitamente, dizendo com ar resoluto:

Sim. É preciso que eu veja esse homem face a face.

Ficamos de novo em silêncio, mas logo se ouviu uma porta bater no primeiro andar e passos ressoarem na escada.

Aí vem o médico — disse o taberneiro.

Era bastante dar dois passos para ir do lugar onde estávamos até corredor, que comunicava a escada com a rua; e havia uma porta do corredor para a sala da taberna. Para alcançar a porta da rua e o carro, que aí o esperava, o médico tinha que passar diante da porta, que comunicava com a taberna; porém, vê-lo passar não era o bastante para Fettes: ele queria, como dissera, encará-lo face a lace.

Dirigiu-se com passo firme e rápido para o corredor, de medo que, ao deixar o último degrau da escada, o médico se viu diante de nosso velho amigo.

O Dr. MacFarlane era um homem alto e vigoroso. Os cabelos brancos faziam realçar sua face pálida e plácida, mas de expressão enérgica. Estava vestido não só com distinção, mas ainda com opulência. Sua gravata era alta, dobrada com apuro e trazia ao braço um amplo manto de pelúcia.

George observara bem. Era um homem idoso, mas tão bem conservado que representava idade menor do que a verdadeira. E parecia habituado a viver numa atmosfera de conforto e consideração.

Formava, portanto, o mais impressionador contraste com o nosso amigo Fettes — calvo, gordalhufo, acanalhado pelo álcool — que fora afrontá-lo no pé da escada.

MacFarlane! — exclamou Fettes, com voz estridente, mais em tom de arauto do que de amigo.

O médico deteve-se com um movimento brusco e quase escandalizado, era como se uma interpretação feita assim, em tom de intimidade, lhe parecesse insólita e ferisse sua dignidade.

Toddy Mac Farlane — repetiu Fettes.

Então, o médico londrino estremeceu fortemente. Fitou o velho ébrio com estupefação, olhou em torno de si com ar um pouco ansioso e murmurou afinal, com voz trêmula, em que havia evidentemente um laivo de terror.

Fettes! O senhor aqui?

Sim, eu. Julgava-me também morto? Não. Continuo a pesar sobre sua consciência.

Cale-se! Cale-se! — exclamou o médico. — Estava tão longe de esperar encontrá-lo. O senhor parece-me abatido, nervoso. Confesso que tive dificuldade em reconhecê-lo. Mas tenho muito prazer, muito prazer em encontrar uma ocasião de… Infelizmente, estou agora tão apressado que apenas lhe posso dedicar alguns instantes. Tenho o carro à minha espera e não posso perder o trem. Mas, sim… Dê-me seu endereço e, em breve, receberá notícias minhas. Quero fazer alguma coisa pelo senhor. Tenho a impressão de que se acha em situação difícil. Mas havemos de acomodar as coisas do melhor modo, em nome de nossa velha amizade.

Dinheiro!... — exclamou Fettes. — Dinheiro do senhor? O que me deu naquele dia, se não o apanhou, ainda deve estar caído na lama em que o joguei.

O Dr. MacFarlane esforçava-se por falar em tom superior, mas a energia daquela recusa perturbou-o de novo e seu olhar tomou uma expressão de ódio, ao mesmo tempo de terror intenso.

Como quiser, meu caro amigo — disse ele. —Não pensei que minha oferta o ofendesse! Não gosto de importunar pessoa alguma. Portanto. deixo-lhe meu endereço e…

Não o quero... Não quero nem saber onde vive. Ouvi seu nome e quis verificar se há um Deus! Agora estou certo de que não há. É o bastante. Deixe-me em paz!

Mantinha-se ainda de pé no meio do corredor. Ficou imóvel. Para sair, o médico teria que se esgueirar entre ele e a parede. Hesitou ante essa humilhação. Ficou ainda mais pálido, suas mãos tremeram nervosamente.... De furor ou de medo? Não sei dizer. Mas, notando que o cocheiro do carro observara a cena e que nós também assistíamos a ela, decidiu-se pôr termo àquilo. Encolheu-se, encostou-se à parede e, coleando como uma serpente, precipitou-se para a rua.

Mas sua provação não havia ainda terminado. Fettes deteve-o à passagem, segurando-o por um braço, para perguntar com voz mudada e dolorosa:

Tornou a vê-lo?

