O AUTOBÓLIDO - Conto Clássico Fantástico e de Ficção Científica - Marcel Gerbidon
O AUTOBÓLIDO
Marcel Gerbidon
1868 – 1933
Tradução de autor anônimo do séc. XX
O professor Just Porquerol despertou. Deu volta ao interruptor da luz elétrica e consultou o cronômetro: eram 6 horas, 23 minutos e 47 segundos. Neste momento devia começar a amanhecer na face da Terra que ele havia deixado treze horas antes. Onde estava ele? Foi abrir um postigo e olhou para fora: prodigioso formigamento de astros o deslumbrou; não conseguia se orientar; apenas Saturno com o seu anel, visto a grande distancia abaixo dele, deu-lhe vagos indícios. Enrugou-se-lhe inquieta a fronte; abriu o registro: se os seus cálculos estavam certos, devia ele neste momento preciso se deslocar no espaço com a velocidade de 38.537.623 quilômetros por segundo. Consultou o aparelho registrador das velocidades: marcava 38.537.624 quilômetros.
Iluminou-se-lhe o rosto e uma chamazinha de orgulho cintilhou-lhe por detrás dos óculos. Estavam certos os cálculos; em 231 horas exatamente, ou a 5 de Abril de 1924, o “Autobólido”, levando no bojo o professor Just Porquerol, atingiria um dos planetas dependentes da constelação do Relógio.
Ele nascera em 1841, no reinado do bom rei Luís Filipe, em Guignicourt (Aisne). Na escola de Reims, onde fora educado, deixara fama de sovina. Passava as horas das aulas e dos estudos a construir motorzinhos de sua invenção, cada qual mais complicado: já então o apaixonava o estudo do movimento.
Mais tarde, tornou-se de prodigiosa força em matemáticas, porém ficou de supina ignorância no mais. Em 1860, aos dezenove anos, enunciou ele o seu famoso teorema dos romboedros, que pôs em fogo a Europa... A Europa dos matemáticos, entenda-se.
Por esta ocasião, foi apresentado ao ministro da Instrução Pública. Alguns anos mais tarde, Just Porquerol era nomeado professor de matemáticas do colégio de Sables d'Olonnes.
Cinquenta e cinco anos depois ainda estava, e foi de Sables d'Olonne que ele partiu para a grande viagem em direção à constelação do Relógio. Assim, para começar, este sedentário empreendia um deslocamento prodigioso. “Prodigioso” não parecerá qualificativo excessivo, se se pensar que a constelação para onde Just se dirigia se acha a 477 trilhões, 907 bilhões, 776 milhões de quilômetros da Terra. Como viera a ideia de tal viagem a este velho, que se espantava só com a perspectiva de se afastar meia légua do seu domicilio? Aqui vão os fatos:
Um dia — foi no verão de 1877 — o professor Porquerol fizera, ou julgara ter feito, uma descoberta inaudita: a de um motor que, lançado no espaço, aí se deslocava com velocidade constantemente acelerada, de modo que, saindo da atmosfera terrestre, este motor avançaria no fim de alguns segundos com a velocidade de um trem expresso, no fim de alguns minutos com o quíntuplo da velocidade da luz e no fim de alguns dias com uma rapidez tão vertiginosa que o espírito se recusava a concebê-la.
Quando chegou à Academia das Ciências, a nota em que estava resumida esta descoberta foi um escândalo. Um movimento indefinidamente crescente era possível? E como supor um motor varando o éter sem a atmosfera como ponto de apoio? O relator devolveu o manuscrito a Just com uma carta em que havia apenas estas palavras: “Isto é obra de um demente”. Just imediatamente devolveu a carta ao relator escrevendo-lhe por baixo: "Isto é resposta de besta”.
Toda esta história havia feito barulho na cidadezinha em que Just, com os seus modos bizarros, era de ha muito objeto de espanto e de desconfiança. Ele tinha se tornado mais esquisito ainda, falando alto nas ruas, desatando às vezes a rir estrondosamente. Os meninos o acompanhavam, zombando dele. Chamavam-no “maluco”. Uma noite de fevereiro de 1880, surpreendido longe de casa por uma tempestade de neve, Just entrou ao acaso no primeiro café que encontrou. Era o café mais chique de Sables d’Olonne, o “rendez-vous” da “jeunesse dorée” da cidade. A entrada do hirsuto professor, magro, com o trajo surrado, foi acolhida com insultante alegria. Uma das mesas, principalmente, se distinguia pelos risos ruidosos. Just ergueu a fronte, foi direito ao grupo dos folgazões, encarou o que lhe pareceu mais tolo e disse-lhe:
— Se me dirijo de preferencia ao senhor, é porque o seu aspecto me parece resumir a inépcia desta cidade. Nunca seria demais toda pena que eu tivesse da senhora sua mãe, a quem a Providência aflige com semelhante progênie. E ao senhor, também, lamento por estragar a mocidade e a fortuna em tolices, ao invés de as consagrar a eterna gloria das matemáticas”.
