VIOLAÇÃO TUMULAR - Conto Clássico de Horror - Adam Gottlob Oehlenschläger
VIOLAÇÃO TUMULAR
Adam Gottlob Oehlenschläger
(1779 – 1850)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
Havia em Colônia, no ano de 1571, um rico burgomestre cuja esposa, por nome Reichmuth, caiu doente e faleceu. Tinham vivido muito tempo e o seu enlace foi tão feliz quanto pôde sê-lo uma união humana. Reichmuth era ainda moça quando casou; havia sido bela e, durante a sua enfermidade, seu extremoso marido velou à sua cabeceira noite e dia. Os seus sofrimentos diminuíram de intensidade no último período da sua moléstia, porém tornaram-se-lhe frequentes os delíquios, e de maior duração até o momento da sua morte.
Fizeram-se-lhe pomposas exéquias na igreja de S. Pedro e seus despojos mortais ali foram depositados. Segundo os usos do século, vestiam-se os cadáveres com seda e cobriam-nos de flores. Reichmuth foi coroada com uma grinalda de rosas, seus dedos adornados com preciosíssimos anéis, e depositada em uma capela subterrânea, praticada por baixo do coro, num caixão guarnecido de vidros. Muitos de seus antepassados a haviam precedido naquele lugar e por mais de uma vez tinha ela ido orar junto de seus túmulos com piedosa comoção, contemplando através dos vidros seus cadáveres mirrados pelo tempo.
O uso de embalsamar os cadáveres tinha cessado havia tempos. O corpo de Reichmuth foi depositado no único lugar que restava na mesma capela e ali jazia em seu leito de morte, ornada com todas as suas joias, segundo o costume daqueles tempos, como fica dito.
O honrado Adocht, seu inconsolável esposo, acompanhou-a até a sua última morada, dando enérgicos senais da sua profunda dor. O sino da catedral anunciava, com seu lúgubre som, que mais um dos mortais volvera à terra. Pálida e inanimada jazia no féretro a infeliz Reichmuth, concluídos os solenes ritos prescritos pelo culto. Nada se ouvia naquela habitação do silêncio e da escuridade mais do que o som monótono da pêndula do relógio da antiga torre.
Era em uma noite do mês de novembro. O tempo estava chuvoso e sombrio quando Bolt, coveiro da freguesia, se recolhia para casa, depois daquelas suntuosas exéquias. Este pobre homem era casado havia três anos; tinha uma filha e sua mulher estava a ponto de dar à luz um segundo fruto da sua união. Palpitava-lhe o coração amargurado ao retirar-se para a sua pobre choupana, isolada, fria e úmida, situada na margem do rio, e exposta a todos os rigores da estação invernosa. Logo que entrou, dirigiu-se ao quarto de sua mulher, quando a jovem e interessante Maria lhe disse:
— Meu pai, veio cegonha e trouxe-me um mano bem bonito; mas ela mordeu a mãe num pé, e ela está muito doente de cama.
Daí a pouco chegou sua cunhada e lhe apresentou um lindo menino. O estado de sua mulher exigia despesas que excediam muito as posses do infeliz coveiro. Oprimido de dor, corre à casa do judeu Isaac, que já lhe tinha emprestado uma insignificante quantia, mas Bolt nada tinha que lhe dar em penhor. Fiado na compaixão de Isaac, bate a porta, e, ao entrar, lhe expõe, com lagrimas e soluços, a sua triste situação. Ouve-o Isaac com toda a serenidade e lhe responde, com o maior sangue frio, que não costumava emprestar dinheiro sobre crianças, e que lágrimas e gemidos eram fazenda por que ninguém dava nem sequer um real.