O ilustre médico de Londres lançou um grito agudo e, arrancando o braço das mãos do ébrio, afastou-se, correndo como um ladrão surpreendido.

Ficamos todos imóveis, petrificados pelo espanto, e só recuperamos o raciocínio quando ouvimos o ruido do carro afastando-se.

Se os óculos de ouro do médico não tivessem ficado partidos na calçada, diante da porta, seria de se pensar que tínhamos sonhado.

Fettes estava lívido, mas conservava o olhar altaneiro com que interpelara o Dr. MacFarlane.

Valha-me Deus, amigo! — exclamou George. — Que significa isto? Que estranha coisa o senhor disse a esse homem!

Fettes sentou-se de novo à nossa mesa e, fitando-nos bem, disse:

Querem um conselho? Não falem nesse caso. O Dr. MacFarlane é um homem perigoso. Ainda não houve quem não se arrependesse de o ter conhecido.

E, sem mesmo acabar seu terceiro copo de rum, saudou-nos e saiu.

Nós ficamos até alta noite a discutir aquele misterioso incidente e apontamos sobre ele várias hipóteses, todas bem diversas da verdade. Mal sabia eu que era ali o mais apto para desvendar a trágica verdade e creio que, até hoje, nenhum outro homem a conhece.


*


Muito moço ainda, Fettes estudava medicina na escola de Edimburgo. Tinha, então, um dom especial: o de aprender à primeira audição e tirar proveito de tudo quanto aprendia.

Os mestres, em pouco o tomaram em consideração como um estudante, que ouvia atentamente as lições e possuía admirável memória.

Nessa época, havia ali um professor independente de anatomia prática, que lecionava fora das muralhas da escola e a quem chamarei, resta narração, o Dr. K. Seu nome foi, mais tarde, demasiadamente conhecido para que possa citá-lo aqui. Mas, nessa época, ele se ocultava em Edimburgo, sob um nome falso, e tinha ali grande fama, graças a sua ciência e habilidade, em contraste com a mediocridade do professor da escola.

Pelo menos, os estudantes o admiravam e Fettes acreditou, como muitos de seus colegas, que seu futuro científico dependia das lições desse mestre.

K. parecia um bom sujeito, de espírito escarninho e jovial, que apreciava tanto uma pilhéria ferina como um belo trabalho anatômico. Ora, Fettes era forte em uma e outra cousa. Era natural que caísse nas boas graças do professor, de quem, logo ao segundo ano de estudos, se tornou o adjunto. Nessa qualidade, era ele quem tomava conta do anfiteatro e da sala de aulas; respondia pela ordem e disciplina nesses lugares e tinha o encargo de obter os cadáveres para estudos anatômicos.

Para poder dar boa conta dessa parte de seus encargos — sem dúvida a mais espinhosa e delicada —, estabeleceu residência primeiramente próximo à casa do Dr. K. e, depois, na própria casa do professor, junto à sala dos estudos anatômicos. Muitas noites fatigado por prazeres violentos e passeios em que tinha andado com outros estudantes, era forçado a se levantar do leito com as mãos trêmulas e olhos ainda perturbados pelo álcool, para abrir porta aos coveiros do hospital, que lhe traziam corpos de mortos para os estudos no dia seguinte.

Ajudava-os a transportar seus tétricos fardos para as mesas do anfiteatro, pagava-lhes o carreto e ficava aí, sozinho, com aqueles tristes restos humanos. Mas já habituado a essa horrenda companhia, tratava de dormir para reparar as forças gastas nas orgias da noite e poder resistir aos trabalhos do dia.

Era preciso ter um cérebro singularmente sólido para resistir a semelhante existência. Poucos rapazes poderiam se manter assim insensíveis a essa vizinhança com mortos.

Mas Fettes era dotado de um espírito fechado essas considerações.

Seu zelo moral consistia em ser bem-visto pelos professores e colegas; e desforrava-se da atividade grave e solícita desenvolvida durante o dia, passando a noite em tabernas das mais vis. Sua consciência ficava satisfeita cem esse equilíbrio A grande preocupação de sua vida era o aprovisionamento do anfiteatro do Dr. K. Como o número de alunos aumentasse constantemente, o Dr. K. não cessava de se queixar da falta de cadáveres e as providências para obtê-los eram não só desagradáveis como capazes de atrair sobre sua cabeça consequências perigosas.

