O CARRO FANTASMA - Conto Clássico de Terror - Archimedes da Matta
O CARRO FANTASMA
Archimedes da Matta
(Séc. XX)
Depois de haver perdido os últimos cem mil réis na roleta, na perseguição teimosa do 17, deixei a banca de jogo e saí com o meu amigo Teobaldo.
Era uma bonita noite de verão, enluarada, e os raros transeuntes, que passavam pela rua em que estávamos àquelas horas (seria um pouco mais de meia-noite), quebravam a monotonia daquele luar que banhava a cidade.
Nesta ocasião, avistei, na volta de uma esquina, um carro que se aproximava. O cavalo vinha num passo tardo, como se estivesse cansado pelos trabalhos exaustivos do dia. O calor sufocava e eu suava em bicas.
—Vamos pegar aquele carro e dar umas voltas por aí — disse a Teobaldo, enquanto ele se abanava furiosamente com o chapéu de palha.
Como se minhas palavras fossem uma chicotada, meu amigo parou de se abanar e, segurando-me pelo braço, olhos arregalados, me perguntou:
—Pegar o quê?!
—Aquele carro que vem ali!
—Tu estás falando sério? Tu viste algum carro?
—Então ali não vem um carro, idiota, cego?
—É melhor mesmo que eu seja cego do que estar vendo o que não existe…
—Não existe? — tornei, curioso e irritado, com tanta contradição misteriosa. — E o que é aquilo que vem ali, religiosa besta?
—Olha, sabe uma coisa? Fica-te por aí, com teu carro, e procura-me amanhã no Café Paraíso, às 8 horas da noite.
—Vais me deixar? Vamos pegar o carro que está aqui pertinho…
—Pertinho?!
Quando procurei Teobaldo, vi que este corria com todas as forças, como um evadido, desaparecendo ao longe como se fosse perseguido.
*
O cocheiro vinha duro, firme na boleia. Como se adivinhasse meu pensamento, sofreou o animal, enquanto eu, tomando o veículo, dava ordem para que “rodasse”.
Não me disse uma palavra e apenas pude notar que a lua, dando-lhe em cheio no rosto, emprestava-lhe uma expressão sinistra.
O cavalo, que até então parecia pacato, transformou-se, de chofre, no mais fogoso corcel.
A princípio, gostei da carreira, cujo vento deslocado me vinha refrescar um pouco as têmperas esquentadas pelo álcool; porém, este prazer se foi apagando quando a velocidade aumentava numa fúria satânica pelas ruas mais distantes da cidade. Ergui-me da almofada macia e puxei o cocheiro pela aba da casaca, dizendo-lhe que não era preciso correr tanto assim…
Inútil! O homem parecia uma estátua. Imóvel, ereto, não me deu a mínima atenção.
Puxei-o com ambas as mãos, berrei… Nada! O carro continuava correndo sempre.
Quis saltar, mas a velocidade aterrava-me. E, correndo ruas, dobrando esquinas, subindo e descendo ladeiras, lá ia o carro maldito na mesma velocidade endemoninhada, sem, todavia, virar aos solavancos mais bruscos.
Resignado, à força, deixei-me cair no assento do carro, quando reparei que eu não estava só.
Um homem, todo de preto, com uma fisionomia serena, limpava, com um lenço, o sangue que corria, contínuo, de uma grande brecha no crânio. Estava sem chapéu e o cabelo se lhe empastava na testa avermelhada.
Fiquei atônito. Quis gritar, mas a voz me faltou. Tentei me atirar de qualquer maneira para fora do carro, mas parecia que eu estava pregado a ele.
E o carro, correndo sempre aos solavancos horríveis, passava pelas ruas como um tufão!…
Ora era uma árvore que se esgalhava pela portinhola donde as folhas voavam para longe, num remoinho violento; depois, uma ponte de madeira que ele atravessava, imprimindo com as rodas um ruído surdo como de um trovão; além, um riacho, do qual fiquei todo molhado.
