O CADÁVER RESSURRECTO DE NANCHANG - Conto de Terror - Conto Tradicional Chinês


 

O CADÁVER RESSURRECTO DE NANCHANG

Conto tradicional chinês


Em Nanchang, Kiangsi, em Peilanseu, dois jovens estudavam juntos. Gostavam muito um do outro e eram muito próximos. O mais velho, tendo ido visitar sua família, morreu repentinamente. Quanto a isto, o mais novo nada soube. Uma noite, assim que se deitou, o seu grande camarada abriu a porta, entrou, sentou-se à beira da cama, pôs-lhe a mão nos ombros e disse-lhe:

—Ainda não passaram dez dias desde que eu o deixei e eis-me aqui, morto: agora sou um espírito. Mas a amizade que eu lhe tinha permanece acesa. Por isso, eu não queria partir em antes me despedir.

O medo o impediu de responder; mas o amigo disse-lhe, suavemente:

—Se eu tivesse vindo para lhe fazer mal, falaria de forma tão amigável? Não tenha medo. Vim confiar-lhe os meus últimos desejos.

— O que deseja? — perguntou o jovem, um pouco mais tranquilo.

— Bem — disse o outro —, a minha mãe tem mais de 70 anos e minha esposa ainda não tem 30. Alguns alqueires de grãos por ano seriam suficientes para garantir-lhes a sobrevivência. Peço-lhe que tome conta delas. Deixo bons manuscritos. Peço-lhe que os publique, para que algo de mim permaneça… Devo ao vendedor de pincéis de escrita. Peço-lhe que pague esta dívida.

— Farei tudo isso — disse o amigo.

— Obrigado — disse o espírito. — Resta-me, portanto, partir…

Dito isto, ele se foi.

Entrementes, o rapaz se tinha recuperado do susto inicial e reacendido o afeto pelo amigo. Chamou-o de volta. O espírito reapareceu e se sentou, novamente, à beira da cama. Mas quando o olhou, viu, diante de si, um ser completamente diferente, com olhos fixos e feições desfiguradas, a exalar um olor cadavérico.

— Vá embora! — disse, aterrorizado, o rapaz.

O morto não se moveu.

— Vá embora! — gritou o rapaz, batendo na cama.

O morto levantou-se, mas não foi embora.

Aterrorizado, o rapaz saltou da cama e fugiu… O morto correu atrás dele. Não importava o quanto ele corresse, o morto continuava em seu encalço.

Depois de muito correr, exausto, o rapaz pulou um muro e caiu, inerme, do outro lado. O defunto não conseguiu saltar a barreira, mas, ainda assim, tentou lançar a sua baba mortal no rosto do rapaz.

No entanto, quando amanheceu, alguns transeuntes encontraram o rapaz caído no chão e o reanimaram, dando-lhe de beber chá de gengibre.

Entrementes, família do falecido foi avisada do incidente. Os familiares estavam à procura de seu cadáver, que havia desaparecido. Levaram-no e sepultaram-no.

Eis como esse fato singular deve ser explicado: a alma superior é benévola, a alma inferior é má; a alma superior é humana, a alma inferior é brutal. O jovem, cuja história acabamos de contar, foi visitado pela primeira vez pela boa alma superior de seu velho amigo. Mas a alma inferior — corpórea, cadavérica — havia seguido a alma superior. Quando o rapaz chamou de volta a alma superior, que já havia partido, foi a alma inferior que se apresentou. Ora, é a alma superior que molda o ser humano, com seus bons sentimentos e afeições. A alma inferior é um ser completamente diferente, estúpido e bestial. A alma superior do defunto tratava o rapaz como um vero amigo; sua alma inferior, contudo, quase o destruiu.

Todos os cadáveres errantes — todos os mortos-vivos — são almas inferiores (corpóreas). É preciso que um homem atinja o auge da perfeição para que a sua alma inferior melhore um pouco. Todavia, isso raramente acontece.


Versão em português de Paulo Soriano a partir da tradução ao francês de Léon Wieger (1858 – 1922).


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