O professor não admitia que ele lhe relatasse as dificuldades, que encontrava nesse trabalho.

Não quero saber — dizia ele. — Meu papel limita-se a pagar os corpos que me trazem.

Os estudantes tinham o ouvido dizer isto muitas vezes e admiravam os esforços e habilidade de Fettes, que nunca os deixava sem corpos para o estudo. Mas jamais lhes veio à cabeça que seu colega obtivesse cadáveres por processos delituosos.

Fettes calava-se discretamente, mas, em seu íntimo, revoltava-se contra a inconsciência e o egoísmo do mestre, que o deixava arcar sozinho com os inconvenientes e perigo daquele trabalho. Mas, por sua vez, abstinha-se de interrogar os homens sórdidos e repelentes, que, pela madrugada, lhe vinham trazer cadáveres. Muitas vezes evitava de fitá-los para não ver o olhar terrível e apavorado desses homens, para não ser obrigado a notar que eles não pareciam tranquilos.

Um dia — numa madrugada de setembro —, essa sua política de silêncio foi duramente posta à prova. Uma dor de dentes impedira-o de dormir durante toda a noite; somente às três horas adormecera afinal, esmagado pela fadiga; mas, pouco depois, repetidas pancadas à porta o despertaram. Era já quase dia. Os vampiros vinham muito tarde desta vez.

Fettes, com o cérebro ainda entorpecido pelo sono, veio com uma vela até a escada para iluminá-la. Viu-os esvaziar o saco sobre a mesa de dissecação, pagou-lhes o serviço e, quando eles iam se retirando, olhou distraidamente para o cadáver.

Era o de uma mulher e, ao vê-la, Fettes estremeceu num sobressalto, exclamando:

Mas… Santo Deus! É Jane Galbraith! Eu a vi, ainda ontem, boa, sadia, risonha… Não é possível que vocês obtivessem esse corpo sem um crime.

O senhor está enganado — disse um dos homens brutalmente. E fitava-o com um olhar tão ameaçador e cruel que Fettes, covardemente, calou-se e deixou-o partir em silêncio.

Mas quando ficou só, examinou a morta e encontrou em seu corpo sinais inequívocos de morte violenta. Não, ele não se enganara. A pobre moça, que ainda na noite anterior rira, gracejara e bebera com ele, fora assassinada.

Cheio de horror, esperou ansiosamente a hora da abertura do anfiteatro para comunicar o fato a seu superior imediato, o ajudante principal do Dr. K. Era um médico ainda moço, o Dr. Wolfe MacFarlane, muito estimado entre os estudantes porque viajara por toda a Europa e entendia muito de coisas de teatro, e era excelente cavaleiro.

Suas relações com Fettes eram tão íntimas que, muitas vezes, quando os cadáveres para estudos se tornavam raros, iam juntos profanar cemitérios de aldeias distantes.

Quando chegou nesse dia, ouviu a revelação de Fettes, examinou a morte disse apenas:

Eu acho que o melhor é ficar calado.

Mas Jane era muito conhecida na cidade. Outros poderão reconhecê-la.

Você dirá que não a reconheceu — replicou MacFarlane, friamente. Pensa que é esta a primeira vez em que tal acontece? Se denunciar o caso porá o Dr. K. em dificuldades, que talvez o atinjam também. Eu nada diria, embora esteja convencido de que todos os corpos que nos trazem são de assassinados.

Oh! MacFarlane…

Será possível que nunca o suspeitasse?

Suspeitar é uma coisa…

E ter a certeza é outra… Bem o sei. Mas o melhor é fingir que não reconhecemos isto — disse o médico, batendo com um lápis no peito da pobre Jane.

Dominado por essa frieza, Fettes decidiu seguir seu conselho e o corpo da infeliz foi dissecado pelos estudantes, que não a reconheceram ou fingiram não reconhecê-la.

Mas, passados alguns dias, uma tarde, entrando inesperadamente no anfiteatro, Fettes aí encontrou MacFarlane conversando com um desconhecido.

