A MULHER-FANTASMA - Conto Clássico Fantástico - Brian Hayes

 

A MULHER-FANTASMA

Brian Hayes

(Séc. XX)

Tradução de autor anônimo do séc. XX



A mulher de cabelos louros muito compridos e vestida de verde lavava algumas roupas tintas de sangue num regato que corria ao lado da estrada.

O professor Finn McBryan, subindo da estação rumo à sua casa, ficou naturalmente espantado ao vê-la, mas, fiel a seus princípios de linhagem e cavalheirismo, não se deixou tomar de maior curiosidade. A lavagem de vestes ensanguentadas é evidentemente uma questão pessoal e íntima e, se a mulher preferiu realizar aquela tarefa em lugar devassado, em vez de usar a pia doméstica ou a moderna máquina elétrica, seria, no muito, uma incongruência que o bom tom e o espírito de louvável tolerância desculpavam com facilidade.

Ademais, o professor McBryan estava com grande pressa. Tivera a boa sorte de alcançar, nesse dia, o trem das 3h53 em Paddington, o que significava sua chegada à casa meia hora mais cedo que de hábito, dando-lhe, ao mesmo tempo, a sensação irracional de haver roubado essa meia hora da própria vida.

Uma vez chegado à morada rústica com aquela vantagem de trinta minutos, poderia pôr-se à vontade a fazer nada ou escolher a melhor maneira de passar o verão, de acordo com o desejo ou a consciência. Mas, para isso, não devia perder mais um segundo sequer na viagem de regresso.

Atravessou o riacho pela pequena ponte de madeira e dali observou as enormes manchas róseas de sangue já alterado, diluindo-se na água corrente, lá em baixo.

Roupas sangrentas são, afinal e acima de tudo, um caso de polícia, a quem competia obrigatoriamente a função, sem dúvida desagradável, de investigar todas as circunstâncias anormais que porventura cercassem os fatos.

Era esse o dever das autoridades, desobrigando-se os cidadãos particulares do encargo de interferência honesta ou por curiosidade malsã.

Uma centena de passos além, quase ao atingir a aleia que levava à habitação, o professor parou, lembrando-se de haver algo muito familiar na cena a que acabara de assistir. Procedeu a um exame de ideias e de consciência. Aquela mulher de cabelos de ouro e vestido verde lhe deixava a impressão de já a ter visto em alguma parte. Ou seria, talvez, ilusão de sua mente abalada pela singular ocupação a que se entregava? E se realmente a conhecesse? A ideia avultou-se, tornando-se em quase convicção. Cometera, no caso, imperdoável crime social de evitar-lhe o cumprimento, crime que poderia ser tomado como gesto de censura aos arranjos domésticos que então a ocupavam.

McBryan ergueu os olhos para o céu e observou o banco de nuvens acasteladas, alvacentas na orla e negras ao centro, que avançavam de sudoeste. Já na luz diminuída, o ar imóvel e concentrado pesava à respiração. Via-se logo iminente a tempestade e a prudência urgia-o para o abrigo confortável da residência, antes de cair a chuva. Mas a cortesia constituía coisa igualmente importante, tanto mais se havia risco de uma inconveniência.

Voltou, pois, sobre os próprios passos. A mulher não mais se achava lavando, mas sentada numa pedra, em atitude desolada, com a cabeça nas mãos, de modo que os cachos amarelos lhe tombavam sobre os joelhos, cobrindo-lhe todo o semblante.

Quando ele se acercou, a moça ergueu as feições convulsionadas, mostrando as lágrimas escorrendo, em grossos fios dos rasgados e assaz maravilhosos olhos azuis.

Cobria-a um vestido, que lhe batia nos artelhos, de fazenda verde grosseira, como morim tinto, mas apresentando um brilho como se fosse trançada com folhas de erva tenra. Ao redor da cintura, excepcionalmente alta, corria um cinto de palha lisa, a partir do qual uma larga tira do mesmo material fora passada, em diagonal, sobre o seio e o ombro do lado direito, continuando, costas abaixo, até novamente a cintura. O outro seio e o ombro correspondente apresentavam-se nus. Suas pernas eram benfeitas, mas os pés enormes. E estes, notou Bryan mais tarde, tinham os dedos pegados.

—Queira desculpar-me — proferiu ele, erguendo o chapéu e excluindo da frase qualquer expressão inadequada à delicadeza convencional —, mas já não nos encontramos em alguma parte?

