O MEDO - Conto Clássico de Horror - Lima e Silva

O MEDO

Lima e Silva

(1874 – 1935)



Nisso interveio o cônego Hermógenes Pedreira e, servindo-se do timbre de voz mavioso que todos lhe conhecem, disse, solenemente, como quem inicia uma oração sacra:

A propósito de medo, ouçam o que lhes vou contar…

Bruscamente, como que à intervenção de um poder mágico, cessou a algazarra de vozes e de talheres. A velha baronesa, opulenta e calma, conteve um bocejo partido ao meio, abrindo muito os olhos, com sinal de visível atenção. Sua filha Olga de Macedo esboçou um arfar tímido, suavíssimo, inclinando-se para a frente, fitando o padre com o olhar iluminado. O Artur Gomes repoltreou-se, satisfeito de si, cofiando o basto bigode, como quem saboreia, a pequeninos tragos, a formidável importância que julga ter. O deputado Sousa assumiu atitude de político notável, qual ministro de Estado aos embates de uma interpelação.

Todos, enfim, rapazes e moças, senhoras idosas e homens maduros, contiveram-se hirtos, com as respirações interrompidas e feições catalépticas, diante daquela explosão de loquacidade do padre, cujos dotes todos eles conheciam. É que o jantar chegou ao seu termo e que o champanhe, absorvido após copiosas libações de um Graves apetitoso, e as de um Château Margaux especialíssimo, acabara de passar como que um véu diante das consciências, superexcitando os centros emotivos de todo aquele auditório por demais repleto.

Havia muito que se conversava hipnotismo, esoterismo, ocultismo, assunto então à moda, obrigado a todo o fim de jantar. Fenômenos de aparições ao luar, ruídos inequívocos percebidos à meia-noite, mesas falantes predizendo o futuro, sugestões à distância, casos de telepatia, surgiam a cada passo como fatos corriqueiros da vida banal, acontecidos dia a dia, revelados por testemunhas dignas de toda a fé, esclarecidos à luz da ciência, que os admitia e mesmo explicava. Foi, pois, no meio do maior silêncio que iniciou o cônego Hermógenes a sua história, ouvida com grande devoção por todos os circunstantes, sequiosos de qualquer coisa de novo e de bem narrado.

Em 1878, mais ou menos, achava-me eu como vigário na Vila do Encantado, meu berço natal. Os tempos eram tenebrosos, fecundos em dramas, naquele Norte de Minas, onde a civilização dificilmente tem penetrado. A ambição política, casada com a natural brutalidade do sertanejo, como que corria uma nuvem espessa de terror pelo céu puro daquelas ingênuas e incultas regiões, roubando o sossego à família, fazendo estremecer de pânico ao viajante que acaso se desgarrasse pela noite. Quanto a mim, nada receava.

Pároco exemplar, em conta corrente com Deus, e amigo sincero dos homens, possuía, além disto, uma alma retemperada e forte, a par da compleição física de homem robusto e são, qual a que hoje ainda conservo”.

Aí o cônego fez larga pausa e sorveu um pequenino gole de champanhe, como quem quer se inspirar. A baronesa acenou que sim com a cabeça e Olga enrubesceu ligeiramente, a modo que sentisse algum olhar indiscreto fixado sobre si.

Era por uma dessas tardes de verão pesadas e sonolentas — continuou o padre, repousando a taça. — Achava-me eu na sacristia da igreja matriz, onde fora celebrar um casamento e dispunha-me a sair, quando um campônio de botas e chapéu de palha, que ali se ocultara à sombra da nave, dirigiu-me ex abruptamente a palavra:

“—Sr. vigário — disse —, com o perdão de V.S.ª, lá na encosta do Lagarto, quase ao chegar à Ponte Seca, tem um homem, para morrer, seu vigário; V.S.ª, que é muito caridoso, não há de recusar os santos óleos àquele pobre desgraçado. Ele pode ser muito malvado, mas nem por isso deve morrer como um bicho, seu padre!

Pela denominação do lugar, logo compreendi que se tratava de missão bastante espinhosa. Demais, todo sertanejo de Minas é mais ou menos traiçoeiro, não tem cunho de sinceridade o que diz, e a sua palavra — o seu mínimo gesto — denuncia sempre um fundo ardiloso, debaixo da aparência humilde. Não havia dúvida, aquele homem queria divertir-se à minha custa. “— Mas quem é o moribundo? — redargui eu.