Era um homem baixo, pálido e moreno, com olhos intensamente pretos; seu rosto era inteligente, mas seu todo revelava um homem grosseiro. Porém, o mais singular é que falava ao médico em tom autoritário, irritando-se à menor objeção. Embora MacFarlane não o apresentasse, ele começou logo a conversar com Fettes, manifestando grande simpatia por ele, levando-o a uma taberna e fazendo-lhe as mais amplas confidências sobre seu passado. Essas narrações revelavam um aventureiro sem a menor sombra de escrúpulos, mas a vaidade de Fettes estava tão lisonjeada por suas atenções que ele aceitava sua companhia.

Como vê, eu sou um tipo pouco vulgar, mas MacFarlane — Toddy, como eu o chamo — ainda é mais curioso do que eu. Toddy! — disse ele de repente ao médico, que os acompanhava, mas se mantinha em silêncio — Toddy, vá fechar aquela porta que o vento está me incomodando… Ele me odeia — continuou o estranho personagem, enquanto o médico se apressava a executar sua ordem. — Não é verdade, Toddy? Não é verdade que tu me tens ódio?

Não me chame por esse nome maldito — resmungou MacFarlane.

Está vendo como ele me fala! — observou o outro rindo às gargalhadas. — Ah! Toddy! Com que gosto tu me enterrarias uma faca, hein?

Somente ao se despedir, o homem pálido e moreno disse que se chamava Gray. Tinha bebido tanto que se afastou cambaleando; Fettes também estava assaz perturbado. Apenas MacFarlane se mantinha sóbrio e conservava todo o seu juízo.

Mas, no dia seguinte, não veio à lição de anatomia. Fettes lamentou-o, porque estava ansioso por interrogá-lo sobre suas relações com Gray e as razões por que tolerava suas insolências. À noite, andou pelos lugares habituais para ver se o encontrava, mas em vão. Recolheu-se a seu quarto e às quatro horas da madrugada foi despertado por pancadas na porta. Foi abrir e ficou estupefato vendo MacFarlane, que descia de sua caleça e fazia-lhe sinal para que o ajudasse a tirar do veículo um daqueles longos e tétricos fardos, que ele tão bem conhecia.

Como! — exclamou Fettes. — Onde arranjou você isto?

Cale-se! — disse o médico, quase brutalmente.

Levaram o fardo pela escada e, chegando ao anfiteatro, MacFarlane, colocando-o a um canto, disse bruscamente:

Veja quem é.

Fettes hesitou, com uma horrível desconfiança; mas, a um olhar mais intenso do médico, baixou o pano, que envolvia a cadáver. Imediatamente, a lanterna caiu-lhe da mão, tal o horror que sentiu ao ver rígida e imóvel a boca que, algumas horas antes, ria e bradava “Toddy”!

Não preparado para aquela revelação hedionda, o estudante curvava a cabeça, sem ânimo para fitar o médico. Porém este, em tom perfeitamente calmo disse:

Reserve a cabeça para Richardson, que precisa estudar um cérebro. Mas, é verdade… — continuou em tom mais animado. — Não se esqueça de me pagar.

Pagar o quê? — perguntou Fettes, atônito.

Isto. Eu não lhe poderia fornecer um morto grátis, nem você pode receber um cadáver sem pagá-lo. Isso nos comprometeria a ambos. Este é um caso idêntico ao de Jane Galbraith. Quanto mais irregulares são as coisas, mais nos devemos ter cuidado de agir como se não o fossem. Onde é o velho K. guarda o dinheiro?

Ali — disse Fettes, mostrando um canto da sala.

Dê-me, então, a chave — disse MacFarlane, com perfeita tranquilidade.

Abriu o armário, tirou o dinheiro de uma gaveta e o caderno que ali havia para escriturar os pagamentos. Pôs o dinheiro no bolso e disse:

Vê? Isto é a primeira prova de boa-fé, o primeiro ponto para garantir sua segurança. Escriture o que me pagou.

Fettes obedeceu com mão trêmula; depois, murmurou:

MacFarlane, só a amizade que lhe tenho poderia me levar a ser cúmplice de um crime tão horrendo.

Sua amizade e Seu interesse — disse o médico, friamente. —Se me acontecesse alguma coisa, você também seria incomodado. Você começou por deixar passar o caso de Jane… Meu amigo, quando se começa, é forçoso ir até o fim.

Fettes recuou, compreendendo a perfídia e infâmia em que o suposto amigo o envolvia.