E, enquanto o efebo, bestificado por esta inesperada apóstrofe, ficava mudo, o professor Just Porquerol, em meio do silêncio assombrado de todo o café, atravessava a sala, abria a porta e saía.
*
Na manhã seguinte Just, ouvindo baterem-lhe à porta, foi abrir e se achou cara a cara com o rapaz da véspera.
—Chamo-me Anselme Camenton — disse o moço — e sou filho único do mais rico industrial de Sables d'Olonne, que costuma dizer que tenho dinheiro demais para trabalhar. Se bem compreendi o que o senhor me disse ontem, o senhor insinuou que eu era um rapaz estúpido… Não, não me interrompa… Não estou habituado a falar por muito tempo, preparei o que tinha para lhe dizer e ficaria muito atrapalhado se me cortasse a palavra. O senhor insinuou, disse eu que eu era um rapaz estúpido. Pois bem! O senhor tem toda a razão. A vida que levo me aborrece mortalmente. Estou certo de que o senhor não se aborrece. Passei ontem mais de uma hora a refletir; meus pais pensaram que eu estivesse doente e por um triz que não mandaram chamar o médico. Com efeito, eu devia empregar melhor a minha fortuna, mas não sei como fazê-lo. Quer o senhor auxiliar-me? No dia primeiro de cada mês recebo quatro mil francos. Destes quatro mil, eu lhe trarei três e nós trabalharemos juntos.
A coisa pareceu tão natural a Just, que ele nem sequer pensou em agradecer a Anselme.
— Agora — disse ele simplesmente —, vou tentar pôr em prática o motor que ideei. Sente-se, meu caro colaborador.
Foi uma colaboração burlesca e comovente. Todos os dias, às duas horas, Anselme chegava e sentava-se defronte de Just, até as seis, quando se levantava e partia. Por vezes, Just não lhe dirigia a palavra durante a tarde toda. Anselme, porém, estava encantado, pois presentemente a sua vida já tinha um fim determinado: já via alguém trabalhar.
E ele o viu durante quarenta e quatro anos. Durante quarenta e quatro anos, Anselme veio todos os dias — exceto o de seu casamento — sentar-se diante da mesa do professor. Just passou dezessete anos a construir o motor. Mas, uma vez construído, como verificar que, solto no espaço, ele o percorreria em velocidade sempre crescente? A alguém impendia fazer a verificação, e este alguém só podia ser o inventor. Este montou, portanto, um aparelho que denominou “o Autobólido”; este trabalho tomou-lhe perto de três anos. Mas onde aportar? Era preciso encontrar um astro colocado de tal modo que o Autobólido, dirigindo-se para ele, não encontrasse obstáculos que o detivessem. Os cálculos para determinar o rumo exigiram vinte e quatro anos.
Assim, haviam decorrido os anos sem que Just e Anselme o sentissem. Tornaram-se-lhes grisalhos, depois brancos os cabelos; os olhos embaciados e os gestos pesados; Anselme ficara velho e Just velhíssimo; mas havia neles uma chamazinha sempre brilhante e cálida; esta chamazinha era a vida de ambos, e ambos eram felizes.
A 18 de março de 1924, às 4 horas e 37 minutos da tarde, Just depôs a pena, encarou Anselme e disse-lhe:
—Pronto.
Resolveu partir oito dias depois. Bem quisera Anselme acompanhá-lo; nada o retinha, estava órfão, viúvo e sem filhos. Mas seria preciso dobrar a provisão de alimento e de líquido; o Autobólido não poderia aguentar tal carga. Teve de ficar e esperar na Terra que o amigo voltasse… Se voltasse!
A 26 de março os dois se abraçaram chorando. O viajante fechou-se no Autobólido; pôs o motor em marcha e, devagarinho, o professor Just Porquerol alou-se no espaço. Anselme o acompanhou com os olhos enquanto o pôde avistar… depois que voltou para casa. Mas o hábito era muito forte: no dia seguinte, à hora costumeira, e todos os demais dias, ele se foi fechar no laboratório do velho amigo; aí se mergulhava nas mais inúmeras notas, nos cálculos infinitos e, nada compreendendo daquilo, acabava adormecendo…
Havia duzentas e dez horas que Just partira. Ele deteve o motor; só lhe faltavam, com efeito, oito bilhões de quilômetros para atingir o alvo, e era mais que tempo de deixar de diminuir a velocidade pouco a pouco, se não quisesse ficar pulverizado ao tocar o planeta que se escolhera para fim da viagem.
