O PARAÍSO DOS GATOS - Conto Clássico Fantástico - Émile Zola
O PARAÍSO DOS GATOS
Émile Zola
(1840 – 1902)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
Nunca vi gato mais parvo que o angorá que uma das minhas tias me deixou em testamento. Foi ele, foi esse bichano, que me contou ao borralho a história que se vai ler.
I
Orçava eu pelos dois anos e não havia gato que me excedesse em ingenuidade e gordura. Em tão tenra idade, mostrava ainda toda a presunção de um animal que menospreza os regalos do lar. Entretanto, que reconhecimento devia eu à Providência por me ter posto em casa de sua tia! A boa mulher adorava-me. O meu quarto de dormir era ao canto do armário onde não faltava a fofa almofada de penas e o cobertor de três panos. A mesa ombreava com a cama; pão e sopa eram coisas que eu nunca provava; só comia bife à inglesa e filé.
Pois, senhor, no meio de tanta blandícia, só tinha um desejo, um sonho: era esgueirar-me por uma nesga da janela e fugir para o telhado. As carícias pareciam-me insossas, a elasticidade do meu colchão causava-me náuseas e não andava menos enjoado da minha gordura. Passava os dias a atediar-me de ser feliz.
Devo dizer-lhe que, olhando de uma vez para fora e reparando o telhado fronteiro, vi nele quatro gatos de rabo alçado e pelo hirto a arranharem-se ao sol e a rebolaram-se por cima das telhas, miando jubilosamente. Foi então que as minhas crenças se orientaram deveras. Era naquele telhado, além da janela, sempre tão cautelosamente fechada, que estava a verdadeira felicidade. Esta conclusão era autorizada porque também nunca via aberta a porta do armário onde se guardava a carne.
Concebi então o projeto de fugir. Era impossível que a vida só constasse de carne fresca. Não havia que ver. O ideal e o desconhecido estavam ali. Num dia em que se esqueceram de fechar a janela da cozinha, saltei para um telhadozito que ali havia ao pé.
II
Que bonitos eram os telhados! Flanqueavam-nos grandes canos donde se exalavam aromas deliciosos. Fui caminhando voluptuosamente por esses canos, onde as minhas patas se atolavam numa lama fina, mole e quentíssima. Parecia veludo. Os raios solares dardejavam um calor salutar, sob cuja influência parecia derreter-se a minha gordura.
Confesso-lhe que tremia como varas verdes. Ia alegre e ao mesmo tempo assustado. Lembro-me bem dum sobressalto por causa do qual estive quase a cair à rua. Causaram-mo três gatos que, a miar como desesperados, rolaram de repente do alto de um telhado, dando-me um furioso encontrão. Foram esses sujeitinhos que me chamaram grande animal quando eu ia perder os sentidos, dizendo que miavam por brincadeira. Comecei então a miar com eles. Que bonito!… Como não tinham a minha estúpida gordura, quando me viam escorregar como uma bola pelos telhados de zinco, quentes do sol, os maganões escarneciam de mim. Havia no rancho um maltês velho que se afeiçoou particularmente à minha pessoa. Ofereceu-me ele o seu préstimo para educar-me eu aceitei-lhe a oferta com reconhecimento.
Ah! Como eram diferentes do que eu agora tinha os bofes que me dava sua tia! Bebi água das goteiras e achei-a mais saborosa do que leite com açúcar. Tudo me pareceu bom e bonito. Avistamos de repente uma arrebatadora gata, cuja presença me despertou sensação desconhecida. Só em sonhos vira até ali estas esquisitas criaturas de dorso onduloso. Corremos logo ao encontro da recém-chegada, eu e meus três companheiros. Adiantei-me deles e, indo cumprimentar a maravilhosa gata, um dos meus companheiros deu-me uma formidável dentada no pescoço que me fez gritar.
— Pouco te assustas — disse-me o velho maltês, levando-me dali. — Ainda você não viu metade.
III
No fim de um quarto de hora de passeio, senti um apetite devorador.
— Que se come cá pelos telhados? — perguntei ao amigo maltês.
—O que se acha — respondeu ele com um ar doutoral.
Esta resposta causou-me grande enleio, pois, quanto mais eu procurava, menos achava. Avistei afinal numas águas-furtadas uma rapariga a fazer almoço. Nessa mesa, perto da janela, ostentava-se uma suculenta costeleta.
— É justamente o que eu preciso — refleti com a maior ingenuidade. E, saltando à mesa, apoderei-me da costeleta.
