O QUE VIU A RAINHA DA FRANÇA - Conto Clássico de Terror - Emilio Carrere
O QUE VIU A RAINHA DA FRANÇA
Emilio Carrere
(1881 – 1947)
Tradução de Paulo Soriano
Foi naquela época, douta e galante, enciclopedista e supersticiosa, no último terço do século XVIII, que chegou a Paris o médico austríaco Anton Mesmer.
Apesar dos fortes e luminosos sarcasmos de Voltaire contra as práticas supersticiosas, o povo amava o maravilhoso, acreditava nos voos das bruxas sabáticas, na ciência misteriosa dos curandeiros e no poder do mau-olhado dos feiticeiros. A Academia Francesa era racionalista e ateia e, enquanto preparava a formidável revolução ideológica, a multidão acorreu ao túmulo do diácono de Paris, que morreu em odor de santidade; tirava a terra da cova, misturava-a com vinho e a bebia, pois era uma beberragem que tinha o poder de expulsar os demônios do corpo.
Malgrado o abrangente helenismo que triunfava nos jardins de Versalhes, todo o povo vivia espiritualmente em plena taumaturgia. Os clérigos não deram paz ao aspersório ou ao exorcismo. Os feitiços de Carlos II da Espanha passaram pelos Pireneus. Acenderam-se fogueiras para os sortilégios, porque o Parlamento de Paris também gostava de torresmos de bruxas, como a nossa Santa Inquisição.
Neste estado de coisas, chegou Anton Mesmer a Paris, com sua nova teoria do magnetismo animal. Na realidade, Mesmer não contribuía com nada de novo. Agostinho Paracelso, no século XV, também acreditava que a força da vida provém das estrelas, e que existe uma corrente fluídica entre as estrelas e os homens. Acreditava na eficácia dos talismãs e dos unguentos magnéticos. Como se vê, essa teoria das relações interplanetárias nada mais é do que uma consequência da astrologia dos caldeus, mística corrente que que perdurou durante toda a Idade Média e até finais do século XVII, em que alguns príncipes conservavam astrólogos de câmara para que decifrassem o seu horóscopo e as influências que teriam de temer das fases da Lua e do anel de Saturno.
Mesmer foi um novo apóstolo do fluido magnético que enlaçaria os homens aos astros. Ele se cria dotado desse fluido imponderável e, por seu influxo, curava todas as enfermidades. Logo angariou uma grande fortuna. Todas as damas que compunham galantes pastorelas no Trianon acudiram à “proveta de Mesmer”. Clérigos madrigalistas e cavaleiros ataviados de perucas e de casacas sentiram-se doentes e foram à casa do médico bruxo, apesar dos informes contrários às práticas magnéticas assinados pela Academia de Ciência e pela Faculdade de Medicina, que asseguravam que Mesmer era um louco ou mesmo um charlatão.
*
Ao anoitecer de um dia de outono, uma carruagem dourada parou à porta do misterioso médico. Uma bela jovem, seguida de outra senhora e de um cavalheiro, desceu da carruagem. Era a Vênus austríaca: a rainha Maria Antonieta de França.
Um grande salão esperava a flor da nobreza feminina. A casa de Mesmer era mais uma festa nessa época de festas, um entretenimento requintadamente misterioso e arrepiante. O arrepio dos supersticiosos era uma volúpia para as gentis figuras de cabelos empoados. Entregavam-se ao mistério como a um amante inefável que soubesse fazer vibrar as cordas da sua histeria elegante e decadente.
A imprevista chegada da rainha infundiu uma grande solenidade àquela noite taumatúrgica. Houve um suave farfalhar de sedas, como num passo cerimonioso de passo de dança; os risinhos desdobraram as suas escalas douradas como nos simulacros mitológicos dos jardins de Versalhes. Um fugaz riso pagão voou naquele litúrgico santuário de magia, onde tudo era tenebrosamente teatral.
Mesmer beijou as pontas dos dedos da divina e trágica rainha de França.
Maria Antonieta apresentou Mesmer à sua comitiva.
— A duquesa de Grammont. O Conde Cagliostro, o bruxo — acresceu, com um sorriso que, em vão, desejava ser voltairiano, apontando para um cavalheiro pálido e moreno, de cabelos escuros, com olhos como duas chamas de alucinação. — Sereis se sempre Cagliostro, mesmo que, nesta encarnação, não tenhais este nome. O vosso nome antigo calha muito bem nestes momentos — disse com um sorriso que pretendia, em vão, ser voltairiano.
Mesmer olhava para o mago Cagliostro, que se lembrava de todas as suas existências anteriores. No entanto, não lhe causou assombro aquela estranha personagem, pois, naquele tempo, era indelicado espantar-se com qualquer coisa.
Maria Antonieta estava impaciente por conhecer o mistério da “bacia de Mesmer”. Fez-se um silêncio profundo, no qual todos sentiam um vago mal-estar; o vento zumbia nos vitrais como o bater de um pássaro agourento.