Batia-lhe com força o coração, de alegria, de orgulho e, também, de medo. Que iria ele encontrar nesse planeta? Haverá lá seres vivos? E que seres eram esses?
Ia, aliás, sabê-lo a breve trecho; os astros da constelação do Relógio aumentavam a olhos vistos; ele governou para o planeta mais próximo. Uma diminuição brusca o advertiu de haver penetrado em atmosfera resistente... Um pequeno choque... Chegara. Presa de intensa, emoção, Just soltou os parafusos que fechavam a entrada, a chapa de aço caiu e ele saltou ao chão. Achava-se no meio de uma praça pública cheia de entes que, enfileirados em círculo, o contemplavam. Não pareciam maus; tranquilizado, Just os encarou.
Eles se mantinham de pé como homens e tinham rostos quase humanos; os traços fisionômicos se pareciam com os nossos, mas estavam dispostos em ordem diferente; a boca era por cima dos olhos; só tinham uma orelha no meio da testa; em compensação, tinham dois narizes, um de cada lado do rosto, e as narinas se lhes abriam e fechavam continuamente como as guelras dos peixes. Traziam o busto e os dois braços ocultos por um vestido de onde saía uma perna única, que se ligava a um pé bizarro; este pé, prodigiosamente comprido, flexível e mole, curvava-se e soerguia-se, depois achatava-se, de modo que caminhava à feição das lagartas, mas com extraordinária rapidez. E, como um deles se voltasse, Just viu-lhe no meio da cabeça, pendente como um rabicho de chinês, um terceiro bracinho, quase atrofiado, terminado por minúscula mão, com que ele se coçava as costas. Todos, sem exceção, traziam à cabaça estranhos chapéus, espécies de cones truncados de metal pintado; os que traziam os vestidos mais ricos tinham ao mesmo tempo os chapéus mais altos, de onde concluiu Just que a altura da carapuça era entre eles uma distinção honorifica. Conversavam eles entre si em uma língua esquisita e muito suave.
Just morria de sede: animado pela tranquilidade do círculo que o cercava, aproximou-se do ente que usava o chapéu mais alto, e lhe fez sinal de que tinha sede. Sem dúvida foi compreendido, porque o sujeito da grande carapuça tomou-o pela mão para o guiar. Just teve um movimento de repulsão: a mão do planetário estava gelada e cada um dos seus oito dedos terminava em bola, como as patas de certas rãs; mas dominou-se e o seguiu. Atravessaram algumas ruas entre o assombro geral e penetraram em uma grande casa; fizeram-no sentar e diante dele colocaram uma taça de vidro; depois, um criado trouxe uma grande bola coberta de pelos compridos, cinzentos e raros, e que sem duvida era um animal, pois que se mexia e soltava uns gritinhos, agudos. O criado pôs animal por cima da taça, picou-o com uma agulha de vidro, e saíram algumas gotas de um liquido xaroposo de cor azul; apresentou a taça a Just, enquanto a bola cinzenta, posta em liberdade, se punha a correr com grande porção de pernas subitamente aparecidas.
Just bebeu: essas gotas eram tão refrigerantes que bastaram para o saciar. Então, procuraram conversar; falou e os planetários responderam; mas era um barulho vão, pois que se não compreendiam. Entretanto, Just apontou para si próprio, dizendo: “Just! Just!”. O ente do chapéu grande fez o mesmo, dizendo: “Mui! Mui!”. Era o seu nome. Mas não se pôde ir além, apesar de grandes esforços. De repente, Just teve uma ideia, ao ver na parede um quadro preto e um pedaço de giz; aproximou-se do quadro, no qual traçou figuras geométricas. Do grupo que o olhava, saiu um longo murmúrio de espanto; Mui fez sinais de inteligência; eles se haviam compreendido, porque a geometria é absoluta, é de todos os tempos, é de todos os lugares.