“— Seu padre, é o Pedro Guerra — balbuciou o matuto em tom confidencial, abaixando muito a voz. —O homem das vinte e duas mortes, seu padre…

Pedro Guerra era um antigo salteador de estrada aposentado, maior de setenta anos, célebre pelo terror que de há muito inspirava por toda a região. Bandido profissional, chefe respeitado de quadrilha, não desdenhara ele emprestar o seu auxílio pessoal ora a um, ora a outro partido político, a cuja influência devia, até então, a impunidade escandalosa de que gozara. Velho agora, único sobrevivente da quadrilha que comandara, conservava-se, contudo, apesar de incapaz, dentro em uma auréola de superstição que o punha ao abrigo de quem quer que o odiasse. Não mais se temia o braço poderoso do assassino, mas sim a ação sobrenatural do feiticeiro, que diziam ter parte com o diabo.

“— Então o homem está mesmo para morrer? —inquiri eu bruscamente.

“— Como lhe disse, seu vigário, o João dos Passos veio ontem do Lagarto e me contou que, quando passava pela cafua, ouviu de dentro um gemido, uma ânsia de morte, seu padre. O João viu então o Guerra que, deitado na cama, segurava com as duas mãos a perna direita, amarrada em panos. O homem tinha caído do animal e quebrado a perna; mas, como não havia ninguém para tratar dele, o bicho deu, seu padre, e o homem agora, sentindo que estava para morrer, pedia a V.S.ª que fosse lá confessar.

Ao dizer essas últimas palavras, o matuto esboçou um sorriso malicioso. É que o lugar de que se tratava, diziam-no infestado de quanta extravagância podia imaginar aquela população primitiva. Eram almas dos assassinados pelo Guerra a pedirem umas vinganças, outras missas; eram mulas sem cabeça em carreira desatinada pelas picadas da floresta, fazendo retinir guizos diabólicos, eram bruxas pelas clareiras em sombras infernais, carregando sobre os ombros esqueléticos ao próprio Guerra, armado de chifres e de rabo. Tudo isto fora visto e contado à boca pequena, confirmado por testemunhas incapazes de mentir. Mesmo preces e exorcismos haviam sido organizados pelo meu antecessor na paróquia, influenciado pelo povo, convencido, em sua boa-fé, de todo aquele assombramento. Ora, o Lagarto distava cinco léguas da cidade e achava-se embrenhado em pleno sertão, por péssimos caminhos que ali conduziam; isso quer dizer que, partindo depois das seis da tarde, lá não chegaria antes das doze e, ainda assim, dispondo de marcha regular, forçado, portanto, a passar a maior parte da noite em plena floresta, entregue de corpo e alma às artimanhas do Capeto.

Não havia dúvida: aquele homem queria experimentar-me. Aproveitei, pois, o ensejo e resolvi dar um exemplo. Naquele meio brutal e inculto, o fazer-se temer era indispensável para quem se quisesse fazer respeitar. Tanto mais quanto o homem ainda insistiu:

“—E se V.S.ª quiser eu posso acompanhar V.S.ª até meio caminho, porque tenho de ir hoje às Lages…

“—Pois bem, esteja aqui às seis, seguiremos juntos.

Imediatamente, passei a dar as necessárias ordens a Pedro, o sacristão, que ao mesmo tempo me servia de criado, para que arreasse os animais.