Ela se levantou, alegre, com reflexos de sol bailando-lhe no rosto.

—O senhor quer com isso dizer que está pronto a ouvir-me?

—Naturalmente, ponho-me às suas ordens.

E gostaria de ajuntar que não somente a ouviria, como tinha, também, algo a dizer-lhe. No entanto, embora esta observação fosse oportuna, não a julgou obrigatória.

— O senhor deve ser, com efeito, a pessoa a quem me mandaram avisar…

Falava com nítido sotaque irlandês e imediatamente pôs-se a bater palmas, agitando, depois, as mãos sobre a cabeça, enquanto não parava de soltar gemidos e guinchos muito altos e tristes. De vez em quando, volvia as roupas ensanguentadas e executava, assim como a contragosto, os movimentos característicos de toda lavadeira. Em seguida, punha-se a andar em círculos, abanando os braços e gingando o corpo, de um lado para o ouro.

Esses gestos, observava-os McBryan, com certo embaraço, até a própria memória encontrar-lhes a explicação exata em seu espírito arqueológico.

— Por amor de Deus — intimou-a, em altos brados —, pare com essas ridículas exibições!

A moça voltou-se, num ímpeto, para ele, deixando pender lentamente os braços ao longo do corpo. A seguir, seu semblante tornou a ensombrar-se. Os olhos azuis procuraram os dele, súplices e tristes como os de um cão espanhol castigado. Ela principiou a chorar.

O professor caiu em instantânea contrição. Pois era francamente pela delicadeza no trato com as mulheres e pela bondade com os animais.

E ali havia um pouco de ambas as coisas.

—Vamos, vamos — procurou confortá-la. — Não se ofenda, mas bem vê que não pode fazer tal coisa. Pelo menos, nesta parte da Inglaterra. Por aqui, ninguém lhe daria atenção.

Ela tornou a sentar-se na pedra, com o tronco arqueado, em desânimo.

—Não há mais encanto na velha terra natal — proferiu depois, profundamente magoada. — Agora, em Donegal, imperam o rádio, o automóvel e outras coisas cheias de ruídos estridentes e ensurdecedores, de modo que, quando lançamos ao vento o nome do habitante que vai morrer, nosso prenúncio é abafado por uma torrente babilônica de propaganda comercial.

E as lágrimas, reativadas por essas considerações, redobraram de intensidade.

O professor McBryan sentou-se a seu lado.

—Não se aborreça por isso — consolou-a, com suavidade e desajeito.

Seu conhecimento das tradições locais, ou folclore, era muito ligeiro e pôs-se, naquele instante, a escaninhar a memória, à cata dos fragmentos das lendas mal retidas.

Sem dúvida alguma, aquela aparição provava o que inúmeros estudiosos do assunto acreditavam verdadeiro, isto é, que a “Bean Nighe”1 ou espírito em forma de lavadeira e a tão falada “mulher-fantasma”, que espreita, nos bosques, a passagem da pessoa, cuja morte tem a incumbência de prenunciar, eram uma e a mesma assombração. O indiscutível exemplo, ali, a seu lado, não se assemelhava, porém, às descrições de espíritos que lhe acorriam à mente, mas isso era natural, dada a grande variedade dessas referências.

Contudo, pintava-se geralmente esse famoso espectro, avisador de mortes, como uma mulher idosa, de horrível aparência. Mas aquela, ali junto, possuía juventude e, com exclusão dos pés descomunais, nada tinha de feia. Outras descrições referiam-se aos seios, inconcebivelmente compridos e pendentes.

Era mesmo lendário, na Escócia — pensou o professor — que, se alguém pudesse agarrar um dos horrendos seios e levar aos lábios o seu bico flácido, a mulher-fantasma ficaria obrigada a satisfazer-lhe todo e qualquer pedido.

McBryan deitou um olhar apressado à seminudez a seu lado, e o objetivo procurado não lhe pareceu nem inconcebivelmente longo, nem pendente. Muito pelo contrário…

—Bem — disse ele, precipitado e raspando a garganta. — Preciso de ir-me. Mas de que, afinal, veio a senhora avisar-me?

Os olhos azuis ergueram-se para ela, sob os cenhos franzidos, numa expressão ansiosa, quase desesperada.

