O CASTELO DO PARQUE - Conto de Terror - Giovanne V. Silva
O CASTELO DO PARQUE
Giovanne V. Silva
“Quando a raposa ouve o grito do coelho ela vem
correndo, mas não para ajudar.”
Thomas Harris (Hannibal)
1
Quando recebi o e-mail do Sr. Demontie, corri para contar à minha mãe. A proposta era surreal; duas faxinas semanalmente — oito ao mês — por 3.500,00. Meus olhos brilharam e meu coração quase parou quando vi o salário. Precisei reler para me dar conta de que era aquilo mesmo e pensei em responder o e-mail perguntando se o salário estava certo, mas decidi tirar tudo a limpo pessoalmente, naquela segunda-feira, às 10h — como informava o documento.
A entrevista era para um emprego no Parque dos Príncipes, um bairro nobre, vizinho à minha comunidade — a desigualdade entre ambos era discrepante —, em um castelo antigo e muito (mal) dito.
Ao contrário do que eu esperava, a reação da minha mãe não foi muito positiva.
— Sei que precisa do emprego, minha filha, mas você sabe o que falam daquele lugar… Daquela rua… — ela disse, receosa.
— Mãe, as crianças gostam de inventar histórias assim… Sou adulta, esqueceu? Venho esperando por uma oportunidade há meses… Não é todo dia que alguém recebe uma proposta com um salário desse. Você sabe que as pessoas inventam histórias e aumentam tudo — eu falava, tentando acalmá-la. — E é aqui pertinho de casa… Precisamos do dinheiro, mãe… Vai dar tudo certo.
Ela respirou fundo, fechou os olhos por alguns segundos e balançou a cabeça. Espremi os lábios em um sorriso e a abracei forte.
Meu pai completaria três anos aguardando julgamento na cadeia, por ter usado da violência em legítima defesa contra um assaltante num ponto de ônibus a caminho do trabalho. Desde então, minha mãe foi entrando em uma depressão profunda e acabou largando o emprego.
Era hora de retomarmos as rédeas; independente de boatos, histórias e folclores.
*
Quando criança eu morria de medo daquela rua vazia e do icônico velho que morava no castelo devido às inúmeras baboseiras contadas pelos meus amigos enquanto crescíamos. Depois de alguns anos, tudo o que já ouvi me parecia um tanto ridículo. “Aquele velho rabugento é um lobisomem!”, “que lobisomem, ele é um fantasma!”, “não é nenhum nem outro, é o próprio capeta!”, “uma vez, minha mãe foi perseguida por uma bola de fogo que saiu do mato atrás do castelo!”, “andando de bicicleta eu ouvi um homem pedindo socorro de dentro do castelo!” e outras besteiras…
O calor era tanto que estava “um sol para cada um”, como dizia minha mãe. Mais à frente eu conseguia ver as dançantes distorções do asfalto quase pegando fogo. Enquanto eu descia a extensa rua que ligava a comunidade a uma praça na entrada do Parque dos Príncipes — com os cabelos negros ao vento e a bolsa de couro artificial pendendo no meu ombro — lembrava do olhar vazio que minha mãe me lançou quando me despedi.
Mas a carta de cobrança sobre a mesa alertando que nossos cartões seriam cancelados me motivava a seguir.
“Vai dar tudo certo”.
Meu coração estava aos pulos e minhas mãos úmidas tremiam. A rua continuava deserta. A única residência ali era o próprio castelo. Do outro lado da rua e à sua volta era somente verde — um mato alto que chegava a invadir a calçada.
Parada em frente à construção negra com duas pequenas torres despontando nas laterais e uma maior e mais larga no centro, reparava que a residência não era tão grande quanto eu me recordava — quando criança, lugares costumam ser maiores e mais impactantes do que de fato são. Um pequeno gramado separava o castelo do portão de grades com lanças incrivelmente pontudas. Há anos eu não escutava absolutamente nada sobre o velho ou sobre o castelo. Será que alguém ainda morava ali?
