ERMENGARDA - Conto Clássico Cruel - Francisco de Paula Mellado
ERMENGARDA
Francisco de Paula Mellado
(1818 – 1876)
Tradução de Paulo Soriano
Corriam os anos de 1080 e o valente conde Raymond Berenguer1 —apelidado de Cabeça de Estopa, por causa da cor extremamente loira de sua cabeleira — governava o estado de Barcelona, quando uma jovem nobre, sua parente e pupila, chamada Ermengarda, acendeu involuntariamente a mais viva paixão no peito de Godefredo de Rocaberti.
Era este um guerreiro feroz, amigo íntimo do conde, que o preferia a todos os seus cavaleiros por suas assombrosas façanhas; mas, estranha mescla de valentia e crueldade, vangloriava-se ele de jamais ter poupado um inimigo — mesmo depois rendido — e de nunca ter-se comovido com as lágrimas de uma mulher.
Com um tal coração, não poderia Godefredo ser amado pela terna e angelical Ermengarda que, com desdém, rejeitou as suas juras de amor. Por muito tempo, pelejou Godfrey pelo amor da dama, mas sempre se deparou com um peito tão duro quanto um diamante.
No entanto, ele pediu ao conde, seu senhor, a mão da ilustre órfã; Raymond Berenguer, contudo, condicionou a sua bênção ao consentimento da própria Ermengarda; mas, ciente da repugnância que esta lhe nutria, não insistiu na celebração do pretendido enlace.
Semelhava que Godofredo de Rocaberti renunciara aos seus desejos, pois deixara de acossar Ermengarda com suas fastidiosas solicitudes; todavia, em verdade, engendrava friamente a mais terrível vingança.
Certa noite, chamou à sua câmara, sita próprio palácio condal, um belo pajem de Raymond Berenguer, chamado Udalrico, com o pretexto de dar-lhe certas ordens; contudo, mal tendo o rapaz em sua presença, sepultou um punhal em seu coração com a ferocidade de um tigre.
Ao mesmo tempo, uma camareira de Ermengarda, seduzida por Rocaberti, ministrava à jovem um leve narcótico, que deveria adormecê-la por pouco tempo.
O assassino tomou sua vítima inocente nos braços, deitou-a na cama de Ermegarda, já adormecida, e foi acordar o conde, levando na mão a lâmina ensanguentada.
— Senhor — disse ele —, permiti a vosso mais fiel serviçal que interrompa o vosso sono. Vossa real linhagem foi desonrada; uma indigna jovem imprimiu uma mancha indelével em vosso nobre brasão.
Quando o pérfido caluniador o conduziu ao quarto de sua pupila, mal podia o nobre conde acreditar nos próprios seus olhos.
— Sim, grande senhor — prosseguiu Rocaberti —, há dias eu sabia de tais vis casos amorosos, e estive a rondar incessantemente a casa daquela a quem eu quis a chamar de esposa. Hoje, porém, achando-me oculto, vi o traidor entrar e o matei.
—Fizeste bem, por Deus, valente Rocaberti, e eu recompensarei tua lealdade.
Ermengarda voltou a si por um instante — mas não mais que um instante —, pois, ao ver ao seu lado um cadáver ensanguentado, voltou a cair no desvanecimento. O conde fê-la conduzir a uma prisão escura e a condenou à morte. A desgraçada moça não conseguia entender o que lhe passava, mas lhe ocorreu que poderia apelar do julgamento dos homens ao juízo de Deus. Assim, pediu e obteve uma prova de combate, e mensageiros partiram prontamente em todas as direções para propalar a notícia aos habitantes do condado de Barcelona, caso houvesse alguém que pudesse ser o campeão da acusada.
Nenhum guerreiro se apresentou, pois todos acreditavam que Ermengarda era culpada e, além disso, Godofredo de Rocaberti era tão terrível que os mais corajosos se regozijavam de não se verem obrigados a lutar contra ele, para não mancharem com uma derrota indubitável os louros que já haviam adquirido.
Enquanto isso, chegava o dia da execução. Na praça do palácio do condado (denominada hoje Praça do Rei), uma liça já estava preparada para o combate e, a seu lado, erguera-se um alto patíbulo, dotado de afiada lâmina, no qual a inocente Ermengarda ou seu pérfido acusador — se derrotado fosse — deveria morrer.
Faltavam poucas horas para a execução, quando um jovem de dezoito anos, de alta linhagem, pediu e obteve uma audiência com o conde.
—Senhor — disse ele —, chamo-me Arnaldo de Oms e descendo de uma célebre família nos faustos da Catalunha desde a época de Carlos Magno. A desafortunada Ermengarda é minha parente e não tem quem a defenda. Tende por bem armar-me cavaleiro, para que eu possa lutar com o seu acusador.
Temendo pela vida do generoso rapaz, Ramon Berenguer se recusou prontamente a atender a essa demanda, mas, vencido por suas reiteradas súplicas, ordenou-o a que se ajoelhasse, tomou-lhe o juramento de fidelidade a Deus e às damas, de defender a religião, a inocência e a formosura; e, desnudando a sua espada, com ela três vezes o sagrou cavaleiro, dizendo:
— Em nome de Deus, de São Miguel e de São Jorge, eu te nomeio cavaleiro.
Poucos momentos depois, coberto de armas reluzentes e montado em um brioso corcel, saiu Arnaldo de Oms em busca do temível Godofredo de Rocaberti, que já o aguardava na liça. Sorriu-se com desdém ao ver seu novel adversário e se preparou indolentemente para o combate, mas logo veio ao solo, traspassado pela lança de Arnaldo.
O povo gritou com entusiasmo:
— Eis aqui a justiça de Deus!
E o pérfido Rocaberti, acovardado com a proximidade da morte, pediu ansiosamente por um padre e disse, numa voz tão alta quanto seu ferimento mortal lhe permitia, que Ermengarda era inocente. Morreu em poucos instantes, e Raymond Cabeça de Estopa ordenou que seu cadáver fosse esfolado no mesmo cadafalso preparado para a acusada, e que sua cabeça fosse posta em uma estaca diante do palácio condal.
Ermengarda se casou com seu libertador e até hoje perdura a sua descendência.
Nota:
1Raymond Berenguer (1053 – 1082) chamado, em catalão, de Cap d'Estopes, foi conde de Barcelona, Carcasona e Rasez entre 1076 e 1082.
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