O desconhecido misterioso continuava limpando o rosto sereno no seu mutismo fantástico.
Mas, quando o carro passou, na sua velocidade crescente, por uma ribanceira, ouvi uma infinidade de assobios, como se fossem uma vaia tremenda, misturando-se com o vento que zunia aos meus ouvidos.
O homem misterioso havia desaparecido como por encanto.
E, não sei como, eis o carro outra vez vagaroso, o cavalo com andar tardo e o cocheiro, erecto, chegando ao mesmo ponto de partida!…
Pulei rapidamente para a rua, sem ousar olhar para trás, e agora quem corria, mais que Teobaldo, era eu…
Cheguei à casa em que morava, abri nervosamente a porta do quarto, enquanto o meu relógio de mogno dava, pausadamente, duas pancadas.
—Duas horas durou aquela corrida! — pensei eu. — Mas seria sonho ou o efeito do álcool?!
Não! Eu estava sem chapéu e minha roupa molhada atestava bem aquela corrida noturna!
Não dormi a madrugada toda. Fumei cigarros sobre cigarros, passeando agitado pelo quarto, assistindo a todas as pancadas do relógio, até que, enfim, os galos começaram a clarinar e a manhã veio rompendo, quente, rubra como as fornalhas do inferno…
*
Às 8 horas da noite, fui ao Café Paraíso, sentei-me a uma mesa, pedi um conhaque e fiquei esperando Teobaldo.
Em poucos minutos, ele se sentava ao pé de mim e, depois, olhando para os lados, com receio de ser ouvido, me perguntou:
—E o carro? O carro? Viste-o mesmo?!
—Se o vi! — respondi horrorizado. — Viajei nele por desgraça… E contei-lhe tudo.
Quando acabei, ele me disse que era isto mesmo que muitas pessoas contavam.
E como eu insistisse para que me revelasse a causa deste mistério que assombrava os habitantes daquela cidade, ele me contou o que textualmente transcrevo:
— Há cinco anos — você ainda não estava aqui — existia nesta cidade um homem que morava num casarão sombrio que hoje está em abandono.
“Chamava-se Estefânio e tinha, por companhia, um criado.
“Sua vida era misteriosa; não tendo emprego, tinha, entretanto, muito dinheiro.
“Como fosse um cavalheiro de muito boas maneiras, muito cortês e de fino tato, em breve soube captar a simpatia das melhores e mais bem-conceituadas famílias daqui.
“Incapaz de qualquer palavra que fosse melindrar a alguém, muito caridoso e comunicativo, conseguiu, assim, viver uns dois anos na maior estima e consideração de todos.
“Certa ocasião, pediu a um negociante, a quem ele dava o título de amigo, uma importância. Precisava de dez contos de réis para solver um compromisso urgente.
“Ele mesmo se prontificou em emitir uma letra, que foi logo endossada com a maior presteza.
“Uma tarde, antes de findar-se o prazo da promissória, Estefânio mandou o criado à casa do negociante, a fim de que o mesmo viesse, naquele dia, receber o dinheiro que lhe fora emprestado.
“Não obstante a esposa do negociante pedir para que este fosse no dia seguinte, pois era aniversário de sua filhinha primogênita, ele não acedeu ao pedido, achando até boa a ocasião para melhor festejarem o natalício, prometendo, entretanto, regressar rapidamente.
“Quando chegou à casa de Estefânio, este já o esperava na sala de visitas que tinha, como únicos móveis, uma mesa envernizada a um canto da parede e que lhe servia de escrivaninha, três cadeiras de palhinha e um grande quadro a óleo representando uma cena da Guerra dos Farrapos.
“Fê-lo sentar-se defronte à mesa, restituiu-lhe o dinheiro, recebeu a promissória, pedindo ao negociante que conferisse a quantia.
“Muito embora este se recusasse, insistiu delicadamente, pois aquilo era negócio e, portanto, era imprescindível para ambos.