Bati palmas e gritei pelo Sr. Demontie; ninguém apareceu. Aquele e-mail só podia ser um trote. Aquele valor era estupendo, surreal. Quem iria morar num castelo numa cidade grande?
Apesar da antiguidade, nada estava quebrado ou com sinais de abandono. A pintura era antiga e desbotada — a mesma de anos. Empurrei o pequeno portão de grade enferrujado que se abriu em um gemido arrastado e agudo, como um coro de choros caninos prolongados. Passei pelo estreito e curvo caminho de paralelepípedo esverdeado entre o jardim com gramas altas e parei em frente à grande porta de madeira. Observei a aldrava de metal — um leão imponente abocanhando um arco robusto. Bati forte o arco contra a madeira desgastada; ninguém. Mais algumas batidas e a resposta continuava a mesma. Impaciente, bati um pouco mais forte e a porta gemeu, como se já estivesse entreaberta.
“O filho da puta que me passou aquele trote vai me pagar!” pensei, com o rosto começando a queimar de ódio, vergonha, frustração…
Chutei o pé da porta e ela abriu — a boca do castelo escancarou para mim. Observei o salão parcialmente iluminado pelas luzes do sol que lutavam contra os vidros escuros das duas únicas grandes janelas compridas e empoeiradas no alto, próximas ao teto. Uma grande mesa extensa no centro rodeada de cadeiras antigas. Liguei o flash do celular para ajudar a iluminação parca do ambiente. No fundo, uma escada larga de madeira levava para dois lances de escadas de lados opostos, ambos com um corredor que ligava a uma porta — provavelmente cômodos dentro das torres.
— Tem alguém aqui?! — gritei ainda na porta, e a resposta foi o eco da minha voz subindo as escadas. Aquele vazio silencioso eriçou os pelos dos meus braços e engoli seco.
O flash se apagou. Suspirei colocando parte da frustração para fora e me virei, decidida a ir embora.
— Carina? — a voz feminina veio dos fundos.
Olhei para trás e a silhueta franzina dentro de um vestido volumoso e antigo descia a escada central. Meu coração acelerou e senti o sangue voltando a circular com leveza, aliviada.
— Sim…
2
— Me perdoe a demora, eu estava alimentando o Sr. Demontie — a senhora segurava um prato sem nenhuma colher ou garfo dentro. Seus cabelos eram brancos e ralos, presos em um coque na nuca. — Entre, por favor, e sente-se! — apontou o queixo branco e enrugado para a mesa antes de entrar em uma porta que provavelmente levava para a cozinha.
Estranhamente, alguns fios dos meus cabelos se esvoaçavam como se estivessem ao vento, mas não havia nenhuma brisa ali. A todo instante um calafrio acariciava meus braços e nuca.
A senhora se apresentou como Vera.
— Você disse que estava alimentando o Sr. Demontie… Eu não sabia que era um trabalho de cuidadora… — falei.
Meu nariz havia entupido com tanta poeira. Cogitei tirar meu Naridrin da bolsa e usá-lo, mas pensei que seria inapropriado.
—E não é! — a mulher disse, rindo. — O Sr. Demontie está por minha conta. É só para cuidar da casa. Já fez faxina antes?
—Sim! — menti.
—Você tem alguma pretensão de horário? De manhã, à tarde…
—O que for melhor pra senhora e pro Sr. Demontie — sorri com a resposta que me soou humilhante. Eu não queria passar a imagem de uma desesperada por um emprego, mas queria deixar claro que estava disponível em qualquer horário.
—Podemos começar um teste ainda hoje… Caso você esteja livre. — Sra. Vera sorriu e as rugas nos cantos dos olhos se intensificaram.
—Tô, sim — respondi de imediato, com o coração voltando a acelerar. Era hora de mostrar que eu queria estar ali. Senti meu nariz escorrer e os olhos esverdeados da senhora notaram. Limpei rapidamente.
—Eu gostaria de saber… — comecei a dizer e a senhora se atentou. — Se o salário no e-mail tá certo…
Sra. Vera sorriu, soltando um leve riso por entre as narinas.
