TEORIAS - Conto Clássico de Cruel - Valentim Magalhães
TEORIAS
Valentim Magalhães
(1859 – 1903)
—Com que então o júri absolveu o Malheiros?
—Que Malheiros?
—Aquele sujeito que em maio do ano passado, tendo surpreendido a mulher em flagrante delito de adultério, matou-a e ao amante, com alguns tiros de revólver — explicou Tancredo.
— Ah! Sim, recordo-me. Mas não vi a notícia, disse Frederico.
—Pois veio nas folhas. O júri reconheceu a justificativa da loucura transitória — uma tolice; mas a absolvição era justa, porque a condenação seria imoral, tão provado ficara o adultério.
Frederico ergueu-se da chaise longue, foi a um guéridon de fumante, tomou e acendeu um charuto, deu alguns passos pelo gabinete, com ar pensativo. Parou depois em frente do amigo:
— Queres que te fale com franqueza, meu caro Tancredo?
E, a um sinal afirmativo deste:
—Pois bem; acho que foi injusta e imoral a absolvição; que a condenação do assassino é que seria justa e moral.
— Mas se o homem apanhou a mulher com a boca na botija, como diz o povo?
— Nem por isso lhe assistia o direito de matá-la e ao amante. O nosso Código Penal não reconhece tal direito. Não se trata da defesa da vida própria sem outro meio de garanti-la senão a morte do agressor.
—Mas trata-se da defesa da honra, que vale mais que a vida — replicou Tancredo.
— Tá, tá… tá… Não confundamos coisas distintas. A vida é um princípio absoluto, indiscutível, quase material. A honra, não; é um princípio indiscutível e discutido, variável com as idades, os povos, os climas. O que na França é desonra não o é na Tartária, na China ou na Zambésia, Além de quê, as leis oferecem e garantem outro meio de reparação, muito menos violento e muito mais eficaz.
—Qual?
—O divórcio.
—Ora, o divorcio! E o marido há de encontrar impunemente nas ruas, nos teatros, nos passeios a sua desonra viva, e há de suportar calmamente que o apontem na rua com murmúrios e cochichos infamantes? Sou um teu criado!
Frederico arrastou uma das elegantes cadeiras de laca do gabinete pelo espaldar marchetado de madrepérola, trouxe-a para defronte do divã em que o amigo se recostava, escarranchou-se nela e, sugando uma longa fumaça, que se desdobrou brancacenta no ar, perfumando-o, disse:
— Ouve-me, Tancredo. Sou casado há três anos com uma mulher formosa, a quem amo e de quem me julgo amado…
—Bem sei — interrompeu o amigo, acomodando o busto na almofada de cetim azul claro, em que se destacava, bordado a froco de seda ouro velho, o monograma do dono da casa: um F e um M.
— De certo que o sabes, pois somos amigos há dez anos e nunca tivemos segredos um para o outro. Mas se to digo é porque preciso estabelecer as bases da minha teoria sobre o adultério. Se minha mulher, que eu adoro, me traísse um dia, eu não lhe aplicaria o Tue-la1 do casuístico Dumas filho.
—Nem ao amante? —perguntou Tancredo, com um ligeiro tremor na voz, que passou despercebido ao amigo.
— Nem ao amante. Não mataria a adúltera, porque o adultério é um crime que, no meu pensar, só desonra, só infama, só envilece a mulher. Se eu faço um contrato de sociedade comercial com um homem que julgo honesto e ele, traindo-me, rouba-me, sou eu, o roubado, que fico sujo desonrado, ou ele, que é o ladrão? Ele, decerto. Como admitir, então, que a desonra recaia sobre o marido? Pois não é este o roubado? Morta a adúltera, o adultério é enterrado com ela: viva, marcada com o ferrete ignominioso do divórcio por adultério, o seu crime a acompanhará por toda parte, como um cão fiel, fechando-lhe todos os lares, justificando todas as investidas e propostas dos libertinos que a conheçam. Não se deve, portanto, matar a mulher e, por conseguinte, tampouco o amante. O crime é dela, e não dele. Um par de boas bofetadas ou uma roda de bons pontapés certeiros no centro de gravidade é quanto basta para ensiná-lo a respeitar o quinto mandamento.