—Talvez… — hesitou, como medrosa ou penalizada. —Talvez… a morte em combate…

—Impossível — rebateu o professor, muito sério. — É esta uma tranquila aldeia inglesa. A não ser as bombas alemãs que caíram no “Hadow's End”, em quarenta e três, há vários séculos que não se tem notícia de batalha alguma por aqui!

—Sim — retomou a mulher, sempre hesitante. — Então talvez fosse…

E as lágrimas recomeçaram a jorrar.

—O pior é que esqueci completamente o que é — terminou, soluçando.

— Que? — berrou o homem, caído das nuvens, com a exasperação incontida. —Pretende, por ventura, afirmar que fez toda essa longa viagem para avisar-me de algo que não sabe?

—Foi o navio — choramingou ela. —Aquela coisa balouçante e malcheirosa! As ondas subindo como grandes montanhas reviraram-me atrozmente o estômago.

—Mas por que veio de navio? Não podia voar?

—Não sobre a água.

—Realmente.

E ele recordou a estranha incapacidade desses seres fabulosos a esse respeito. Levantou-se, então.

—É melhor pensar muito e responder-me com franqueza — disse, em seguida. —Não compreendo bem o que faria a senhora perder todo o seu penoso trabalho. E se algo me acontecesse, sem que me chegasse, de modo correto, o devido aviso prévio de que a encarregaram?

Não conseguia dominar a própria irritação. Parecia-lhe ter-se estragado todo o negócio pela inépcia e a desídia. Um “espírito prenunciador” que enjoa a bordo e alega perda de memória! Claro que não se lhe poderia reprovar a indisposição orgânica, mas o resto!

A mulher seguia-o, pressurosa.

—Gritarei o seu nome aos ventos do crepúsculo — propôs ela, súplice — se o senhor me fizer a gentileza de dizer-me sua graça.

O professor a encarou.

—Meu nome? Quer, mesmo, fazer-me crer que ignora até o meu nome?

Arrependeu-se, porém, imediatamente de falar-lhe tão áspero, pois via-se claramente a hipersensibilidade da mulher. Pôs-se a esmurrar a própria testa, penitenciando-se.

—Não seria O'Callaghan? — perguntou ela.

—Claro que não.

—Nem O'Neill?

—Nem parecido!

—Se o senhor me desse, ao menos, um lembrete, não tornaria a esquecer-lhe o nome!

—Macacos me mordam se caio nessa tolice!

Deu alguns passos para prosseguir seu caminho, mas voltou-se.

—A senhora deve, quanto antes, consertar toda essa trapalhada que fez… as roupas, as manchas de sangue e tudo mais. Muitas pessoas costumam pescar neste riacho e, se souberem de que lhes poluiu a água, hão de cobrar-lhe caro!

—De nada se aperceberão —retrucou ela. — Somente o senhor me pode ver!

—Por quê?

E o professor mostrou-se grandemente interessado.

—Somos invisíveis a todos que não acreditam em nós, espíritos.

—Aí está redobrada tolice —protestou ele —, pois vejo-a perfeitamente e, de modo algum, creio em superstições!

—Então não sei explicar isso —proferiu a mulher, com simplicidade e tristeza, pendendo, desalentada, o queixo sobre o peito.

—Nem eu.

O professor soergueu polidamente o chapéu e pôs-se a andar, rumo à casa.

Justamente nesse momento a chuva desabou, sem a rajada precursora de grandes bátegas e o cheiro característico da terra molhada. O raio, como visão momentânea de sol assustado, seguiu-se tão de perto pelo trovão que o homem se certificou de não lhe ser mais possível atingir a morada, antes do aguaceiro.

—Com os diabos! — gritou ela. — O senhor vai encharcar-se!

E segurando-o pela mão, começou a puxá-lo para o abrigo de um carvalho próximo.

Cego sob a chuva açoitante, o professor deu alguns passos e parou, sacudindo, enérgico, a mão livre.

—Não — recusou-se, já molhado até os ossos. — Não sabe que é perigoso meter-se debaixo das árvores, durante os temporais? Além disso, não tenho mais o que molhar. Estou ensopado. O sensato é chegar à casa para mudar a roupa o mais depressa possível.

Dito isso, fez meia-volta e baixou a cabeça ante as lufadas líquidas, enquanto a mulher-fantasma o seguia, a curtos passos de distância, gemendo e torcendo as mãos.