—Aquele é o salário inicial. Ele pode aumentar conforme você se adaptar melhor. — As palavras da mulher foram como um abraço forte com direito a pulos de alegria.
Respirei fundo, contendo a emoção. Nossos cartões não seriam cancelados e as contas seriam pagas em breve.
—Venha, vou lhe apresentar os cômodos. —A senhora se levantou.
Os móveis eram antigos e estavam foscos pela poeira. O acúmulo de teias velhas e ressecadas dançava em cada canto, cada quina escondida. A sombra rápida de um possível pássaro passou pela parede, projetada pela iluminação do vitrô no alto da parede.
— Desculpa, mas, não tem luz? — perguntei, apontando para o lustre coberto por teias secas.
—Sr. Demontie diz que a energia estraga os móveis e afeta diretamente a saúde da nossa pele… —ela deu de ombros. — Coisa de pessoas antigas… — riu baixo.
A Sra. Vera me parecia uma pessoa antiga.
Se para ela o Sr. Demontie era antigo, então o homem devia ser um idosinho bem debilitado.
Nunca o tinha visto, mas pelo que contavam anos atrás, ele era velho. Devia estar batendo as botas — “fazendo hora extra na terra” como disse meu pai uma vez sobre a Rainha Elizabeth.
O outro cômodo era uma lavanderia. No canto tinha um tanque amplo, com um balde grande e escuro no chão. “Aqui pode ser seu escritório” a mulher comentou e riu. Ri de volta para manter a simpatia — e a chance de emprego. Ela abriu o pequeno armário velho e cansado acima do tanque e me mostrou panos e produtos de limpeza. Ergui a sobrancelha sutilmente, deduzindo estar vendo uma porção de garrafas de produtos vencidos.
— Já pode começar, se quiser… — a senhora apontou para o punhado de panos surrados no interior do armário.
— Bom, melhor eu colocar a mão na massa… — falei após prender o cabelo em um coque alto e arregaçar as mangas da blusa.
— Qualquer coisa, me chame da escada — a senhora sorriu novamente e se retirou, sumindo no breu do salão.
Passei o espanador na extensa mesa, nos móveis da cozinha e depois passei um pano úmido —minha intenção era jogar toda a sujeira para o chão, para depois varrer.
Ao puxar a vassoura encostada ao lado do tanque, vultos pretos correram de baixo dela, passando por entre minhas pernas e me fazendo gritar de horror ao sentir os pelos gelados roçarem no meu tornozelo. O impacto do cabo de madeira contra o chão só intensificou o susto. Os calafrios me abraçaram, me paralisando. O impacto do cabo da vassoura no chão ainda ecoava na minha cabeça —e pelo castelo — e ainda conseguia sentir os pelos daquelas coisas na minha pele. Ofegante, tentei controlar a respiração. Passei as mãos no rosto úmido pelo suor e suspirei. Precisava voltar ao trabalho.
Com o flash do celular ligado e a música baixa para descontrair, enfiei o aparelho parcialmente no bolso da calça jeans e varri o chão de concreto sem fim; da pequena lavanderia para a cozinha, da cozinha para o vasto salão — o chiado dos fiapos da vassoura arrastando no concreto ecoava. Uma placa impedia minhas narinas de puxarem o ar — a poeira do concreto tinha subido com a varreção. Tirei o Naridrin da bolsa e pinguei uma gota em cada narina. Que delícia era poder voltar a respirar.
“Para de usar essa coisa, você vai acabar se viciando nisso!” a voz invadia minha cabeça, me fazendo sorrir.
—Prometo que vou parar, mãe — cochichei sozinha, espalmando a mão no ar.
Mesmo com a iluminação do celular, tive receio de deixar alguma sujeira para trás, então varri novamente, mesmo sabendo que ninguém iria notar. Pelo menos estava melhor de quando cheguei.
Peguei o celular.
“O lugar é bem tranquilo e o salário não tava errado. A Sra. Vera é simpática e ela q cuida do velho rabugento q os meninos odiavam” enviei para minha mãe.
“Que ótimo, minha filha, então vai dar tudo certo ”.