A mulher, porém, viu-me e descarregou-me no lombo uma furiosa pancada com o cabo da vassoura. Larguei a carne e fugi, rogando uma terrível praga.
—Você parece que vem da aldeia — disse-me o maltês. — A carne que está nas mesas é só para ser desejada de longe. Nos telhados é que se deve procurar.
Não pude compreender que as carnes das cozinhas não pertencem aos gatos. O meu estômago começava a zangar-se deveras e o maltês acabou de me desesperar dizendo-me que era necessário esperar até a noite. Desceríamos então à rua para explorar o lixo.
Esperar até a noite! Um filósofo calejado não falaria mais tranquilamente. Quanto a mim, bastava-me pensar neste prolongado jejum para quase desfalecer.
IV
Anoiteceu, enfim, e com a noite caiu um nevoeiro de gelar a gente. Veio logo depois uma chuva miudinha e penetrante, fustigada por súbitas lufadas de vento. Descemos pela claraboia da escada. Que feia me pareceu a rua, comparada ao bom calor, ao sol sem nuvens que iluminava aqueles telhados onde nos reboláramos tão deliciosamente! As minhas patas escorregavam nas calçadas gordurosas. Recordei-me com saudade do meu cobertor e da minha fofa cama de penas.
Mal chegamos, o amigo maltês começou logo a tremer. Encolheu-se, agachou-se quanto pôde e, dizendo-me que o acompanhasse sem demora, foi-se esgueirando sorrateiramente ao longo das casas. Mal encontrou um porta cocheira, refugiou-se nela a toda a pressa, miando de satisfação. E como eu lhe perguntasse o que significava o seu procedimento, perguntou-me ele:
— Viu aquele sujeito que levava um cesto e um gancho?
— Vi.
— Pois se o tipo nos visse, era capaz de nos desancar e assar no espeto para comer-nos!
— Assados no espeto! — exclamei eu. Então a rua não nos pertence? Que história é esta?! Em vez de comermos, somos comidos!
V
Entretanto, o lixo esperava nas portas que as carroças passassem. Atirando-me a ele com desespero, encontrei apenas dous ou três ossos magros envoltos em cinza. Foi então que avaliei quão saborosos eram os bofes frescos que sua tia me dava. O meu amigo maltês era um artista a remexer o lixo. Fez-me andar até pela manhã a visitar, muito do seu vagar, quanta rua havia. Levei quase dez horas a apanhar chuva e a tremer desde os pés até a cabeça. Maldita rua! Maldita liberdade! Como eu chorava de saudades pela minha prisão! De dia o maltês, vendo-me a tremer, perguntou-me ele de um modo singular :
— Está satisfeito?
— Se estou! — respondi.
— Quer voltar para casa?
— Pudera… Mas quem há de me ensinar o caminho?
— Acompanhe-me. Quando ontem o vi sair, percebi logo que um gato da sua gordura não estava talhado para as ásperas alegrias da liberdade. Sei onde mora e quero ir deixá-lo à porta de sua casa.
Com que ar de simplicidade me dizia isto o digno maltês!
Ao chegarmos, disse-me ele, sem denunciar vislumbre de sentimento:
— Adeus.
— Não! —exclamei eu. — Separarmo-nos, assim, é que não. Acompanhe-me. Dormirá comigo e comerá do mesmo prato. A minha dona é boa pessoa…
Não me deixou concluir:
—Cale-se — disse ele logo. — Não seja tolo. Poderia eu lá viver nos seus tépidos ambientes? A sua vida palaciana só quadra a gatos degenerados. Um verdadeiro gato, um gato livre nada compra a preço da sua liberdade, nem mesmo casa, cama e mesa… Adeus.
E encaminhou-se para o telhado, onde se destacava o seu magro vulto, a quem as carícias do sol nascente faziam estremecer de prazer.
Quando entrei, sua tia pegou no chicote e aplicou-me uma correção que recebi com profunda alegria. Saboreei amplamente a voluptuosidade de sentir calor e de ser espancado! Enquanto sofria o castigo, pensava com delícia na carne que depois me dariam…
VI
—Já vê, meu caro senhor — concluiu o meu gato, estendendo-se ao lume —, que a verdadeira felicidade, que o paraíso consiste em estar a gente presa e ser espancada numa casa em que há bastante carne.
Falo dos gatos, bem entendido.
Fonte: Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o Ano de 1885, Porto Alegre/RS, Gundlach & Cia, 1884.
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