—Raciocinas como um jurista e um filósofo, que és. Eu, porém, que sou médico e sei menos mal o meu Cláudio Bernard, o meu Lucas, o meu Vogt, encaro a questão por outra face, estudo-a de outro ponto de vista. Isto de matar ou não matar não depende das teorias que o homem adota, nem da filosofia ou religião que professa, mas unicamente — sabes de quê? — do temperamento. O Camilo mesmo diz isso, comicamente, num esboço de comedia que vem na Boêmia do Espírito. Leste?
—Não li.
—Diz ele, mais ou menos, isto: “Há maridos que são enganados e matam outros há que são enganados e… jantam”. Tu jantarias…
—Tancredo!
E Frederico ergueu-se rápido com eis faces afogueadas de vergonha e os lábios trêmulos de ira.
— Perdoa-me. Escapou. Mas essa revolta instintiva prova que a tua teoria é falsa.
—Não prova tal: mas somente que não admito insultos ou mesmo gracejos de mau gosto.
—Já te pedi perdão; escapou-me. Bem sabes quanto te admiro o caráter e quanto respeito as tuas opiniões, por menos que as compartilhe.
Neste momento, ouviram-se duas leves pancadas numa das folhas da porta do gabinete, que ficara entreaberta, e dava para o corredor, e logo em seguida uma deliciosa voz feminina, perguntando:
—Pode-se entrar?
—Entra, Gabrielinha —exclamou Frederico, indo à porta.
Tancredo ergueu-se rápido do divã, consertou o laço da gravata, compôs os cabelos e esperou de pé, esboçando uma atitude de respeitosa cortesia.
— Discutiam? — perguntou a mulher do advogado, inclinando a fronte para os lábios dele e estendendo, ao mesmo tempo, a mão ao médico, com um gesto de amizade.
Era unia moça de 20 a 22 anos, de estatura média, com uma cabeça graciosa e pequenina como a de uma rola. Morena, desse moreno claro e ardente das brasileiras do Sul, brilhavam-lhe umidamente os grandes olhos negros, alegres e bons, e a boca pequena, mas de lábios carnudos, tinha sorrisos que eram beijos vagos, que pareciam endereçados à pessoa que os olhos fitavam. O queixo redondo, cheio, com uma covinha, as orelhas róseas e bem-feitas, e o cabelo negro, ondeado, erguido da testa num penteado de encantadora singeleza, completavam a fisionomia mais fresca, mais graciosa, mais tentadora que possa desejar uma mulher coquete.
O vestido, de uma simplicidade elegantíssima, aumentava o ar garrido e inocente de toda ela.
Sentou-se à secretária do marido, na cadeira de rosca, e, fazendo-a dar uma volta, pôs-se a brincar com um corta-papel de prata e marfim entre as mãozinhas macias, de unhas luzentes.
— Não discutíamos, conversávamos… — respondeu-lhe o esposo, tornando a sentar-se.
— E a respeito de quê? — e, voltando-se para o médico:
—O doutor perdoa-me a curiosidade, não perdoa? É tão própria das mulheres!…
—De certo, minha senhora. É o seu maior encanto e a sua melhor arma. Conversávamos a proposito do Malheiros, aquele que matou a mulher e o homem com quem ela o traía
— Oh, que assumpto horrível! Antes discutissem política.
E, nesse momento, não sorria.
— O Tancredo aprovava a absolvição; eu condenava-a, por só reconhecer o direito de matar em legitima defesa.
—Basta; o assunto, além de trágico, não me interessa.
E, levando os olhos do marido para o médico, perguntou a este, sorrindo-lhe, isto é, beijando-o:
—Vai amanhã ouvir o Otelo, doutor?