Pela visão periférica, percebi uma sombra passar sobre a mesa e uma das cadeiras tombar em câmera lenta para o lado. Pulei novamente com o susto. Encarei a cadeira por alguns segundos, sentindo meu coração pulsar no pescoço. Engoli seco e respirei fundo.
Mesmo sem saber se era para tocar nas escadas, eu as varri e passei um pano úmido com um produto que deduzi ser Pinho Sol. Ouvi risadas e murmúrios vindos da porta da torre direita do castelo, provavelmente o quarto do Sr. Demontie. Me aproximei sorrateiramente e encostei a orelha contra a madeira gelada da porta e o ruído cessou. Ouvi um pigarro.
— Que barulho foi aquele, Carina? — a voz da mulher penetrou a madeira de forma suave.
Minha respiração travou e meu coração voltou a batucar. Hesitei e entrei num dilema: respondo, soando uma bisbilhoteira, ou a ignoro, soando uma pessoa sem educação? De qualquer forma, ela parecia saber que eu estava ali. E aquilo não era boa coisa.
—Só um susto… — respondi. — Desculpa… — me afastei da porta, voltando para as escadas com o coração agitado.
Os calafrios voltaram enquanto eu retornava à limpeza dos degraus. “Você é uma idiota! Uma idiota!” eu me punia em pensamento.
Talvez o sexto sentido da minha mãe estivesse certo, pois eu estava começando a sentir que não deveria estar ali. Por um momento pensei em pegar minha bolsa pendurada em uma das cadeiras e sair pela porta e correr para casa. O que estava me incomodando não era o trabalho em si, e sim aquela agoniante sensação. Algo me dizia para ir embora enquanto um sussurro implorava para eu ficar — a necessidade do dinheiro, talvez. Meu coração foi esmagado pela sensação de estar longe de casa, distante da minha mãe — que era tudo que eu amava. Devia ser a ansiedade… Locais fechados e escuros me causavam um certo pânico.
—Está com fome? — A voz surgiu repentinamente atrás de mim, me fazendo pular.
Neguei com a cabeça, tentando achar um jeito de falar que estava grata pela oferta do trabalho, mas que precisava ir embora. O salário era maravilhoso, mas eu não estava me sentindo bem.
— Sr. Demontie quer que se junte a nós no jantar — ela sorriu, dessa vez somente com os olhos. Devia ter odiado o fato de eu estar atrás da porta escutando a conversa, mas a verdade era que não tinha escutado nada.
—Não vou ficar pro jantar, tô terminando as escadas e vou embora… — falei, tentando não ser rude, e voltei a mergulhar o pano na água cinza do balde.
— Não pode ir embora, Carina. Você começou agora, então só pode partir ao cessar da tarde. — Afirmou.
— Não quero ficar. Vou terminar as escadas e vou embora. Agradeço a oferta de emprego, mas eu recuso.
— Você não vai embora. — a senhora fechou o sorriso.
Larguei o pano na madeira e me levantei, olhando para a senhora franzina, escondida naquele vestido volumoso e desbotado. Sua afirmação fez os pelos da minha nuca enrijecerem. Desci a escada central já agarrando a bolsa pendurada em uma das cadeiras do salão.
As pancadas do meu coração em meu pescoço e ouvido ditavam o ritmo dos meus passos em direção à claridade que vazava por entre as frestas da porta. Num piscar de olhos, os batimentos desaceleraram juntamente de meus passos. As frestas se apagaram e minha mente silenciou.
3
Meu corpo e minhas pálpebras pareciam pesar uma tonelada.
O minúsculo quarto era iluminado somente pela luz natural que invadia pelo vidro poeirento da janela. Não havia nenhum móvel ali, somente a escrivaninha ao lado da minúscula cama em que me encontrava. Por um instante me questionei onde poderia estar e rapidamente minhas memórias vieram em uma avalanche: o e-mail, a aflição da minha mãe, o castelo e Vera afirmando de forma enigmática que eu não poderia ir embora. Minha pressão deve ter despencado com o nervosismo.
Toc toc.