Anton Mesmer sentou-se ao cravo, porque a música atrai os bons espíritos do espaço. As ressonâncias profundas e litúrgicas espalham uma solenidade religiosa na atmosfera. A bacia foi colocada no centro da sala. É uma grande cuba de madeira preta. No seu interior, à maneira de raios convergentes, havia muitas garrafas de água magnetizadas por Mesmer, em várias filas, umas em cima das outras. A bacia estava cheia de água glaucosa, preparada com limalha de ferro, vidro triturado, escória de carvão e areia.
Da cuba partiam diversas varetas metálicas, em cujo extremo havia uma corda que dava voltas em torno dela. Os enfermos estendiam as mãos sobre a corda, assim como os praticantes do ocultismo, pondo em contato os polegares; e, com as pernas e os pés unidos, formavam uma cadeia magnética.
Transcorridos alguns minutos, Mesmer encarregou a outro músico — um velho organista de convento — o mister de prosseguir com o concerto, e se aproximou do grupo de doentes com uma varinha mágica na mão. Era uma varinha de vidro imantada, que se constitui no melhor dos condutores de fluido.
Mal o médico bruxo tocou a bacia com a varinha mágica, começaram as convulsões. Quatro senhoras caíram em encantadora crise, com os olhos em êxtase, desfiando a loucura de seus risos perolados.
Enquanto as contorções e os espasmos se acentuavam, e os laços e as sedas caíam, deixando ver zonas de deliciosa carnação, Mesmer atraía as possuídas ao Inferno das Convulsões pela virtude de seus passes magnéticos. Era este Inferno um gabinete recoberto de negro estofo, destinado a amortecer os choques dos corpos em convulsão em seus acessos de histeria.
Somente Mesmer penetrava naquele ambiente, acompanhando as crises com toques da vareta e envolvendo as enfermas com o fluido de seus olhos fascinadores. As senhoras chamavam aquele lugar, não se sabe por que íntimos e misteriosos motivos, de A delícia das Senhoras.
Quando, pouco tempo depois, Mesmer retornou do delicioso Inferno das Convulsões, havia, entre os que rodeavam a misteriosa cuba, uma grande excitação.
Maria Antonieta estava pálida como os mármores pagãos de seus jardins reais. Exalava soluços entrecortados e tinha os olhos espantados e fixos na água glaucosa que enchia a cuba. As suas mãos engarfavam-se para a frente.
— O que veis, senhora? — perguntou Mesmer friamente.
A rainha respondeu com uma voz suspirante, que semelhava um eco mui distante:
— Da água turva surgem muitas caras que me ameaçam! São mendigos, ladrões e levam lanças nas mãos. Agora eu os vejo melhor. São muitos, muitos deles. A rua está cheia de gentes patibulares que se dirigem a Versalhes.
— Prossiga, majestade!
— Uma praça muito grande! O céu está cinzento e turvo! Em uma carroça seguem muitas mulheres quase desnudas, com as mãos atadas às costas. Que horror, meu Deus! O que fazem com a duquesa de Grammont? Ela segue, chorando, nessa trágica carroça!
A duquesa de Grammont era uma dama racionalista e voltairiana que não acreditava em alucinações.
— Dizeis, senhora, que me levam numa carroça? E com os cabelos soltos? Rogai a esses verdugos que me permitam esperar pelo cabeleireiro para que me empoe a cabeleira.
— Desta feita, o teu cabeleireiro será o teu carrasco, duquesa de Grammont — soluçou Maria Antonieta.
Sobre o rosto pálido da rainha, o mago Cagliostro cravava as suas pupilas de fascinação.
— A duquesa de Montmorency! O Sr. Condocert está morto em uma rua solitária! Apinha-se na praça uma multidão feroz. Caem cabeças ensanguentadas, muitas cabeças terríveis, com os olhos abertos, que pronunciam palavras enigmáticas ao tombar no lúgubre cesto! As turbas, ébrias de sangue, correm às Tulherias. Quantas fisionomias conhecidas: a flor da nobreza francesa; todos os que, ontem, estavam nos salões dos bailes!
Ela estava rígida e gelada. Parecia uma Vênus de mármore a loura Vênus austríaca. Subitamente, soltou um grito.
— O rei! Também o rei! Sua cabeça rola, resvalando sobre o estrado! O que é isto? Vejo-me a mim mesma! Parece que vou flutuando num mar de sangue! Vejo a minha garganta com uma linha rubra como uma fita carmim! Jesus! Jesus!
E a rainha da França caiu numa espécie de convulsão epilética.
— O que terá visto a senhora? — exclamou a duquesa de Grammont. — De que fita rubra falava?
Cagliostro sorria enigmático.
— Já ouviste. Uma preciosa gravata cor de sangue cingindo o seu pescoço de deusa. A cuba de Mesmer foi gentil com a rainha da França.
Aquele misterioso Cagliostro, que se recordava das vidas anteriores e que sabia ler o futuro, talvez tenha visto que a fita rubra, que adornava a garganta da rainha, era a gravata trágica e sangrenta de Mestre Guillotin.
Era uma gentileza retórica ao gosto da época.
Fonte: La Esfera, Madri, janeiro de 1916.
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