Ouvindo Bolt esta fatal decisão, ficou tão fora de si que errou o caminho para casa, e achou-se, sem saber como, no adro da igreja onde se acabava de celebrar o pomposo funeral. Dava o relógio um quarto depois da meia-noite. De repente, ocorre-lhe um pensamento. Considera seus inocentes filhinhos morrendo à míngua; vê sua mulher enferma e que em vão apresenta o dessecado peito ao infeliz recém-nascido… Depois, lembra-se da defunta Reichmuth, que descansa no féretro com os dedos cobertos de preciosos anéis…
— Ah! — exclama ele. — Uma só daquelas joias daria vida à minha pobre família! De que lhe servem elas? Será pecado furtar a morto para dar de comer aos vivos?
Atormentado por esta ideia, entrou em casa, depois de ter mudado cem vezes de projeto; mas a vista do quadro que se lhe apresentava fez das fraquezas forças. Acendeu a lanterna, meteu as chaves na algibeira e saiu. No caminho, parecia-lhe que a terra lhe tremia debaixo dos pês; mas , pensando na miséria que o aguardava em sua pobre casa se retrocedesse, esta ideia foi assaz forte para o animar a prosseguir decididamente no excesso que lhe ocorrera. A obscuridade da noite, o vento e chuva, que impediam a todos o sair de casa, favoreciam em certo modo o seu intento. Por algum tempo, ficou imóvel à porta; porém, tomando ânimo, abre-a, entra, e acha-se só na igreja, cuja porta deixou meio aberta.
A vista do santuário onde se achava, a ideia da divindade que ia ofender por um sacrilégio, o silêncio, a solidão daquela lúgubre morada dos mortos, tudo fazia estremecer o pobre Bolt, que por vezes esteve a ponto de não poder suster a lanterna que levava na mão. Figurava-se-lhe que sentia puxarem-lhe pelas vestes; parecia-lhe, até, que as figuras de anjos, que ornavam os lados dos altares, desprendiam as asas como para impedi-lo de prosseguir no atentado.
Então, recorda-se, com pavor, de mil contos de espectros que ouvira quando rapaz. Ocorria-lhe a horrorosa história do estudante que tinha apostado que entraria à meia-noite em numa cripta, e que, em prova da sua afoiteza, cravaria o seu canivete em um dos féretros. Mas, em vão, o esperaram os contrários na aposta; ninguém se atreveu a descer para o procurar e, no dia seguinte, acharam morto o infeliz mancebo. Ao cravar o canivete, tinha-lhe prendido a sotana a uma das argolas do caixão e, querendo retirar-se, pareceu-lhe ser detido por uma mão vingadora, e ali expirou de terror.
Todas estas lembranças não tranquilizavam por certo o espírito de Bolt, que procurava dissipá-las com seus raciocínios.
—Todos esses contos são imaginários — discorria ele. — Quantas vezes tenho eu aqui vindo, sem que nada me acontecesse.
Mas não acrescentava que aquela era a primeira que ali ia como um criminoso.
Parece-lhe perceber que a pêndula do relógio anda com mais rapidez; ele hesita.... mas a lembrança da sua infeliz família lhe presta novas forças. Passa rapidamente pelo altar-mor, desce ao subterrâneo, atravessa o estreito corredor coberto de imagens de escultura que, à frouxa e pálida luz da lanterna, se lhe antolham outros tantos espectros; entra finalmente na cripta, onde jazia, lívida e descorada, a infeliz Reichmuth… Já brilhavam aos olhos de Bolt, à luz da sua lanterna, as palhetas de ouro e os anéis preciosos que adornavam a defunta.... Bolt quer levar a mão à tampa do féretro, mas para espavorido.
— Se eu tivesse tempo — discorria ele —, furtaria antes uma dessas múmias, pois os que as trazem do Egito por certo não devem sentir remorsos… Porém, aqui, todos esses cadáveres são de gente cristã!