Meu corpo enrijeceu com o ranger da porta se abrindo. Para minha surpresa, um garoto de rosto simpático e olhos castanhos surgiu, me olhando de cima a baixo com certa hesitação.
—Sra. Vera me pediu para ver se você está bem… — sua voz era limpa, suave.
— Quem é você? — perguntei após limpar a garganta com um pigarro.
—Daniel. Estou fazendo um teste de emprego… — ele deu um leve sorriso de canto. — Vou avisá-la que está melhor.
Antes da porta se fechar, o agarrei pelo braço e o puxei para o cômodo.
—A gente precisa sair daqui! — afirmei, enquanto ele me olhava com os olhos arregalados, confusos.
—Como assim? Por quê? — seus olhos estavam agitados.
—Você não sente que alguma coisa nesse castelo é estranha?!
—Eh… Um pouco escuro… mas nada anormal… — ele dizia, aéreo.
—Vim pra uma entrevista de emprego e comecei um teste, assim como você… só que a Sra. Vera me impediu de ir embora… — falei, engolindo seco e me afastando do garoto, me dando conta da minha atitude invasiva.
Ele soltou um riso baixo e ergueu uma das sobrancelhas grossas.
—Como ela impediu? Ela não tem força o suficiente para te segurar… — Seu riso aumentou de tom.
—Eu desmaiei antes de sair — sentei na beira da cama, dividindo a atenção entre o garoto e a porta. Ele ergueu novamente a sobrancelha.
—Desmaiou?
—É, minha pressão deve ter caído, sei lá… Fiquei nervosa, apaguei e acordei nesse quarto — respondi com certa impaciência, tentando organizar minha mente.
—Por que não vai agora, então? — ele continuava com a sobrancelha erguida.
Boa pergunta.
Contraí os músculos do maxilar e me levantei. Abri a porta e saí. Desci as escadas sem olhar para trás ou para os lados e atravessei o grande salão. Ao contrário da última tentativa, as luzes vazadas das frestas não se apagaram; se expandiram em um retângulo vertical luminoso, fazendo arder meus olhos sensíveis. A iluminação que inundava a entrada me engolia e projetava minha imensa sombra sobre o chão naquele leque de luz forte.
—Onde está indo, querida Carina? — a senhora entrou no salão e fechou a porta. Segurava uma sacola com o que me pareciam frutas.
—Embora. — afirmei.
—É melhor voltar para o seu aposento, querida, não quero problemas com Sr. Demontie novamente… — ela se manteve na frente da porta.
O homem devia ter se irritado e dito algo a ela, pois seu tratamento comigo estava bem mais delicado. Mas por quê eu não poderia ir embora?!
Amedrontada e arrependida por não ter dado atenção ao sexto sentido da minha mãe, meu coração apertou, como uma roupa ensopada sendo torcida em um tanque, mas a água não foi pelo ralo; transbordou dos meus olhos, que logo se arregalaram ao notar o cotoco enfaixado.
—O que aconteceu? — perguntei, com os lábios trêmulos.
No dia anterior ela tinha os dois braços, eu não estava ficando maluca. Ou estava?
—Por favor, volte! — a voz da senhora saiu alta e firme. A sacola verde pendia dos dedos do único braço.
Num relance, empurrei a senhora para o lado e me joguei contra a porta, puxando a maçaneta oxidada. A porta relutava, como se um cabo — ou alguém — a puxasse do lado de fora. Olhei pela fresta que se abriu e não havia ninguém do outro lado, apenas uma criança passando de bicicleta do outro lado da rua, próxima ao matagal.
—Socorro! — gritei. A criança olhou e pedalou mais rápido, sumindo do meu campo de visão.
Perdi as forças e a porta bateu em um estrondo. Meu peito chiava ao encher e esvaziar rapidamente.
—Quanto mais cedo você aceitar, mais fácil será. — A senhora afirmou antes de virar as costas e sumir na porta da cozinha.
A mão grande de Daniel segurou meu braço e me puxou para as escadas novamente.
*
—Você viu… você… você viu… Eu pux… Puxei a porta… ela não… não abriu… — eu lutava para conseguir falar, como se algo esmagasse meu diafragma.