Justamente antes de atingirem a frágil ponte, fuzilou outro relâmpago fragoroso. A terra tremeu, convulsa, sob seus pés e um clarão alvinitente envolveu-os, ofuscante.

Ele olhou para trás.

O carvalho nada mais era do que uma silhueta de fogo contra a escuridão do céu, com as altas ramagens mergulhando lentamente no espaço como navio soçoobrante.

— Está vendo? — disse Mc Bryan, dominando o barulho reinante com gritos vigorosos. —Se eu tivesse segundo o seu alvitre, estaríamos a esta hora carbonizados!


*


Mais tarde, na noitinha, depois de um banho, metido em roupas enxutas, sentava-se ele confortavelmente diante da lareira, lendo um livro sobre o folclore, cujo teor lançava uma verdadeira ponte entre a bem iluminada fortaleza do século vinte, que era aquela sua casa, e as trevas do tradicionalismo reinante, lá fora.

A tempestade amainara. A chuva achatava-se de encontro às vidraças e, com seus furiosos assaltos ocasionais, ouvia-se o gemido intermitente do vendaval.

McBryan descansou o livro aberto sobre o joelho e pôs-se a escutar. Não! Enganava-se redondamente. Aquilo não era a ventania e sim a maldita mulher-fantasma. Pelos sons, parecia recitar uma litania de nomes irlandeses.

O barulho provocava-lhe o desespero. Metendo o livro debaixo do braço, foi até a porta principal e abriu-a.

—Olá! É com você mesma! — gritou para fora. Mas qual seria a maneira própria de chegar aqui, um instante?

Imediatamente, ela lhe surgiu à frente, empapada e transida.

—Não tenho a menor intenção — disse-lhe então o professor— de meter-me em… em sua vida. De modo nenhum! Mas diga-me! Não poderia deixar de fazer esse barulho todo?

—Estou chamando por todos os nomes que me vêm à mente. Se o senhor quisesse ajuda-me, nada disso seria preciso.

E ela o fitou, reprovativa.

—Que extraordinária sorte, a minha! — replicou o homem, rejubilante. — Sim, de suas probabilidades de cumprir a missão sejam infinitésimas! Creio que a senhora levará o mês inteiro sem encontrar a pessoa procurada. Já se lembrou, finalmente, do que me veio avisar?

—Não seria possível haver aqui um duelo, por exemplo? — perguntou ela.

—Nem por sombra! Sinto muito ter de dizer-lhe isso, pois não a conheço bem, mas a senhora tem, em suma, a obrigação de explicar-me. Agora, parece-me que não se lhe pode confiar coisa alguma, hein?

—É por falta de prática — justificou-se ela —, mas não sou a única. Todas as minhas companheiras são como eu. E não é para admirar-se porque somente vez por outra uma comunicaçãozinha a fazer!

—Também acho ser esta a razão. Agora, porém, como vai ser? Por que a senhora não volta para casa?

—Oh! E aquele horrível navio?

—Bem. Afinal, que tenciona fazer? — insistiu o professor.

Realmente, sentia-se embaraçado. Era solteiro, morando sozinho e a inconveniência de convidá-la a hospedar-se em sua casa, depois do anoitecer, constituía problema delicado.

Inegavelmente aquela criatura não passava de um fantasma, mas, afinal de contas, era também mulher. Por outro lado, não podia deixá-la, fora, na chuva, com evidente perigo de apanhar uma pneumonia.

—O melhor mesmo é a senhora entrar — decidiu, por fim.

E escancarou-lhe o batente.

—Enxugue bem os pés e chegue-se ao fogo para aquecer-se!

Um contentamento infantil espalhou-se no semblante da estranha visitante; não obstante, foi com certa desconfiança que ela o acompanhou ao interior da morada e sentou-se no coxim que lhe indicou, diante das achas vivamente ateadas e crepitantes da lareira.