“O negociante começou a contar as notas, calmamente, quando Estefânio, tirando de cima de uma das cadeiras um jornal, empunhou uma afiada machadinha e, certeiro, vibrou um golpe tremendo no crânio do negociante.
“O sangue jorrou-lhe na cara e, segurando a vítima com um braço, largou a arma assassina e, com a mão, escorou-se à parede, onde se estampou a sangrenta, horripilante mão na cal alvíssima. Presto, acudiu o criado com um grande saco de lona e, ajudado por este último, enrolaram o cadáver, dobrado em dois, num impermeável, e puseram este embrulho macabro dentro do saco.
“Depois, jogaram farinha ao solo, usaram do mesmo processo na mesa, ajuntaram aquele dinheiro, ainda tépido de sangue, e esconderam-no, com a farinha e a arma, dentro de um grande forno de barro existente no quintal, e que servia para cozer pães; lavou-se, trocou de roupa e esperou.
“Às oito horas, isto é, uma hora depois do crime, chegou um carro, encomendado por Estefânio, naquela rua quase deserta. Auxiliado pelo criado, Estefânio pôs o saco no fundo do carro e ordenou ao cocheiro que fosse para a rua Areal, onde iria entregar aquele embrulho a um amigo.
“Se a rua em que morava Estefânio era pouco habitada, a rua Areal, então, era desertíssima.
*
“O cocheiro estranhou a ordem àquelas horas para um lugar ermo, ainda mais com um homem decentemente vestido que ia ‘entregar’ um embrulho a um amigo e nem sequer se fazia acompanhar pelo criado.
“Enfim…
“Deu de rédeas e partiu. A certa altura, quando o carro contornava a estrada por cuja rampa as carroças despejavam, naquele tempo, o lixo da cidade, a um movimento mais forte das molas do veículo, Estefânio empurrou o fúnebre saco pela rampa areenta.
“E, mais além, ordenou ao cocheiro que voltasse, pois se lembrava não encontrar o amigo na casa, cujo número não dissera.
“O cocheiro foi mais adiante para fazer a volta e tornou à casa.
“Estefânio saltou, pagou, e bateu à porta que o criado veio abrir.
“O cocheiro parecia contar demoradamente o dinheiro, mas a verdade é que o seu pensamento estava naquela viagem trágica, no saco de lona que havia desaparecido misteriosamente.
“Depois, foi para a cocheira.
“A senhora do negociante, inquieta com a demora prolongada do marido, decidiu-se a ir à casa de Estefânio, no que se fez acompanhar por alguns convidados, amigos particulares da família.
“Atravessaram aquela rua escura, onde apenas bruxuleavam, a longos intervalos, os lampiões de querosene, pendurados no vértice dos triângulos de ferro que saíam do beiral das raríssimas asas.
“Depois, três pancadas fortes, incisivas, retumbaram no interior da casa de Estefânio…
“Veio abrir a porta o criado, grave e sério, cujo rosto moreno era riscado por duas longas e negras costeletas, que lhe davam o aspecto sisudo na sua impassibilidade e mutismo discretos do papel que desempenhava como excelente servo.
“A senhora do negociante e os três amigos entraram naquela sala onde, poucas horas antes, fora assassinado covardemente o seu marido.
“Calmo e sempre cortês, assomou à porta a figura insinuante de Estefânio que, ao ser interrogado pela senhora sobre a demora excessiva do marido, respondeu ignorar a causa apreensiva desta ausência, pois que, há duas horas, entregara-lhe a importância da dívida, cuja promissória apresentou-lhes no mesmo instante.
“Inquieta, sabendo seu marido um homem exemplar, muito amigo da família, a senhora teve um pressentimento mau e se deixou cair pesadamente numa das cadeiras, prorrompendo em soluços, num choro convulsivo.