Que tolo! Está pálido e tiritante. Isso há de passar… Há de se acostumar, como eu…

Fettes passou alguns dias acabrunhado por aquele segredo e pelas mais negras apreensões. Porem, Wolfe tinha razão; ao fim de uma semana, auxiliado por libações formidáveis, o estudante começou a dominar seus terrores e a se habituar a sua abjecção.

Alegrou-se com isso, que lhe parecia uma demonstração de coragem moral e teve dessa vitória um espécie de orgulho satânico. Contudo, deixara de acompanhar MacFarlane em seus passeios; só se encontrava com ele nas horas de serviço e raramente trocava com ele uma ou outra palavra, irritando-se um pouco com a amabilidade jovial que outro afetava.

Mas, um dia, o destino veio revigorar sua intimidade com MacFarlane. O Dr. K. ficara nesse dia sem um só cadáver para sua lição de anatomia e, tendo sabido que haveria nessa tarde um enterro no cemitério de Glauscorse — uma aldeia próxima — disse em voz baixa a Fettes e MacFarlane:

É preciso providenciar hoje mesmo.

A ordem fora dada aos dois. À noite, Fettes não teve outro remédio senão esperar Wolfe numa taberna dos subúrbios e partir com ele na caleça. O cemitério era situado em um cruzamento da estrada, junto a um rio. Chovia a cântaros. A despeito de uma alentada garrafa, que haviam levado, a viagem pareceu-lhes tão longa que se detiveram à entrada da aldeia em um albergue para aquecerem-se um pouco. MacFarlane, porém exagerava sua jovialidade e, de repente, entregou a Fettes um punhado de moedas de ouro.

Um pequeno presente — disse ele. — Entre amigos, o dinheiro não deve ter importância.

Fettes hesitou um pouco; depois, aceitou as moedas.

Ainda bem — disse o médico. — Você está se tornando um homem.

Partiram. A noite era de uma escuridão absoluta; entrando no cemitério, mal entreviam as pedras brancas dos túmulos e tropeçavam a cada passo.

Fettes acendeu um lanterna e, tendo encontrado o túmulo que procuravam, começaram seu tétrico trabalho. Escavaram um pouco e logo descobriram o féretro. Nesse momento, tendo ferido a mão numa pedra, MacFarlane atirou-a fora da cova com tanta infelicidade que fez tombar a lanterna e apagar-se. Mas, como já estavam no meio do trabalho, os dous resolveram terminá-lo mesmo no escuro.

Rebentaram a cabeceira do féretro e deixaram escorrer o corpo para o saco que tinham trazido.

Irra! — observou Fettes nesse momento — O Dr. K. disse-me que o enterro era de mulher. Pela magreza, parece mais um homem.

Mas o médico apressava-o e, sem sequer acender a lanterna, correram para a caleça com seu fúnebre fardo.

Começavam a surgir no céu, ainda muito vagos, os albores da madrugada. Fettes sentara-se à direita e MacFarlane à esquerda, guiando a caleça. O corpo ia estendido obliquamente, quase de pé, entre eles.

De súbito, voltando-se para falar ao amigo, Fettes olhou para o fardo e estremeceu, tomado de pavor intenso. A chuva, encharcando o saco, colara-o ao corpo do morto, tornando bem nítida sua silhueta. E assombrado, trêmulo, Fettes notou um detalhe alucinante. A silhueta da cabeça não coincidia com os ombros. Aos solavancos do veículo, movia-se de um lado para outro. E o corpo também se deslocava, como se estivesse todo desconjuntado.

Meu Deus, Wolfe! O que é isto?! — exclamou Fettes. — Nós nos enganamos de sepultura. Que morto será este ?

MacFarlane voltou-se, ficou livido, mas, como se a incerteza lhe fosse pior do que tudo, abandonou as rédeas; e com gesto resoluto, puxou brutalmente o pano do saco.

Uma cabeça seca, desfigurada, mas ainda bem reconhecível, rolou a seus pés. Um grito selvagem se ergueu de seu peito e, ambos, com um mesmo movimento frenético, irresistível, saltaram para a estrada. O cavalo, assustado pelo grito, partiu a galope e a caleça seguiu pela estrada, aos saltos, levando o corpo dissecado e mutilado de Gray.


Tradução condensada de autor desconhecido do início do século XX.

Fonte: Eu Sei Tudo, edição de julho de 1925.

 

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