Com a mão gelada tomando a de Just, Mui o levou pelas ruas. Após um trajeto muito longo, eles entraram em um grande estabelecimento e penetraram em uma sala onde estavam sentados uns sujeitos de carapuças de monumental altura; evidentemente, eram altíssimos personagens. Just procurava explicar como podia aquela gente, com tais chapéus, passar pela porta muito baixa e única por onde se entrava na sala. Teve a decifração do enigma vendo entrar um deles; com a mãozinha que lhe pendia atrás das costas, o grande personagem puxou de um cordel que caía do alto do chapéu: os diferentes segmentos do cone se encaixaram uns nos outros, como os tubos de um óculo de alcance; entrado na sala, ele soltou o cordel e o chapéu volveu à primitiva posição. Contou Just quarenta carapuças, cujos donos pareciam muito zangados e falavam todos ao morno tempo, olhando-se com ódio e desprezo; ele compreendeu que estava na Academia das Ciências. Todos se calaram quando ele entrou, e examinaram curiosamente o habitante da Terra. Mui falou; desenhou no ar figuras geométricas; explicava, sem dúvida, que o estrangeiro era um sábio. Fez sinal a este para que o seguisse; passaram por numerosos corredores, subiram muitas escadas e acabaram por chegar ao alto do estabelecimento, em uma sala onde havia um telescópio.
Just nunca havia visto um aparelho tão monstruoso; o comprimento era enorme e o diâmetro da extremidade gigantesco. Os acadêmicos haviam seguido Just e olhavam; ele andou em volta do aparelho e o tocou como conhecedor. Um deles então se aproximou e fez manobrar o mecanismo; o telescópio começou a se mover devagar e Just, inclinado para o espelho refletor, viu — porque já era noite — passaram-lhe diante dos olhos mundos tão próximos que ele distinguia tudo quanto se passava na superfície deles.
Mostrou-lhe Mui um mapa celeste que cobria as paredes da sala e, em armários, grande quantidade de livros de grande formato; ele abriu um destes livros: era um atlas. Compreendeu Just que Mui lhe perguntava se queria ver o país de onde acabava de chegar; durante algum tempo procurou no mapa, porque encontrava dificuldade em se orientar no meio das constelações vistas sob um angulo novo; porém, os longos estudos que fizera lhe serviram de muito e, tateando um pouco, acabou por achar o lugar onde devia estar o Sol; designou esse lugar, trouxeram-lhe um primeiro atlas em que estava descrita esta região do céu com todos os astros e planetas; aí ele achou facilmente o Sol e a Terra, para a qual apontou. Trouxeram-lhe um segundo atlas que ele abriu e o fez ficar estupefato: muitos mapas representavam todas as regiões do globo terrestre, com as suas montanhas, rios, cidades e, até, aldeias.
Com o dedo, apontou a sua aldeia natal, Guignicourt, no Aisne.
O astrônomo leu os sinais que estavam à margem da carta, manobrou o telescópio, e chamou Just, a quem designou o espelho refletor. Just soltou um grito de surpresa; achava-se em plena Guignicourt, da qual estava vendo a imagem reduzida, porém perfeitamente nítida.
— Sim — dizia alto —, aqui está a igreja… e a escola… e a municipalidade… a casa do tio Racoupeau… Olha! É engraçado… casa dos Jourdanne... pensei que se tinha queimado há anos… Reconstruíram-na, decerto… Que vestuário tão esquisito o dos habitantes!… Todavia, não estamos no Carnaval… Ah!
Calou-se muito comovido; viu diante da objetiva a casinha em que nascera; reconhecia-a perfeitamente com a vinha que lhe enquadrava a porta, a porta que faltava à terceira janela — a do seu quarto. Abriu-se a porta, Just ficou pálido; saía uma mulher, e esta mulher era a mãe dele, morta há vinte e três anos.
Ela voltou-se e Just, trêmulo de assombro, viu que se lhe moviam os lábios e ouviu que ela chamava por alguém. De novo se abriu a porta, um menino correu para sua mãe, e ele reconheceu a si mesmo, tal como era no passado!
O professor deixou escapar um grito de terror; ergueu-se a prumo e caiu por terra desmaiado…
Quando voltou a si, sacou o seu caderno de notas, puxou o lápis e calculou febrilmente.
— Sim, sim, dizia, é isto mesmo… a Terra está a 477.907.776.000.000 quilômetros… a luz gasta, portanto, 77 anos para aqui chegar… Sim, sim… é isto… estou vendo a Terra em 1847…
Correu de novo ao telescópio: a moça havia tomado o menino pela mão e atravessava as ruas de Guingnicourt.
E, espantado, com o coração a bater como se fosse arrebentar, o professor Just Porquerol via a sua própria vida setenta e sete anos antes, no reinado do bom rei Luís Filipe.
Fonte: “Leitura para Todos”/RJ, janeiro de 1923.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
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