O ADVOGADO - Conto Clássico Cruel - André Benry
O ADVOGADO
André Benry
(Séc. XX)
No meio do silêncio que, bruscamente, se fizera na sala, o presidente do júri pronunciou com voz que tremia um pouco a frase libertadora.
— Em minha alma e consciência, diante de Deus e diante dos homens, a resposta do júri é: ao primeiro quesito, não.
Houve alguns murmúrios, logo cobertos por aplausos tão frenéticos que não cessaram nem com a ameaça de ser evacuada a sala.
E todas as cabeças se voltaram para o defensor, Chapelle, o grande advogado, cujo nome é sinônimo de vitória. Chapelle, muito pálido, olhava os jurados. Parecia que o veredito o aniquilara. Entretanto, ele havia sustentado com tal convicção a inocência de seu constituinte que essa absolvição era prevista.
De repente, viu-se o grande corpo do advogado inteiriçar-se e, depois, brutalmente, cair para a frente. Uma cadeira abriu-lhe a fronte. O sangue jorrou, manchando o rosto, a barba e a boca. Fez-se tumulto. Mulheres gritaram e desmaiaram. Dois guardas pegaram Chapelle inanimado e o conduziram à sala das testemunhas, enquanto o presidente suspendia a sessão.
Um médico, chamado às pressas, diagnosticou uma congestão devida ao calor, ao excesso e à energia que Chapelle havia mostrado durante toda a sessão. Quando voltou a si, quis retomar o seu lugar, mas opuseram-se a essa loucura, e uma carruagem o conduziu à sua casa.
Durante quinze dias, delirou. À sua porta, que era proibido transpor-se, apertavam-se amigos e colegas. Emfim, alguns íntimos puderam vê-lo e ficaram assustados com a mudança nele operada. Chapelle, dantes tão esperto, tão vivo, conduzindo tão alegremente seus cinquenta anos, parecia agora um velho. Seus cabelos tinham embranquecido. Uma tremura contínua agitava todo o seu corpo. Quando lhe voltou a lucidez, declarou:
— Não advogarei mais.
Sem dúvida, disseram-lhe:
— É preciso repousar, recobrar forças. O senhor trabalha muito; eis aí o resultado. Passe seis meses no campo e voltar-nos-á jovem e forte como outrora.
Alguém acrescentou, rindo:
— Há mulheres que esperam o seu completo restabelecimento para matarem os respectivos maridos.
Esse gracejo exasperou Chapelle, que tinha especialidade dos crimes passionais. Exclamou:
— Cale-se. Nunca, entende? Nunca mais advogarei.
Manteve sua palavra. Deixou Paris e foi viver num campo com sua mulher, que partilhou sua solidão. Às vezes, algum infeliz, do fundo da sua prisão, se dirigia a ele como único salvador possível. Mas Chapelle conservava-se inflexível. Não advogou mais. E, pouco a pouco, veio o esquecimento.
Sou, creio, o único dos seus antigos amigos que não o abandonou. Todos os anos, passo alguns dias junto dele. Ocupa-se da agricultura numa pequena aldeia, onde possui uma propriedade. Não lê os jornais que relatam as causas célebres e nunca fala do passado. Entretanto, conheço o segredo da sua retirada súbita e inexplicada. Confidenciou-me uma noite em que o surpreendi chorando diante de um retrato de moça.
— Ah, meu amigo! — disse-me ele. — Que profissão exige mais sacrifícios que essa que foi a minha, e que dor pode causar às vezes o cumprimento do dever!
“Esse homem, que defendi pela última vez, era acusado de um crime que remontava já há alguns anos. Assim, os testemunhos eram vagos e contraditórios. Entretanto, três pessoas o reconheciam por o terem visto pedir esmola à vítima na véspera do crime. E era bastante para sua condenação.