Reanima-se, enfim. Parece-lhe fácil abrir o caixão de Reichmuth. Tenta com um formão fazer-lhe saltar os gonzos. Vãos esforços! Quer fugir amedrontado, quando, tropeçando no mesmo caixão, este se abre como espontaneamente.... Olha a medo em torno de si, como para examinar se era observado por alguém, e, não descobrindo coisa alguma, implora, de joelhos, o perdão da defunta. Então, com o arrojo da desesperação, pega-lhe numa das mãos para lhe tirar um anel. Mas — oh, prodígio!... — ele se sente apertar por essa mão gelada que ia desacatar! Desembaraça-se daquela mãos que ainda julga inânime, esquece-lhe a sua lanterna e foge, estremecendo de horror. Atravessa, com a velocidade do raio, claustro, cruzeiro etc. E ainda teria saído incólume se, por desgraça sua, se não esquecesse que no centro da
igreja existia um túmulo de pedra, de encontro ao qual foi esbarrar. A violência da pancada lhe fez perder os sentidos por largo espaço; enfim, levanta-se, o medo lhe presta asas, sai e corre, apressurado, à casa do magistrado (burgomestre). Só antolha o seu crime, e não descobre, na sua imaginação esquentada, meio algum de escapar à ira da defunta, senão por uma completa confissão do seu atentado.
Bate, torna a bater, ninguém responde; dava o relógio da torre duas horas. O único que velava no palácio era o infeliz Adocht, a quem a mais viva saudade, a mais triste lembrança da sua querida Reichmuth não permitia que se desse ao repouso. Entregue à lembrança da adorável companheira que acabava de perder, não ouviu ao princípio o repetido bater do pobre Bolt; afinal, levanta-se, e pergunta de uma das janelas quem bate àquela hora.
— Sou eu, Sr. burgomestre.
— Quem és tu?
— Sou o coveiro da igreja de S. Pedro. Tenho uma coisa da maior importância a comunicar-lhe.
O magistrado pega em uma das velas e desce a abrir-lhe a porta.
—Que te traz aqui? — pergunta Adocht, com agitação.
Bolt, ajoelhando a seus pés, lhe faz uma narração exata de sua medonha aventura. Bem quer Adocht, porém debalde, persuadir o coveiro que o acompanhe à igreja.
—Antes quero que me enforquem — responde Bolt, cheio de terror. —Antes quero morrer de fome do que ir segunda vez perturbar a paz dos túmulos.
—Mas quem te impeliu a isso? — pergunta-lhe Adocht.
—A miséria da minha família — responde Bolt.
E, então, lhe faz uma lúgubre pintura do infeliz estado a que se acha reduzida.
—Toma esses escudos — diz o magistrado — para as tuas urgentes precisões, e, acabados que sejam, vem me falar. Porém, lembra-te que a menor indiscrição da tua parte, em revelar o que me comunicaste, fará cair sobre ti todo o rigor das leis.
Partiu Bolt e, como é bem de supor, o triste Adocht se apressou logo a profundar este misterioso acontecimento.
Chama um criado velho, em quem tinha toda a confiança, e lhe pergunta:
—João, tens medo de defuntos?
—Não, senhor —responde-lhe laconicamente o criado. — Esses são menos perigosos do que os vivos.
—Terás ânimo de entrar esta noite na catedral?
—Sim, senhor, se vossa senhoria ordenar-me; por outra forma, não, senhor, porque se não deve perturbar as cinzas dos mortos.
—Crês em almas do outro mundo, João?
— Sim, Sr. burgomestre.
—Terás medo delas?
—Não, senhor, porque confio em Deus.
—Queres vir comigo à catedral? Tive hum sonho extraordinário: pareceu-me que minha mulher me acenava do zimbório da igreja.
—Certamente — rosnava o criado — este fanfarrão do mestre Pedro meteu alguma teia de aranha na cabeça de meu amo. Coveiros estão sempre sonhando com defuntos!
—Acende a lanterna, João. Segue-me, eu te ordeno.
—Como vossa senhoria manda, obedeço por dois motivos: primeiro, porque é meu amo; e, segundo, por ser o primeiro magistrado da cidade.