Eu estava horrorizada com o que podia acontecer comigo naquele lugar.
—Se acalma… — o garoto pediu, me entregando um copo d’água e depositando a jarra de vidro sobre a escrivaninha. — Por que ela não quer deixar você ir embora?
—Não sei… — falei, aos prantos. A água agitava dentro do copo como um mar raivoso.
Daniel segurou minha mão para conter a tremedeira.
—Isso não está certo… — ele refletiu enquanto eu bebericava a água. — Será que esse Demontie existe de verdade? Será que Vera não é só mais uma lunática com uma residência enorme e sem vida? Um tipo de bruxa?
—Essa merda não existe… — eu falava, recuperando o fôlego. — Mas Demontie existe, eu ouvi eles pela porta ontem… — respondi, fitando o vazio.
—Ouviu a voz dele? — o garoto me olhou.
—Não… — franzi o cenho, pensativa.
—Então ela podia estar falando sozinha… —Daniel foi até a janela e passou a mão no vidro, afastando o pó para ver o lado de fora. — Tipo o filme Psicose, do Alfred Hitchcock, sabe?
Revirei os olhos com referência a filmes àquela altura.
—A gente precisa ligar pra polícia… — falei, apalpando meus bolsos vazios. — Cadê meu celular… — Eu procurava o aparelho pela cama.
—Ela pegou… — sua voz saiu reflexiva.
—Como sabe? — o olhei atenta.
—Ela pediu o meu assim que cheguei — respondeu ao me olhar novamente.
—E não desconfiou de nada?!
—Eu pensei que era um tipo de norma… Não mexer no celular durante o trabalho, sei lá.
—Ela não tem esse direito… Então você também tá preso aqui. A gente precisa dar um jeito de sair — falei, torcendo por algum plano milagroso surgir na minha mente.
Daniel levou o dedo ao queixo, passeando os olhos pelo quarto.
—Acho que o melhor a fazer é voltarmos ao trabalho e obedecer… E quando tivermos a oportunidade, saímos — sua voz saiu firme, me dando esperança.
Concordei com um balanço de cabeça e uma dúvida me surgiu. Eu não sabia por quanto tempo eu tinha apagado.
—Que dia é hoje? — perguntei, erguendo o olhar na direção de Daniel.
—Terça, por quê?
A angústia passou a corroer minha alma. Devia fazer quase vinte e quatro horas desde que passei por aquele portão de grade com lanças e ninguém veio me procurar. Minha mãe sabia onde eu estava, ela já devia ter aparecido com a polícia.
*
O sol lá fora estava enfurecido e deixava o interior espaçoso do castelo abafado — como uma imensa fornalha gótica. Antes de entrar na cozinha eu havia avistado Daniel agachado, fechando o forno velho e o ligando em seguida — talvez, parte do calor que fazia meus cabelos grudarem na minha pele estivesse vindo dali. Agora, o garoto secava os talheres e os guardava na gaveta limpa.
Eu estava apoiada na pia e perdida em meus pensamentos.
—Toma — ele levou o braço até minha cintura de forma sutil.
—Onde achou isso? — perguntei, observando a faca média pendendo dos seus dedos finos.
—Sra. Vera me entregou para cortar a carne de porco do jantar — respondeu, me fazendo olhar para o forno.
A violência não parecia fazer parte da personalidade do garoto. Não parecia ser do seu feitio. Por isso me entregou a faca, ao invés de tomar a iniciativa — e eu não o julgava por isso.
Mas se fosse preciso usar da violência para sair dali, eu não hesitaria, assim como meu pai… Vera era o meu assaltante. O castelo era meu ponto de ônibus. Coloquei a lâmina fria da faca dentro da calça, na cintura, com cuidado.
Eu estava apreensiva. A Sra. Vera parecia não estar muito a fim de saber como andava o nosso desempenho. Uma hora se passou e nada da mulher. Limpamos a cozinha, a lavanderia, o vasto salão e as escadas.