—Ao que suponho — disse então McBryan, sentando-se diante dela —, condiz bem com uma pessoa de caráter cósmico, como a senhora, a ausência da mentalidade prática e metódica. Ainda esta noite estive lendo o relato de algumas superstições antigas que lhe dizem respeito e são muito interessantes. Parece não restar dúvida de que encarna uma das divindades aborígenes irlandesas, forçadas a viver ocultas pelo cristianismo e se debaixarem gradativamente até a condição de simples magia. Para dizer-lhe a verdade, cogito de escrever uma monografia, para a Sociedade Cultora do Folclore, sobre esse assunto, e conto obter algumas informações. A oportunidade afigura-se-me ótima. A senhora, contudo, não receie qualquer publicidade indiscreta, pois trata-se de obra puramente científica e, uma vez que me restringirei a mais rigorosa verdade, não poderei mencionar-lhe o nome, em hipótese alguma. Primeiro, porém, seria melhor que me confiasse seus planos.

Enquanto falava, sobre ele se fixavam os grandes olhos azuis da singular criatura, em que pairava, agora, nova expressão. Não mais se mostravam inquietos, passando a luzir serenos e absortos.

—Meus planos?

—Sim. Que pretende fazer?

Ela deixou a mirada correr pela sala e voltou a encarar o hospedeiro, firme e longamente.

—Ficar aqui — proferiu, tocante de naturalidade.

—Sinto muito — replicou o homem, um tanto contrafeito —, mas acho que não fará tal coisa. É uma casa de homem solteiro.

—Solteiro?

—E celibatário. Não tenho esposa.

—Pois então serei sua esposa.

—Como mulher — exprobou-lhe o professor, muito sério — não lhe cabe fazer semelhante sugestão!

Ela lhe quedou à frente, impassível.

—Não me acha bastante bonita para sua esposa?

—Não cheguei a dizer tanto, mas olhe! Não estou à procura de casamento!

A mulher deu um passo à frente e inclinou-se por sobre a cadeira de McBryan.

Este se levantou de um salto.

—Por favor, conserve-se a distância respeitosa — bradou-lhe.

Aí notou-a ainda molhada.

—É melhor tomar um cordial. Vou ver o que tenho no bar.

E fez um movimento para o pequeno armário, mas, de repente, mudou de ideia.

—Não — objetou. — Pensando melhor, julgo preferível tomarmos, ambos, um pouco de chá. Venha comigo à cozinha que a ensinarei a prepará-lo.

—Posso confeccionar-lhe pratos magníficos, bem como uma cerveja deliciosa.

—Nada disso é preciso. Pelo que li dos seres de sua espécie, seu tipo de alimentação é tão insubsistente quanto malsão. Venha comigo!

Na cozinha, ela sentou-se em cima da mesa, balançando as pernas. Seu ar melancólico quase desaparecera de todo.

—Agora, ouça com atenção e faça tudo exatamente como lhe vou mostrar, do contrário, a magia se romperá, estragando-se todo o chá. Primeiro de tudo, encha a chaleira de água fresca… lembre-se bem! A água fervida não serve.

E, enquanto trabalhava, percebia os olhos da mulher acompanhando-o, afetuosos, entusiasmados e inocentes. Com franqueza, não eram, de modo algum, desagradáveis.

—Bem — disse McBryan, quinze minutos depois. —Que tal achou?

— Com os diabos! — retrucou a hóspede, depondo a xícara e estalando os lábios. —É maravilhoso!

E, inclinando-se para a frente, beijou-o inesperadamente na boca. O professor recuou, espantado, de um salto.

—Por favor — começou, a expressão alterada —, sabe que estou sentindo um cheiro de queimado?

A estas palavras, ela saltou da mesa e, esticando os braços acima da cabeça, pôs-se a chorar alto.

—Ai! Ih! Agora me lembro! Seu nome é Finn McBryan e sua casa se incendiará, perecendo o senhor nas chamas! Ai! Ih! Finn McBryan! Finn McBryan!

Suas feições tornaram-se tão terríveis e tão rude o tom doloroso da voz que, fosse o professor supersticioso, teria ficado indizivelmente enervado. Examinou o fogão e certificou-se de que o gás estava bem fechado. Foi, em seguida, até a porta que, ao ser aberta, admitiu uma golfada de fumaça no recinto.

—É na sala de visitas! — gaguejou ele.

Podia-se ver de onde provinha a nuvem negra de fumo acumulada no corredor. O local do sinistro já se iluminava todo com o reflexo das labaredas saltitantes, para cujo foco McRyan correu, apanhando, à passagem, o extintor de incêndio em seu gancho do corredor.

Durante todo esse tempo, a mulher-fantasma ficou a andar de um lado para o outro, na cozinha, a gritar, em pranto: “Finn McRyan! Finn McRyan!”.