“Foi quando um dos amigos, enquanto Estefânio trazia um copo com água para a senhora, notou, com horror, o sinal denunciador da mão sangrenta estampada na parede.
“Afetou a maior calma possível, falou discretamente a um dos amigos sobre a terrível suspeita, aconselhando-o que ficassem naquela casa do crime, enquanto ele sairia para uma providência urgente.
“Enquanto todos tentavam acalmar a senhora nas suas crises nervosas, o amigo da terrível descoberta aproveitou uma ocasião para sair pela porta que ficara entreaberta.
“Louco, numa carreira desenfreada, o homem corria pelas ruas, até chegar ao primeiro posto policial que encontrou.
“Narrou sucintamente o caso e a desconfiança do crime ao comissário de dia e, em pouco tempo, chegava um tílburi com a autoridade e duas praças.
“A chegada brusca, intempestiva, das quatro pessoas ao local, não fizera mudar a fisionomia aparentemente calma do assassino.
“O comissário interrogou-o sobre o desaparecimento da vítima e teve sempre as mesmas respostas anteriores.
“Deteve o criado e o amo, e deu uma busca severa por toda a casa.
“Tirando um lampião comum, que estava na sala de jantar, percorreram com aquela luz auxiliadora todo o quintal sem nada encontrarem.
“Mas o forno, grande e redondo, com a sua hiante e negra boca, parecia querer chamá-los para lhes mostrar o segredo comprovativo que ele guardava no seu bojo.
“Ao fundo, lá estavam as notas amarradas em pacotes, a pequena machada e o embrulho da farinha empapada do sangue.
“Alumiaram aquele interior negro e a luz pálida do lampião mostrou-lhes os objetos ocultos.
“Com uma vassoura velha, um dos soldados começou a puxar com jeito aquela denúncia macabra.
“Partiram rapidamente para dentro e interrogaram, novamente, a Estefânio sobre a descoberta recente.
“O assassino negou que o dinheiro lhe pertencesse; porém, quanto à farinha, fora ele — dizia — que entornara um pouco de vinho, ao jantar, e seu criado usara daquele processo familiar para enxugá-lo.
“— E aquela mão sangrenta ali na parede? — perguntou-lhe o comissário, apontando com a bengala.
“Um grito agudo cortou o silêncio sepulcral daquela rua, enquanto um corpo caía pesadamente ao chão.
“Era a senhora, que desmaiara.
“Os amigos puseram-na no carro, levando-a para uma farmácia, enquanto os policiais seguiram para o posto com Estefânio e o criado.
“Na farmácia, enquanto faziam a senhora voltar a si, o cocheiro taramelava com um dos homens que, naquela noite, seu companheiro saíra com um carro para aquele lugar, e que até se achava bastante impressionado com um volume que conduziu em companhia do alugador, volume este que desapareceu, não sabe como.
“O caso foi levado logo à polícia, na ocasião em que Estefânio e o criado persistiam, ainda, na negação do crime.
“Foi chamado o cocheiro do carro que ele alugara; o cocheiro reconheceu tanto o criado como o amo, fez o seu depoimento, e assassino e cúmplice acabaram confessando o crime.
“Dois anos depois, o criado morria na prisão com meningite; quanto ao cocheiro, enlouqueceu, vindo a morrer no hospício, e o assassino ainda vive, ou antes vegeta, cumprindo a sentença, roído pelo remorso, entre as paredes frias do cárcere.”
—E o carro? — perguntei.
—O carro foi desmanchado um mês depois e queimado, pois ninguém mais o queria alugar… E aí tens a história barbara que ignoravas até então!…
*
Quando Teobaldo acabou de me revelar este caso tenebroso, senti um pavor tremendo e, uma semana depois, eu tomava o expresso para o Rio.
E até hoje sou incapaz de alugar um carro, sem que primeiro me certifique, com algumas testemunhas oculares, que o que vejo “é um carro de verdade!...”
Fonte: “Primeira”/RJ, edição de 10 de outubro de 1928.
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