UM MARIDO A MAIS - Conto Clássico Fúnebre - Louis Ulbach
UM MARIDO A MAIS
Louis Ulbach
(1822 – 1889)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
— Quantos processos tem a propósito do divórcio? — perguntei há dias a um amigo, advogado preferido… das damas, e temido dos maridos.
— Apenas um — disse-me ele — e posso afirmar-lhe que não contém nada do que você supõe, nem queixas de adultério, nem sevícias graves! Se quiser fazer um drama, posso confiar-lhe por algum tampo. Não é segredo.
—Em que se funda, então, a petição do divórcio?
—No medo de um ressuscitado.
—Não poderá pôr-me isso em pratos limpos?
—Nuda mais fácil. Você conhece a senhora A. de B…?
—Conheço. Mas espere… eu supunha-a uma mulher extremamente honesta, que adorava o marido e era por ele adorada… Uma mãe de família exemplar!
—Não se engana. Tenciono dizer tudo isso no tribunal.
—O marido, conhece-o perfeitamente. É um excelente homem, leal, obsequiador e de uma reputação sem mancha.
—Hei de empregar precisamente essas palavras.
—Mas então essa gente quer divorciar-se?
O meu amigo respondeu-me com uma gargalhada. Divertia-o o embaraço em que eu me achava, e contou-me então a estranha aventura que passo a transcrever
*
A senhora A. de B..., que não conta ainda trinta e dois anos, e que parece ter apenas trinta, tem o seu nome ligado a todas as obras de beneficência e a todas as festas mundanas. Dir-se-ia, ao vê-la em todo o esplendor da beleza, da bondade e da saúde, que aquela senhora está tomando uma soberba desforra de um doloroso noviciado da vida.
Casou há cinco anos, ou melhor, tornou a casar, porque aos vinte anos tinha desposado dos mais ruidosos especuladores da Bolsa, que a deixou viúva em circunstâncias verdadeiramente trágicas.
Haverá sete anos, soube-se uma manhã que Tiago de T.., o jogador correto e infatigável, o sportman distinto, tinha sido encontrado morto no seu leito, na quinta da G…, com o rosto horrivelmente despedaçado. A princípio, houve suspeitas de um crime. A casa estava desabitada. Era no inverno. T... fora ali buscar uns livros de escriturário comercial de que precisava. Comanditário de uma importante fábrica dos arredores, fazia frequentes digressões àqueles sítios, deixando por um dia a esposa em Paris, e tinha ali apenas para o servir um jardineiro que habitava um pavilhão isolado.
Apenas, porém, foram examinados os livros, o desgraçado, que tinha também uma casa bancária nas proximidades da rua Laffitte, ninguém duvidou mais do seu suicídio. Estava completamente arruinado e o próprio dote de sua esposa fora subvertido no abismo. Não quisera ou não pudera sobreviver àquela catástrofe.
Alguns maldisseram-lhe a memória, outros tentaram uma reivindicação que a pobre senhora repeliu sem dificuldade.
Devo dizer-lhes que a esposa o chorou sinceramente. Fora sempre ela tão prodiga de amor como e dinheiro. Foi a vi uva mais sincera, mais correta, mais bonita no seu luto ingênuo, que se podia desejar. Voltou para casa da família. Não tinha filhos. Deu-se toda a saborear a sua tristeza. As desgraças completas têm a vantagem de darem a altivez de um indiscutível martírio. Uma dor a que não falta coisa alguma satisfaz tanto a vaidade que a embalsama.
*
Dizia-se:
— Não tornes a casar! Não mostres o menor desejo disso!
Esqueciam-se de que as felicidades mais bruscamente cortadas são muitas vezes aquelas do que mais depressa brotam novos rebentos.
Quando se fica viúva, depois do ter velado uma lenta agonia que impacientou algumas vezes a coragem, conserva-se por muito tempo e algumas vezes sempre o cheiro medicamentoso da doença. A mulher, livre enfim do seu papel de enfermeira, receia expor-se a ele novamente. Mas quando a morto interrompeu brutalmente os beijos, o coração e a boca tem uma sede de amor, que se satisfaz ingenuamente por um novo casamento. As solteironas e as viúvas sem pretendentes escandalizam-se; o mundo sorri, e a primavera recomeça!