Eram cinco e três quartos quando voltei à igreja, tomei do cibório e, preenchidas as formalidades do ritual, montei a cavalo, acompanhado pelo sertanejo e pelo sacristão, que tangia, com fortes badaladas, a pesada campainha de prata. O alarido, que produzíamos àquela hora da noite, alvorotou a pequenina aldeia. Homens descobertos, mulheres e crianças, surgiram de todos os cantos e nos acompanharam, entoando cânticos, seguindo o cortejo cheio de solenidade e de unção até os confins do Pau Doce. Aí foi se desmembrando em pequenos fragmentos, se desfazendo ao perder de vista as últimas casas, como se esvai carregada nuvem, em tarde estival, ao sopro do vento. Foi assim que, ao enfrentarmos com a capela das Dores, encarapitada no alto de um morro, à beira da estrada, já as vozes se tinham calado de todo, as ladainhas se haviam fundido no silêncio da noite, onde ainda punha uma nota triste e plangente a campainha do meu acólito. Então, ao dobrar de uma encosta, surgiu o primeiro clarão de luar. A floresta, toda iluminada, ostentou um aspecto severo com suas árvores esguias, desenhando em negro, contra o resplendor do astro. Estávamos sós os três e, não sei por quê, o tinir da campainha me incomodava; já porque se tornara supérfluo, já porque parecia-me como uma profanação no meio daquele silêncio. A um sinal meu, Pedro calou-se. O estrépito surdo dos animais pairou, então, só, destacando-se compassadamente; os homens ainda não ousavam falar; ouvia-se de tempos a tempos o trilar de um grilo.

“—Pedro — disse eu, cortando a monotonia —quanto tempo, ao certo, teremos que caminhar?’

“— Com uma boa estirada, seu vigário — respondeu-me o sacristão —, lá pras onze, por volta das doze, havemos de estar, se Deus nos ajudar, sim, senhor.

Não sei por que pareceu-me notar-lhe um quê de trêmulo na voz.

“ —Tens medo, Pedro? — tornei eu.

“— Não é para que lhe diga, seu vigário, um homem é um homem; eu não tenho medo, não, senhor, a questão é a volta… A coisa é esta hora perdida da noite, por esses caminhos mal frequentados… Depois de dada a meia-noite, esses lugares não são bons, seu padre, tem-se visto tanta coisa acontecer…

“ —Superstições, filho, superstições… Depois, que importa? Se não for possível voltar-se mais, passa-se lá a noite, não estás armado?…

“—Armado estou, sim, senhor, mas contra esta ordem de coisas de nada vale a arma!!…

“—Mas então, o que é que receias?

“ —As almas, seu padre, os espíritos… Lá pela meia-noite o garmo anda aí tonto pelo mato; João Guerra matou muita gente e ele mesmo vira lobisomem, há muito povo que viu e que conta. Ainda no outro dia, o Chico Sabará…

E o sacristão tocou o animal para a frente, tomando-me o flanco direito, enquanto o seu companheiro achegava-se-me à esquerda o quanto permitia a largueza da estrada, cioso de ouvir a narração. O rosário das coisas extraordinárias, que todo aldeão conhece e de que possui copioso repertório, foi desfiado longamente, com luxo exuberante de detalhes, voz cavernosa e gestos de pavor. O homem animava-se ao relembrar as minúcias da anedota, autossugestionava-se gradativamente com unção própria de uma testemunha ocular, que a encenação da noite e os ruídos suspeitos da floresta engradeciam e faziam atingir muitas vezes ao delírio. De tempos a tempos, o sertanejo todo ouvidos, todo atenção, curvado sobre o animal, acudia em seu auxílio revivescendo particularidades esquecidas, corroborando a superexcitação mórbida que, de há muito, se tinha apossado do cérebro do sacristão. Subitamente, ao chegarmos a uma encruzilhada, despediu-se este último.

“—Seu vigário — disse, empertigando-se e esporeando a montaria —, aqui os deixo; Pedro conhece bem o caminho, a maior parte da viagem já está feita. V.S.ª, muito boa noite; estimo que seja muito feliz e Deus lhe ajude… Até logo, Pedro!

E partiu em disparada. Estas últimas palavras, repassadas de pesada ironia, não deixaram de me impressionar algum tanto. Realmente, não padece dúvida que a minha imaginação se avivara ao ouvir as histórias dos dois homens. O sobrenatural sempre comove em horas mortas da noite, por lugar ermo. A feição nítida das coisas reais vela-se em noite de luar, diante de uma consciência adulterada, que só percebe as sensações que lhe são trazidas pelos sentidos através de um prisma mítico, que tudo transforma de acordo com as impressões internas. O meu estado de alma passou a ser, dali por diante, todo artificial. Confesso-lhes que sentia minha própria personalidade, normalmente vigorosa, que se escapava. A auxiomania, como dizem os homens de ciência, invadiu-me o espírito. As árvores da mata, esguias e negras de encontro ao clarão da Lua, pareciam-me animadas, como ladrões perfilados à espera da vítima que lhes vai no encalço; o rumor das fontes e dos pequeninos lacrimais, serpeando invisíveis, chegava aos meus ouvidos qual gemido de alma penada. Em toda aquela atmosfera passava um bafio estranho, como que sopro infernal, desagradável ao tato, frio e viscoso como a mão de um defunto, quente e horripilante como o hálito de uma fera. O trinado intermitente dos grilos, o crepitar de uma taquara que estalasse, o esvoaçar ex abrupto de qualquer ave noturna, tudo, enfim, quanto não fosse monótono e contínuo, me fazia estremecer. Mas o receio que sentia do desconhecido atravessava antes uma fase surda de gestação. A impressão que sentia era mais de frio que de calor, o que me levava a, de tempos a tempos, fechar o trespasse do manto por sobre a mão esquerda que estava exangue, crispada, sustendo, a custo, o cibório.