Acesa a lanterna, o burgomestre se dirige imediatamente à igreja, porém o criado, que o precedia com a luz, parava a cada passo para lhe pedir a explicação dos diferentes epitáfios gravados sobre os túmulos mais suntuosos. Bem quisera Adocht esquivar-se então a estas morosas e enfadonhas perguntas; era-lhe, porém, necessário animar com suas respostas o seu tímido companheiro. Chegam, por fim, ao altar-mor e João para repentinamente, sem que seu amo consiga fazê-lo andar.
—Anda —grita-lhe Adocht.
—Valham-me todos os anjos do Paraíso!
E, dizendo isto, puxa pelo seu rosário.
—Que é isso?! — exclamou Adocht.
—Olhe para ali, senhor; não vê minha ama sentada no altar-mor bebendo por uma taça de prata?
João volta a lanterna para o lado onde estava Reichmuth, pois efetivamente era ela.
—Querida esposa — exclama Adocht —, em nome de Deus.... és tu, ou é a tua sombra que diviso?
—Ah! — respondeu uma voz desfalecida. —Enterraste-me viva, e eu ia sucumbir, mas algumas gotas deste vinho me reanimaram. Conduze-me para casa, querido esposo; estou mui fraca e, se me não socorrem, deixo de existir.
Adocht corre ao altar, toma em seus braços, trêmulos de susto e prazer, a sua querida metade, que voltava à vida como por um milagre.
Logo que Bolt fugira, Reichmuth tinha tornado a si depois do letargo, que a fez julgar morta, e passado momentos terríveis. Antes de conhecer onde estava, tinha, agitando as mãos, lançado no chão a lanterna que Bolt havia deixado e, então, se achou na mais completa escuridão. Apalpa-se, acha-se coberta de seda; leva as mãos à cabeça e encontra as palhetas de ouro com que a tinham adornado. No meio das trevas, não lhe era possível atinar o que isto lhe pudesse indicar. Um fraco clarão da Lua, que nesse momento entra pelas janelas, lhe faz conhecer onde se acha, e todo o horror da sua situação. Seus gritos penetrantes e agudos retumbam nas abóbadas do claustro e — oh, terror! — conhece, então, que fora enterrada viva!… Sozinha, às escuras, entre cadáveres, sem meios nem aparências de poder sair daquele lugar, acresce-lhe a medonha ideia de ali perecer de fome sede, não podendo esperar socorro algum, pois só se abria a igreja uma vez por semana! Reichmuth arranca os cabelos, morde as mãos no auge da desesperação... O frio dos túmulos começa a enregelá-la. Procura, apalpa e encontra a mortalha, que com o esbracejar tinha arrojado de si. Abriga-se com ela e o pouco calor que esta lhe ministra a anima algum tanto. Invoca, com as mais fervorosas preces, o auxílio da Virgem, cuja imagem se venera no templo. Sobe à igreja, cuja porta felizmente só achou cerrada. Reichmuth entra na igreja, mas faltam-lhe as forças para passar além do altar-mor.... O frio da morte lhe tolhe os membros; ela vai sucumbir.... Uma inspiração celestial lhe faz ocorrer que, por detrás do altar, costumavam os padres guardar o vinho que servia para a celebração da missa; pode a custo lá chegar e encontra generoso licor, suficiente para reanimar suas desfalecidas forças.... Foi, então, que seu marido a foi achar.
Adocht tomou todas as medidas para a fazer transportar com prudência e cautela e ouviu, com a mais viva e terna alegria, declararem que estava fora de perigo. Enquanto a Bolt, nunca mais quis tornar à igreja como coveiro. Adocht e sua esposa foram seus protetores e de sua mulher, e padrinhos do recém-nascido, causa feliz da conservação de Reichmuth e da felicidade do extremoso Adocht. Assim, a triste cerimônia de um enterro foi substituída pela alegre solenidade de um batizado.
Fonte: Museo Universal, edição de 4 de setembro de 1841.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
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