O senhor A. de B… é tão gentil como o primeiro marido; joga menos, tem uma fortuna inabalável, e namorou-se de uma mulher sem dote. Poderia ser repelido? O segundo casamento foi uma felicidade de outro gênero, menos ruidosa, mais íntima; a ferida da viuvez acabou de cicatrizar docemente sob as mais delicadas carícias. No fim de um ano, veio aumentar aquela felicidade um robusto menino, no ano seguinte uma menina. Que mais se podia desejar? Quando a Sra. A. de B… fazia a sua visita anual ao túmulo aparatoso que havia consagrado ao malogrado T… era quase com um sorriso de reconhecimento que orava ainda pelo defunto. Recomendava-o cada vez mais à misericórdia celeste, com a certeza de ser ouvida, como se os méritos do primeiro marido tivessem aumentado com toda a felicidade prodigalizada pelo segundo.
*
Um dia, a senhora A. de B... recebeu uma carta que a tinha procurado durante algum tempo e que vinha endereçada à senhora de T... com o timbre postal de uma cidade da América. A letra do sobrescrito perturbou-a, e quando o rasgou, as prime iras linhas fizeram-na estremecer violentamente.
Seria unia mistificação sacrílega ou então o desgraçado T... haveria imaginado antes de se matar aquela partida que forneceu a Retif de la Bretonne o assunto de um curioso romance? Quereria ele que, todos os sete anos, fosse enviada à sua viúva uma carta para a impedir de o chorar e para lhe fazer crer que vivia ainda?
Tal foi a primeira ideia que acudiu ao espirito do senhor A. do B... quando a sua querida esposa lhe levou essa estranha missiva datada de Nova York. Mas, depois do primeiro momento de espanto, pesando bem as palavras, discutindo as verosimilhanças, foi mister acatar por acreditar que T... não tinha morrido, que a carta era dele e bem dele, e que anunciava nela o seu próximo regresso.
Mas… o suicídio? O cadáver no enterro? Ah, a carta respondia a tudo isso!
T… contava que, em presença da sua ruína, quisera ao mesmo tempo salvar a honra o encontrar um meio de readquirir a fortuna perdida.
Orgulhava-se do sou sacrifício.
Com a cumplicidade de um coveiro da aldeia do G…, tratara de obter um cadáver aproximadamente da sua estatura, para o que fora mister esperar a ocasião durante muitos meses, e quando o coveiro generosamente pago lhe noticiou um óbito esperado, havia muito tempo, T… via-se obrigado a abrir falência.
Uma noite, portanto, colocou sobre a sua cama o cadáver cuidadosamente desenterrado, vestiu-lhe a sua roupa, e disparou-lhe no rosto dois tiros que o desfiguraram completamente. Realizado este suicídio, na casa deserta a essas horas, evadiu-se honradamente, não levando consigo senão o dinheiro indispensável para a viagem, e foi para a América tentar fortuna.
T... mostrava-se satisfeitíssimo deste expediente. Era, no entanto, sóbrio de elogios a si próprio por tal motivo, mas quando encetava o capitulo das dores da separação, das angustias daquela longa viagem, das torturas que se havia imposto, morrendo para ela, como havia morrido para toda a gente, mostrava-se de uma eloquência inesgotável. Não teria coragem de prosseguir na sua pesada tarefa de reabilitação, se ela lhe tivesse escrito, se ela o tivesse chamado! Tinha-se condenado a sete anos de trabalho, de silêncio, de sepultura!
Na sua fatuidade de mártir, não tinha a menor dúvida de que ela se tivesse conservado viúva e inconsolável. Assim, entre as voluptuosidades que ele fantasiava para um futuro próximo, punha em primeiro lugar a maior, a de a consolar de repente, bruscamente. “Não morras de alegria!” escrevia ele àquela que estava lendo isto, prestes a morrer de espanto e de terror. Enfim, estava muito rico, duas ou três vezes mais do que tinha sido, ia voltar, pagar a todos os credores capital e juros, reabilitar-se, e como doravante não haveria mais cuidados e inquietações do espirito, teria muito tempo do seu para amar a sua querida mulherzinha!
Fazia-lhe entrever como a descoberta de um paraíso desconhecido, uns louros querubins… O miserável fazia poesia, poesia de milionário, a este respeito:—Os bebês povoariam como pequeninos anjos o céu da sua felicidade inalterável etc., etc.