“—Parece-me ser já bem tarde — disse eu, elevando intencionalmente a voz. — Vejamos que horas são…

E, sacando com dificuldade o relógio, com o pulso a tiritar:

“— Onze e meia! — exclamei; —ainda teremos muito que andar?…

“ —Não, seu padre, felizmente não; creio que, daqui a meia hora, lá estaremos — respondeu o Pedro, com voz cavernosa, que parecia saída de um túmulo. E respondeu sem encarar-me; o seu olhar estava cataléptico, imóvel, dirigido para certo ponto negro do matagal, onde se destacava, quase imperceptível, uma pequena cruz tosca. De repente, como que movido por força estranha, rosnou ele aterrado, agachando-se sobre o animal, vencido pela sufocação que lhe tomava a garganta:

“—É ali, seu padre; é ali que foi enterrado o Narciso; é ali que o mataram a tiro!…

E apontava para o lugar, encolhendo-se todo, pesando sobre a besta, que resfolegava, dando com as patas traseiras, espevitando as orelhas.

Nisso, profundo gemido partiu da região suspeita, como que suave melodia em tom menor, harpejo surdo, prolongado, inexprimível, enquanto que aquela treva parecia se animar em movimento ondulatório, concentrando-se, por fim, em dois pontos luminosos microscópicos.

“—Ah! Deus nos acuda! — berrou Pedro, no auge do pavor. Benza, seu padre! Benza, que aquilo é garmo: veja! Ele está nos chamando… Benza, seu padre! Por amor de sua santa mãe!…

E a mula, fortemente esporeada, ora saracoteava para os lados, ora acuava de encontro ao barranco, aos saltos inimagináveis, arrastando por sobre o dorso, desconcertadamente, a massa informe do sacristão. Quanto a mim, sem saber o que fazia, automaticamente tracei o sinal da cruz contra aquela coisa indefinível que se movia no escuro, contendo a custo o animal, aflito por disparar.

Os dois pontos luminosos desapareceram e como que se ouviu um farfalhar de folhas secas a perder-se pelo matagal.

Demos um pouco de rédea, caminhamos mais um quilômetro sem dizer palavra, quando o meu acólito, estacando bruscamente:

“— E sabe o que mais? — exclamou ele, enchendo-se de energia. —V.S.ª, se quiser, vá só; eu prefiro voltar para casa, o caminho está muito ruim… Se for até lá, fico doido; Não!… Antes a morte… O Lagarto fica perto, V.S.ª não tem mais que errar o caminho… É seguir diante de si… Deus lhe ajude, seu vigário; boa viagem!…

Achei-me só em dois segundos, nem tempo tive para protestar; embrenhara-se o homem pela picada, até então percorrida em tremenda disparada. Só: mas o que fazer? Acompanhar o sacristão seria dar prova de covardia. E o que diriam de mim no dia seguinte pelo arraial?… Mentir? Impossível!… E o testemunho de Pedro? Era preciso dar a todo transe um exemplo de coragem e abnegação! Um pastor de almas não pode temer as almas. Por outro lado, exercia missão toda divina.

O santo viático que trazia destinava-se a um pobre miserável, cujo espírito talvez, àquela hora, em ânsias de desprender-se do corpo, reclamava, a grandes gritos, a misericórdia do Céu. E essa misericórdia eu a tinha comigo, eu só poderia conduzir-lha aos lábios ressequidos.