—Deixou o fogo baixo, querido? — a voz que surgiu da porta da cozinha me causava arrepios e me dava nos nervos.
—Sim, senhora… — respondeu baixo.
—Bom… — ela se aproximou do forno com as mãos juntas. — Só se esqueceu de acender a luz… — comentou.
A senhora se agachou e semicerrou os olhos, tentando identificar o símbolo da lâmpada em um dos botões. Aquele fogão, mesmo antigo e caindo aos pedaços, parecia ser moderno demais para aquele castelo.
Retirei a faca da cintura rapidamente e Daniel me olhou apreensivo. Contraí o maxilar novamente e ergui o braço em meio à tremedeira e aflição. Antes mesmo do golpe, eu conseguia sentir a faca penetrando a pele mole da mulher e cravando na sua nuca, enterrando a lâmina entre os ossos, sem conseguir tirá-la depois.
Infelizmente aquele seria o fim da Sra. Vera. Eu precisava sair — eu precisava ver minha mãe!
Ao descer o braço abruptamente, a escuridão retornou.
4
Sem muita dificuldade, meus olhos se abriram. O ambiente estava finalmente iluminado. As luzes amarelas e fracas vinham dos lustres antigos que pendiam do teto sobre a mesa e das velas espalhadas por entre toda aquela comida. Pratos e pratos — de diversos tamanhos —, taças e taças. Todos ocupados. No centro da mesa, o prato principal; um porco inteiro assado, com uma maçã na boca. Pelas imensas janelas no alto percebi a escuridão lá fora. Mais uma noite ali…
Tentei ajeitar meu corpo na cadeira, mas não consegui mover um músculo sequer. O som de mastigação molhada e irritante vinha do meu lado direito. Na minha visão periférica, não conseguia identificar a figura, mas o borrão era de uma cabeça branca flutuante sobre um monte preto. Ela resmungava e gemia ao deleitar-se. Tentei mover os olhos para o lado; em vão. A sensação era exatamente igual à paralisia do sono — que cismava em me visitar algumas noites.
—Me perdoe pela falta de profissionalismo de Vera… — a voz falhada e rouca parecia sair com muito esforço, como a voz de um fumante vitimado pela cirrose. — Mas não se preocupe… Ela foi punida.
Engoli seco — foi a única coisa que consegui fazer. Meu coração batia forte nos meus ouvidos.
—Não quer olhar para mim, minha cara? — A voz velha e masculina parecia alisar minha pele e eriçar os pelos.
—Eu… Não consigo… — lutei para conseguir pronunciar aquelas palavras sem abrir a boca.
A silhueta borrada estalou o dedo e o ar preencheu meus pulmões com facilidade.
—Tente agora…
Em um movimento minucioso, virei o rosto para olhar a pessoa.
Sua imagem fez meu corpo enrijecer. Senti a pressão na minha cabeça e a vontade de gritar, de correr — de vomitar — tomava conta de mim.
Sua pele era branco-amarelada, como a página de um livro antigo, com manchas irregulares amarronzadas espalhadas. Seus olhos penetrantes eram fundos e as bolsas eram de uma cor púrpura quase preta. As íris eram tão claras que pareciam brancas, evidenciando somente a minúscula pupila. Os fiapos de cabelos cinzas espetados e ralos faziam parecer que o velho tinha levado um baita choque elétrico. Seu nariz era minúsculo e arrebitado, torto para cima, como o de um morcego. Seus lábios eram grossos e arroxeados e estavam brilhando pela gordura da carne que mastigava. Seu sorriso largo se expandiu, mostrando boa parte da sua arcada dentária completamente danificada. Seus dentes encavalados, amarelos, retorcidos e compridos despontavam da gengiva negra. O famigerado Sr. Demontie.
Aparentemente, todas as baboseiras que diziam sobre o local, sobre o castelo, eram reais…
—Eu preciso ir embora… — balbuciei, com a visão embaçada e o aperto no peito voltando.
—Coma ao menos um pedaço do porco, minha cara… — o velho pousou os longos antebraços contra a beirada da mesa. Seus dedos finos e compridos brilhavam com a gordura.