“Pois bem, esses infelizes enganavam-se. Meu constituinte era inocente. Essa rendeira de Meaux, ele não a matara. Até o ultimo momento, proclamou sua inocência, na qual acreditei, mas sem ver os meios de fazer partilhar minha convicção com os jurados. Havia contra ele provas suficientes para fazerem condená-lo à morte. E as três testemunhas, de muito boa-fé, tinham em suas mãos a vida do meu constituinte.
“Este me havia muitas vezes falado de um álibi indescritível que ele possuía, mas do qual não se podia servir. Não me desvendou até o dia do julgamento. E aí, durante uma suspensão da sessão, quando se julgava perdido, chamou-me e disse-me:
“—Sou inocente deste crime. No dia em que ele se deu, eu não estava em Meaux, mas em Broles.
—Prove-o — disse-lhe eu. —Arranje testemunhas.
E, dizendo isso, eu tremia um pouco, porque esse nome da aldeia tinha evocado, em meu íntimo, um drama horrível que se passou em minha vida.
“Alguns anos antes, minha filha única tinha sido violada e assassinada quando passeava na floresta de Fontainebleau, não longe de Broles, onde passávamos as férias. Lembra-se? O assassino nunca foi encontrado. E não sei por que uma vaga intuição me apertou o coração. Minha emoção se transformou em horror quando o miserável acrescentou:
“—Não posso, porque, nesse dia, cometi um crime… um outro.
“—A moça assassinada!? — exclamei.
“—Como sabe o senhor?
Ah, meu amigo, o que se passou então em mim é impossível descrever-se! Eu tinha diante dos meus olhos o assassino de minha filha amada, merecendo a morte certamente, mas inocente do crime do qual eu o defendia. Que devia fazer?
Confesso-lhe, humildemente, que, no memento em que essa horrível atrocidade me foi desvendada, esqueci tudo: honra, dever, consciência, para não pensar senão em vingar-me. E quando a sessão foi reaberta, estava decidido a deixar correr as coisas, a defender fracamente, sem convicção, a fim de que a inevitável justiça caísse severamente sobre o criminoso.
E, depois, diante da multidão, diante dos jurados que eu havia tantas vezes convencido, não pude falar contra a minha consciência. Fui a vítima de todo o meu passado. Agi um pouco como uma máquina; sim, uma máquina de funcionamento regular, que não pode parar por si mesma. Contra a minha vontade, eu percebia os erros da acusação e os refutava. Disseram que nunca eu fora mais eloquente e mais convincente. Viram lagrimas em meus olhos. Certamente, sim. Era a recordação de minha filha que as fazia correr.
“E a multidão iludiu-se. E os jurados deixaram prender-se por minha argumentação. Eu os via hesitarem, comoverem-se. A acusação, enfraquecia, estalava em todas as partes, esboroava-se. E foi quando senti a partida ganha que se deu o grande esforço, a fim de que dúvida alguma subsistisse no espírito desses honestos homens que representavam a justiça e que pudessem crer com toda a consciência que tinham absolvido um inocente.
“Somente quando ouvi pronunciar o veredito pelo qual era eu o único responsável, não pude suportar o pensamento atroz de minha pobre morta não vingada e caí sobre o solo esgotado, quase sem vida.”
Chapelle calou-se um minuto; depois, com voz mal segura, que as lágrimas enfraqueciam, disse:
— Creio ter procedido bem; mas, como não sou senão um pobre homem que sofre, tenho às vezes remorsos e pergunto a mim mesmo se a justiça exigia tanto de mim. Para tranquilizar minha consciência, diga-me, meu amigo, que o senhor me teria desprezado se eu tivesse deixado condenar esse homem por um crime do qual ele era inocente e sacrificado meu dever à minha dor e o meu ódio.
Fonte: “Almanak Litterario e Estatistico do Rio Grande do Sul para 1917”/RS, Editores Pinto & C., 1916.
Ilustração: Honoré Daumier (1808 – 1879).
Comentários
Postar um comentário