“… Não! Era preciso muita coragem para prosseguir… Recuar, é que nunca! Picando então o animal com ambas as esporas, enveredei pelo atalho que se me deparava, em carreira vertiginosa aos saltos, de rédea solta, desabridamente, agarrando-me à sela como um autômato!!…”

Aí o cônego fez larga pausa, suspendendo por um momento, no meio do grande silêncio da sala, a torrente de suas palavras. Olga soltou um “ah!” dolorido; a baronesa tossiu estrondosamente, muito comovida, e o próprio deputado dobrou-se ainda mais sobre o encosto da cadeira, interessando-se pela história. O padre prosseguiu, depois de sorver o último trago de champanhe:

Foi assim que, ao cabo de algum tempo, achei-me em uma espécie de pequena esplanada, flanqueada de montes, quase que descampada, no meio da qual destacava-se pequena palhoça, coberta de sapê.

Tinha aquela habitação primitiva, construída de pau a pique e adobo, com a sua falta de prumo, as suas portas e janelas desquadrilhadas, as suas paredes esburacadas, o aspecto lúgubre de toda casa mal-assombrada. Estacando em frente, senti um calafrio percorrer-me a espinha dorsal. A porta principal achava-se inteiramente aberta, mas as janelas e portas laterais estavam fechadas, pregadas exteriormente. A superexcitação dos meus sentidos havia-lhes imprimido uma acuidade extrema; por isso, com um simples lançar de olhos, vi tudo aquilo que rapidamente não poderia ver em estado normal. Dirigi-me a um arbusto para atar o animal e, enquanto o fazia, pareceu-me perceber, como se partisse dos lados da casa, um longo e profundo gemido, semelhante ao que ouvira no caminho. Instintivamente, levo a mão à garrucha e observo o fundo negro que tenho diante dos olhos.

Nada!… O gemido partiu, com certeza, do moribundo, que, a essa hora, se debatia provavelmente com a morte.

Penetro na cafua; acendo a vela, que intencionalmente trouxera. Cena indescritível! O antro cheirava a defunto; aquela mobília tosca, aquelas paredes denegridas pela fumaça de longos anos, coberta de armas, fetiches e objetos estranhos, tinham o aspecto de sepultura pré-histórica. A um canto, junto à janela da esquerda, por sobre o velho catre, manco e carcomido, se destacava uma podridão. Era o cadáver do velho Guerra.

Tudo isso meus olhos viram em menos de meio segundo. O medo atingiu para mim a sua fase aguda. Sentia os cabelos eriçados e as extremidades enregeladas. O meu estado de alma era o de um náufrago a lutar, a sós, no meio das ondas, que sente comprometer, pelos movimentos desordenados, a própria estabilidade à flor-d’água.

Como que atraído hipnoticamente, aproximei-me do corpo. As fauces cavas, os lábios contractos, deixando desprender uma baba rubro-negra, faziam um ríctus diabólico de caricatura japonesa; as mãos crispadas, agarrando fortemente a coberta, eram como que um vestígio deixado pelo último arranco de dor. Daquilo tudo se desprendiam exalações fétidas de fazer fugir. Mas eu, semi-inconsciente, achegava-me cada vez mais daquela coisa inenarrável, como que atacado de necrofilia, sequioso de putrefação! Profundamente invadido pela solidão, pelo sobrenatural, pela própria morte, tinha ânsias de atirar-me àquele cadáver, ávido de aniquilamento, desejoso de me identificar com o próprio nada…

A um movimento que fiz, voltei, porém, à realidade: o pesado cibório quase que se me escapara da mão fria. A ideia divina ganhou-me então novamente; Cristo, em pessoa, ali se achava dentro daquele invólucro metálico, Deus vivo que se destinara à alma desprendida, havia pouco, do corpo em decomposição. Um momento de lucidez perpassou-me então pelo espírito, a consciência das coisas reais voltava-me nítida. Lembrei-me de que a hóstia santa não podia conservar-se, à noite, em lugar profano, ausente do templo. Surgiu-me então, como foco luminoso, inspiração toda divina.

Tirei do relógio, era mais de meia-noite; se comungasse?... Deus ali apresentava-se como único abrigo para o meu espírito desatinado; a religião era o porto almejado, o sagrado viático era a salvação. Então, fazendo um grande esforço de concentração cerebral, consegui dominar-me e rezei longamente o ofício dos mortos, findo o qual, recitando mentalmente o Domine non sum dignus, passei a receber o santo corpo de Deus.