E ainda estava chorando e gemendo quando ele voltou, momentos depois.

—Pode sossegar que o fogo já foi extinto.

—Extinto? — fez ela, como estarrecida.

—Sim. E tenho grave queixa contra a senhora que sabia, desde o princípio, o que ia acontecer e não me preveniu!

—Já não lhe expliquei — objetou ela, lacrimosa e com a voz rouca de mágoa — que o esquecera inteiramente?

—E em resultado, lá está um enorme buraco no tapete!

O professor pilhou-se realmente encolerizado.

—Afinal, tudo o que posso fazer é exprobar-lhe a grossa incompetência — concluiu.

—Pensei — choramingou ela — que a casa fosse, mesmo, queimar-se com o senhor dentro. Assim rezava a profecia! Mas com todos os diabos! Que vai ser, agora, dos vaticínios das “Filhas de Aibhill”?

Tão pungentes eram suas lágrimas que abateram o ânimo de McRyan, fazendo-o condoer-se dela. Sentando-se numa cadeira, tomou a moça sobre os joelhos, com impulso paternal

—Ouça — disse-lhe, disposto a confortá-la. —Precisa de saber que já está completamente fora da moda. Não devia mais existir e, para falar-lhe a verdade…

Fez uma pausa para ligeira reflexão.

—…nunca existiu realmente. De qualquer modo, suas supersticiosas profecias não podem, em absoluto, alimentar a pretensão insensata de concorrer com as descobertas da moderna ciência. Antigamente, talvez esta casa se tivesse consumido nas labaredas, comigo dentro. Mas como poderia sua discutível magia prevalecer contra o “Extintor Químico Patenteado Fairbanks”? Pronto! Agora sorria!

—Sinto-me tão… tão inútil e desprezível — soluçou a jovem.

—Não fale assim! Até que, para uma pessoa que nunca existiu, não agiu mal.

—Oh! O senhor acha?

E se virou, de cheio, para McBryan, que então lhe notou a cútis nacarada, muitíssimo adorável, com efeito. Ah! Se pudesse dar um jeito àqueles pés!…

—E posso ficar aqui? — implorou ela.

Seria, até, bem agradável. Mas que diria o povo? Por outro lado, tinha ele de dar satisfações aos outros? E logo pensou na Sra. Huggins, a empregada, que vinha diariamente arrumar-lhe a casa.

—Tem a certeza de que ninguém mais, além de mim, consegue vê-la?

—Posso ainda tornar-me invisível até mesmo para o senhor — replicou ela, com grande ufania.

—Não. Isso nunca! E terá, mesmo, de prometer-me jamais tentá-lo!

—Prometo-lhe, mas somente enquanto não ficar velha e feia. Então não mais quero ser vista pelo senhor!

O professor refletiu que a vida de uma “mulher-fantasma” era estimada em nove vezes mais a de um homem.

—Que idade tem a senhora? — perguntou.

—Duzentos e trinta e sete anos.

Ele procedeu a um rápido cálculo mental. Sim… equivalia, pois, a vinte e sete anos comuns, mais ou menos… Assim não lhe alteraria, sensivelmente, o ritmo normal da existência. De resto, havia certa vantagem em viver com uma “mulher-fantasma”.

—Tudo muito bem — concluiu, alto. E não mais se formalizou quando a moça o beijou novamente.

—Agora — disse, impelindo-a de sobre si e levantando-se — vamos trabalhar! Começarei já a minha monografia para a Sociedade Cultora do Folclore. Por acaso, sabe taquigrafia? Não? Que pena! Em todo o caso, já tenho o primeiro capítulo delineado. O tema…

A mulher o espiava, atenta e interessada. McBryan reparou-lhe então o semblante fervoroso e encheu-se de satisfação.

—… o tema — repetiu, prosseguindo — será “a emancipação do espírito humano das crenças supersticiosas”!


Fonte: “Policial em Revista”/RJ, edição de fevereiro de 1950.


Nota:

1“Bean Nighe” — que significa “lavadeira” no gaélico escocês —é uma entidade folclórica que pressagia a morte de uma pessoa. Ela assombra riachos desolados e lava as roupas ensanguentas daqueles que estão prestes a morrer. Ocasionalmente, é descrita como tendo defeitos físicos, a exemplo de pés palmados.


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