II
Subordinada ao título Dramas do Adultério, impresso em versais, na terceira coluna da primeira página do diário *** de 26 de agosto de 188…, lia-se a seguinte notícia:
“Uma horrível tragédia acaba de dar-se nesta capital; mais uma dessas hediondas cenas de sangue motivadas pela traição conjugal
“Infelizmente os personagens desse novo drama do adultério pertencem à nossa melhor sociedade. O marido, vingador austero e implacável da honra do lar doméstico, conspurcado pela mais desenfreada luxuria, é o ilustre advogado Dr. Frederico Mendes, uma das maiores glórias do foro brasileiro.
"Narremos, porém, os fatos, segundo as notas do nosso repórter, que temos à vista.
“O referido advogado e o Dr. Tancredo Lopes, clínico bem conhecido, eram amigos íntimos: aquele casado, solteiro este. Em dias da semana passado, fora o Dr. Mendes a Ouro Preto, no exercício de sua profissão, viagem em que devia demorar-se oito dias, pelo menos.
“Ou porque o negócio que o levara a Minas tivesse tido solução mais rápida que a que previa o ilustre advogado, ou por qualquer outro motivo que não conhecemos, o certo é que ele regressou ontem a esta cidade inesperadamente, sem prévio aviso telegráfico, provavelmente no intuito de causar à sua esposa uma surpresa que julgava lhe fosse agradável.
“Mal sabia o desgraçado o que o esperava no lar!
“Está situada a sua casa na rua Marquês de Olinda n *** . Chegando às dez horas da noite à Estação Central, pois o trem viera com atraso, tomou um tílburi e mandou tocar para casa.
“Desejando causar surpresa, nela penetrou pelos fundos, sem ruído.
“Chegando à sala de jantar, deserta e pouco iluminada, viu luz no quarto conjugal e ouviu vozes e risos… Empurrou a porta… Momentos depois, a casa, erma e silenciosa, ressoou longamente com os estampidos horríveis de quatro ou cinco tiros de revólver.
"Quando a polícia e populares a invadiram alguns, minutos depois, atraídos pelos tiros e pelos gritos, medonho foi o espetáculo que se lhes antolhou. "Dois cadáveres jaziam prostrados no chão, banhados no próprio sangue. Eram o da esposa adúltera e o do seu amante. Aquela fora atingida por duas balas: uma no coração e outra no ventre; e sobre o peignoir de surah de seda vieux-rose, escorria fartamente o sangue.
“Seu amante, em mangas de camisa, estava estendido de frente, com o tronco torcido, tendo agarrado uma cadeira na mão direita, o que indicava que procurara defender-se. Uma bala atravessara-lhe a garganta, outra partira-lhe a clavícula direita. O grande espelho do rico psyché de pau-rosa estava feito em estilhaços.
“O Dr. Mendes foi encontrado num estado de grande excitação nervosa, passeando na sala de jantar com o revólver na mão, e exclamando ininterrompidamente: ‘Infames! Infames! Infames’!”
O mais que se seguiu não interessa: exame e remoção dos cadáveres, prisão do assassino, etc.
Mas o que a imprensa não publicou, e é deveras interessante, é que, sobre a secretária de Frederico Mendes, sob um peso de cristal, havia um maço de provas tipográficas e na primeira delas lia-se o seguinte:
“NÃO A MATES”
(Resposta ao Tue-la de Alexandre Dumas Filho)
Estudo filosófico, jurídico e social
POR
FREDERICO MENDES
Bacharel em Direito e advogado nos auditórios do Rio de Janeiro
Fonte: Renascença/RJ, edição de setembro de 1907.
Nota:
1Mate-a.
aí amigo Barão comprei um notebook novo a prestação, teu site fica porreta no notebook novo; vamos em frente. Vou lendo.
ResponderExcluirPorreta, cara! Você merece!
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