Não imaginam qual a transformação que se operou em mim nesse momento.

Perdi quase que completamente a noção das coisas, um êxtase inexprimível sucedeu àquele acabrunhamento moral. As sensações exteriores tornaram-se-me difusas, inapreensíveis, vagando os meus centros perceptores, como em um oceano de delírio. Era já o efeito do grande remédio das almas que se fazia sentir; a divindade que se corporificava humanizando-se. Quanto tempo permaneci nesse estado, não sei dizer. Meu espírito vagava longe, além do espaço e do tempo na completa absorção da suprema delícia.

Mas, bruscamente, de um salto, pus-me de pé. Chegara-me aos ouvidos, mesclado de sensações místicas, um rumor estranho, partido da janela que ficava em frente. Era o mesmo que já duas vezes percebera, mas desta vez claro, nítido, como o rugir de um tigre; simultaneamente, com estrépito violento eram escancaradas as duas folhas, mal ajustadas, deixando aparecer as formidáveis patas e a goela de uma onça. Enorme, amarela, toda listrada de preto, com as unhas a escavarem a madeira e com os dois olhos muito acesos, a fitarem-me, tinha aquele animal uma feição apocalíptica; concretizava em si todo o Juízo Final.

O que senti não foi medo, mas sim pavor, emoções sobre-humanas, um enregelamento de todo o corpo. O meu estado místico desaparecera, diante do instinto de conservação. A partir desse instante, deixei de ser padre, ser pensante, racional; passei às condições de hiena, acossada no próprio antro, ferida de morte, invadida por um acesso de temeridade derradeira. O instrumento que trouxera, havia pouco, o conforto para a alma, transformara-se em arma de defesa para o corpo ameaçado. Não mais enxergava senão os dois olhos esbraseantes do tigre; não mais refletia, porque meu cérebro já não funcionava por excesso de emoção, e, louco, empunhando com a direita o pesado cibório, investi medonhamente para o animal. Este, ferido em uma das patas, ganiu sinistramente, em longo miado. Parecia dizer: ‘Agora vais morrer!’ E mergulhou de todo a cabeça pela janela, preparando o bote. Aí perdi a noção de tudo e, desvairado, sem lembrar de que estava armado, ardente em febre, abaixando-me também, agarrei com força o cadáver frio do Guerra, que arrojei como um pesado broquel sobre as fauces do monstro. O embate foi violento, os três rolamos ao chão, seguindo-se uma luta de poucos instantes, encarniçada e tremenda, entre a fome e o pavor, a vida que se impõe e o instinto conservador que se lhe opõe.

Naquele estado de quase inconsciência não sei como, levantando-me, pude atinar com a porta e, desabridamente, como um potro em epilepsia, pus-me a correr, sem rumo, pela estrada afora…

Muitas horas depois, fui encontrado pela gente que acudira em minha procura, a seis quilômetros distante do lugar, caído, frio e inerte, por sobre uma laje, à beira de um despenhadeiro…

Quanto ao cadáver do Guerra, havia sido completamente devorado, reduzido a ossos, esparsos aqui e acolá pelos caminhos, o que fez crer ao povo do lugar que as almas dos assassinados se tinham desforrado sobre o corpo de seu algoz, em um samba diabólico de carnes sanguinolentas.”

Um bravo geral e sincero epilogou as palavras finais do cônego, enunciadas com calor e convicção. O café foi acolhido sem entusiasmo; estavam todos tão comocionados…


Fonte: Revista Brasileira/RJ, Tomo XVIII, abril a junho de 1899.

Ilustração: PS/Copilot.

 

Comentários

  1. esse escritor é o Barão de Barra Grande ou esse é outro? A ilustração feita por PS e Copilot ficou sensacional !.

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  2. amigo Paulo, continuando: este conto é um contaço, muito bom! Incrível como os contos de terror brasileiros são pouco considerados pelos críticos bambambans da literatura brasileira e até pelo mundo acadêmico, salvo raras exceções. Deve ter também autores brasileiros de ficção científicas do passado ainda pouco lembrados e conhecidos.

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