SALOMÉ - Conto Clássico Cruel - Froylán Turcios
SALOMÉ
Froylán Turcios
(1875 – 1943)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Era uma jovem de rara formosura que trazia na fronte o selo de um terrível destino. Em seu rosto, de uma palidez láctea, seus olhos ardiam de um modo estranho e sua boca, flor de sangue, era um poema de luxúria. Seus vinte anos cantavam o triunfo de sua divina beleza.
Quando Oliverio a conheceu, em uma alegre manhã do último outono, quedou-se sem alento. Vibrou em todo seu ser a mais leve fibra e sentiu que sua alma toda mergulhava numa angústia insuportável. Ela passou como uma sombra errante; mas ele nunca mais voltaria a gozar a grata paz de antanho. Amou-a imensamente, com certa impressão de espanto, como se de improviso se houvesse enamorado de um fantasma.
Durante aquela noite, teve febre. Pálidas mulheres da história, criações luminosas dos poetas, brancos seres de legendária formosura, que dormem, desde remotos séculos, o profundo sono da morte, chegavam até ele, em lento desfile.
Viu passar a Helena, marmórea beldade vencedora dos heróis; a Ofélia, cantando uma tênue balada, espalhando lírios nas águas dormentes; a Salomé, quase desnuda, alta e mórbida, de carne de âmbar, de áurea cabeleira constelada de grandes flores prateadas, tal como a viu no grande quadro de Bernardino Luini.
Esta última figura chegou a produzir-lhe uma alucinação profunda.
Comparou a filha de Herodias com outra imagem de terrível encanto, mas viva e quente, cheia de sangue e de amor; e uma vertigem de sensualidade fê-lo desfalecer docemente… Eram gêmeas as duas virgens extraordinárias. Ambas possuíam o corpo florido; ambas se faziam amar mortalmente pela graça e pelo aroma, e pela atração embriagadora do sexo.
Era, tinha certeza, um caso de metempsicose…
Oliverio começou a enfraquecer, devorado por um fogo interno. A harpa de seus nervos vibrava continuamente e sua alma de silêncio e de sonho se povoou de imagens sombrias.
Ele era de um temperamento raro e aristocrático, onde floresciam fantasticamente as rosas da fábula. Era um esteta por sua tenaz obsessão de beleza e pelo culto da palavra; e, infelizmente, um voluptuoso. Seu espírito refinado, puro e elevado, sofria tormentos dantescos, vencido pela carne traidora. Trazia nas veias — talvez por causa de alguma lei atávica — vermelhos rios de luxúria.
O desejo que sentiu por aquela adolescente fresca e sensual fez-lhe ver, desde o primeiro instante, o abismo em que iria cair. Desejou-a com uma ânsia viril e forte. Sonhou possuí-la até fazê-la chorar no espasmo supremo, sob a potente pressão da carícia fecunda; mas logo compreendeu que o luminoso rosto daquela virgem jamais havia de sorrir para ele; e quedou-se por muito tempo, por vários anos, como morto, abandonado a seu negro destino.
Escreveu a ela algumas cartas, cartas cheias de sangrentos frenesis, impregnadas de beijos, de lágrimas e de volúpia. Revelou sua angústia com palavras de perfumada luxúria, que eram quase carícias sexuais; e também com palavras e frases de espírito, leves como as asas. Falou-lhe de seus grandes sonhos e do futuro de sua glória, se ela chegasse a pertencer-lhe. Quis embriagá-la com o forte vinho de suas melodias verbais, despertar nela a fibra de ouro do sonho e a fibra de sangue da virgindade. E foram aquelas cartas profundas maravilhas de gênio, em que o amor e o desejo diziam uma canção desconhecida, em que as linhas pareciam ter alma, exalando do papel um perfume de pecado e de morte.
— Se não me amares, eu te matarei — dizia-lhe. — Serás minha ou da sepultura. Mas jamais poderei suportar que outro homem te possua. Tenho sede de teu espirito e sede e fome de teu corpo. Sofro, amando-te, uma dor aguda, uma tortura diabólica. Preciso de teu sangue, de teus beijos e de tuas lágrimas para viver. Quem sou? Por que aspiro a ti? Não o sei. Tu nasceste num palácio, entre sedas e púrpura... Eu venho do país da miséria e sou apenas um peregrino. Mas, o meu amor sobre-humano me faz superior aos homens... Dá-me o hábito de tua juventude, dá-me o divino tesouro de teu corpo e serei um Deus…
Oliverio via passar os longos dias obscuros, abstraído num única visão interior. Insone e taciturno, vítima de uma febre contínua, acabou não se dando conta da realidade para viver uma vida intensa num mundo cheio de quimeras. Durante os intervalos transitórios do sono, cenas carnais fariam-no dar gritos de espanto. A luxaria mordia-o com sua boca frenética.
…Viu errar, certa vez, por uma paisagem a Salomé, levando numa grande bandeja de prata a lívida cabeça do Precursor. Ele aproximou-se, ao impulso de um braço invisível; e conheceu, naquela testa morta, sua própria cabeça. E a Salomé da fábula não era senão a Salomé de seu desejo. Aquele terrível amor e aquele único desejo impossível marcaram-lhe o rosto com um sinal de espectro. E tronou-se pálido como a morte. Pálido como a Morte.
Numa noite enluarada e silenciosa, chegou a seu ouvido o eco de uma música distante. Como um sonâmbulo, saiu de seu quarto e vagou pelas ruas desertas, atraído pelo ímã da harmonia. Sentia-se fraco e próximo a lançar o último alento. A música ressoava docemente no ar da noite.
De repente, encontrou-se em frente de um vasto palácio, em cujos salões o baile punha sua nota de fogo. A princípio, foi um rápido deslumbramento, depois sofreu — durante um século — um suplício indizível.
Num salão de luz e de música, aclamada por jovens elegantes, beijada e profanada por seus olhos, dançava Salomé sua dança de sonho e de prazer…
Quase desnuda, velada por uma tule vaporosa, mórbida e diáfana, como uma grande rosa de fogo, movia-se com languidez ao compasso de um ritmo enervante. O corpo felino e pálido, de movimentos lentos e lascivos, era um milagre de beleza e de impudor. Sobre os ombros colombinos, caía, em chuva de ouro, a abundante cabeleira. Seu rosto, de graça sobrenatural, sorria misteriosamente; e sua beca vermelha parecia uma ferida luminosa.
Exalava-se daquela terrível criatura tal potência amor que Oliverio, abalado, quase teve que fechar os olhos por causa das insólitas fulgurações.
Ao abri-los de novo, acometido por um tormento agudo, sentiu que tudo girava em sua volta e que o mundo vinha caindo sobre ele. Perto de cair para sempre, enlouquecido por uma dor tremenda, esmurrou as vidraças das janelas até tingi-las com seu próprio sangue e caiu como fulminado.
Várias cabeças de homens e mulheres apareceram às janelas que davam para a rua. Salomé foi a última a chegar e exclamou com a sua voz mágica e profunda, vendo o mísero sobre as duras pedras:
— Um mendigo… Nada mais…
Fonte: “A Noite Ilustrada”/RJ, edição de 21 de janeiro de 1946.
Imagem: Bernardino Luini (1480 – 1532).
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