Esta passagem despertou muito particularmente o furor do senhor A. de B… Como se alguém tivesse precisão daquele ressuscitado para evocar os anjos e os amores! Oh, mas aquele fantasma não havia de voltar da América tão facilmente como pensava! Não e não!…
*
A primeira ideia do segundo marido foi ir ao encontro do primeiro e matá-lo de vez, visto que ousava sair do seu túmulo legal, oficial, sob pretexto do que não estava morto. A lei o o registro civil justificavam este assassínio, nada haveria que alterar no livro dos óbitos, não eram precisas rasuras ou emendas, haveria simplesmente isto —suprimir um homem. Não seria um duelo, não seria também, por assim dizer, um assassínio; seria, no caso de legitima defesa, o pontapé que Hamlet dá no solo para obrigar a entrar nele o espectro importuno que se prepara para sair. Sim, sim, a ideia era excelente! Era mister partir no mesmo instante!
—Oh, não, não farás tal! —disse a senhora A. de B…, aterrada.
Teria por ventura ressuscitado o seu primeiro amor com o seu primeiro marido?
—Tomas o partido dele? — perguntou o número 2, com um estremecimento de ciúme e de horror.
—Ingrato! Não lhe deves tu os nossos cinco anos de felicidade?
—Mas o miserável vem roubarmos!
—Não tem direito do o fazer.
—O nosso casamento é nulo. Só o dele é que é legítimo.
—Nulo?! E os nossos filhos?
—É verdade! Os nossos filhos! Os nossos filhos!…
Estavam ali os pequeninos querubins, disputando o céu aos querubins hipotéticos de que falava o ressuscitado na sua carta. Rodeavam o pai e a mãe, acariciando-os com os bracinhos. Afinal, aqueles dois anjos dissiparam a cólera do marido ameaçado; chorou-se; abraçaram-se, e acabaram por ir consultar o advogado meu amigo.
Combinou-se que este pediria o divorcio em nome da senhora A. de B..., contra o seu primeiro marido, desde que T... compreendesse que lhe era bastante perigoso regressar à França. A sua fuga estava terrivelmente complicada com uma violação de sepultura. O coveiro tinha morrido, mas ele, segundo a sua própria confissão, tinha promovido e pago o atentado. Não se lhe podia pedir razoavelmente que se matasse, seria uma lógica brutal; o que, em rigor, podia fazer-se era obter dele que sustentasse o seu papel de morto no fundo da América, e, demais, se é certo que a sua probidade ressuscitara, também podia fornecer os meios de um pagamento integral das suas antigas dividas, sem aparecer; mas tudo isto seriam expedientes romanescos. Graças ao Sr. Naquet há um meio muito mais pratico. Obter-se-á o divórcio contra ele e, uma vez obtido, o senhor e a senhora A. de B…, cujo casamento pôde ser considerado provisoriamente como nulo, tornariam a casar. Pelas ultimas noticias da América, parece que o senhor de T... se resigna a todas estas modificações dos seus projetos. Não voltará à França, e deixará pronunciar o divorcio contra ele. Se o condenarem por ter feito deitar um pobre morto na sua cama e no elegante túmulo da sua família, não protestará. Pagará as suas dividas francesas, e far-se-á naturalizar americano. E como o meio de ter seu home uns querubins é exatamente na América o mesmo que na França, usará desta faculdade na América. De mais a mais, T... deixa antever o motivo por que afinal de contas teve coragem de guardar silencio durante sete anos. Havia uma amável viúva americana...
O despeito obrigou-o a declarar esta circunstância atenuante dos sete anos de silêncio. Ao cabo deste tempo de intimidade, quando os laços se iam tornando menos estreitos, pudera estender o braço através daquelas doces cadeias e participar para a Europa a sua ressurreição. Mas, uma vez que tanto o obrigam, livre do matrimônio em França, consagrará sua ruptura com a americana, dispensando-a. E tanto na América, como aqui, o melhor dos males de uma pessoa se desembaraçar de uma amante!
*
É provável que esta história me soja roubada por um fazedor de dramas ou de comédias. Intimo o plagiário a advertir-me da minha colaboração.
Fonte: Vassourense/RJ, edição de 14 de fevereiro de 1886.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
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