—Não — respondi com firmeza, engolindo o choro enquanto secava as lágrimas.
O semblante do velho mudou. Seu cenho se contraiu e suas sobrancelhas inexistentes desceram, deixando a sombra em volta dos seus olhos mais profunda e horripilante. Suas narinas de morcego se abriram e seu peito encheu de ar dentro daquela vasta capa negra.
—Coma. — Exigiu por entre os dentes. As chamas das longas velas se agitaram, mesmo sem nenhuma brisa ali.
Tremendo e sem pressa, peguei o garfo e a faca. Olhando para o homem de relance a todo instante, furei a carne macia e cortei um pedaço, o levando à boca. Sr. Demontie sorriu e voltou a comer, aparentemente contente.
—Cadê a Sra. Vera? — perguntei de boca cheia. Engolindo carne e lágrimas.
—Ela está bem… — respondeu em um sorriso. — Com um pouco de dor… Mas bem — deu uma longa piscadela.
—O que fez com ela? — parei a mastigação.
No fundo, eu não me importava com o que havia acontecido com a senhora, afinal, eu mesma estava prestes a cometer uma atrocidade contra ela para tentar fugir dali. Mas estava preocupada com o que o homem havia feito — eu não tinha ideia do que ele era capaz de fazer.
O velho começou a rir, se engasgou e começou a tossir, rindo ainda mais, de forma incontrolável. Resquícios de carne e gordura voavam da sua boca escancarada e caíam sobre a bagunça nojenta em seu prato. Confusa, voltei a olhar para o meu prato, tentando conter as lágrimas que já faziam cócegas nas minhas bochechas.
—Eu disse a ela… — Sr. Demontie se recompunha entre pigarros — que erros nos alimentam… E que o próximo erro dela iria servir como um alimento… — seu pulmão chiava com as risadas.
—Que erro ela cometeu? — murmurei. Ele soltou um riso e uma tosse novamente.
—Não se estressa um animal antes do abate… — ele proferiu em voz baixa, com o olhar maligno, chupando os dedos gordurosos.
Encarei o pedaço de carne no prato e arregalei os olhos. Olhei para o porco assado e o animal estava intacto — nenhum pedacinho sequer lhe faltando. Mas à Vera, lhe faltava um braço… E, aparentemente, o animal estressado era eu.
No impulso — e com o estômago embrulhado —, me levantei rapidamente e ao tentar correr tropecei no vestido longo que estava usando sem perceber e caí, me embolando naquele monte de tecido sem fim enquanto rolava no chão. Me levantei rapidamente e ergui o vestido, correndo até a porta. O homem ria alucinadamente.
Agarrei a maçaneta e a puxei com toda a minha força; nenhuma fresta cedeu daquela vez.
O tilintar dos talheres sobre os pratos me fizeram olhar de relance para trás.
A figura do homem flutuava, arrebatadora, atravessando a extensa mesa como um fantasma. Sua cabeça branca crescia na minha direção e seu rosto estava distorcido. Seus olhos pareciam maiores e amarelos. Seus dentes estavam escancarados e suas mãos como garras alucinantes, prestes a me capturar.
Ao me virar para a porta novamente, senti o calor e a dor aguda no pescoço. O velho abocanhava minha pele — eu sentia o calor do seu hálito e da sua respiração abafados contra ela. Demontie rosnava contra o meu pescoço, como um cachorro brigando por um pedaço de osso.
Paralisada pelas garras cravadas nos meus braços, senti meu sangue congelar. Minhas pernas ficaram bambas e, sem forças, meu corpo foi de encontro ao chão.
Caída, o teto rodava… Dei uma última olhada para o velho.
Daniel me encarava, enfiado naquela roupa preta, com um sorriso satisfeito, limpando o canto dos lábios.
—Você… — eu balbuciava em meio aquela onda congelante e obscura. — Você é o Demontie… —resmungava, me entregando à escuridão.
—E você é um poço de erros… Minha cara. —Daniel ergueu o canto dos lábios roxos, mostrando parte dos dentes podres, salivando.
Adorei!
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