O MEDO DA MORTE - Conto Clássico de Terror - Amado Nervo

O MEDO DA MORTE

Amado Nervo

(1870 — 1919)

Tradução de Paulo Soriano


I

Eu não saberia dizer quando experimentei a primeira manifestação deste medo, deste horror — devo dizer — à morte, que me tem sem vida. Tal pânico deve remontar aos meus primeiros anos de vida, ou mesmo nasceu comigo, para jamais me abandonar. Recordo-me apenas, sim, uma das vezes em que se revolveu em meu espírito com mais força. Foi em razão do falecimento do pároco de minha vila, acontecimento que suscitou uma emoção muito dolorosa em toda comunidade. Deitaram-no na igreja da paróquia, vestido com suas vestimentas sagradas, tendo entre as mãos, unidas sobre peito, o cálix que tantas vezes consagrou. Minha mãe levou-me, juntamente com os meus irmãos, para vê-lo e, naquela noite, não preguei os olhos sequer um instante. A terrível lei que pesa com garra de chumbo sobre a humanidade, a odiosa e inexorável lei da morte, revelava-se a mim, causando-me palpitações e suores gelados.

Mamãe, testou com medo! — gritava eu a cada momento. Mas era em vão que minha mãe velava ao meu lado: entre o seu carinho e eu estava o pavor, estava o fantasma, estava “aquilo” indefinido que jamais haveria de desgarrar-se de mim.

Tempos depois, morreu em nossa casa uma tia minha, depois de quarenta horas de uma agonia que me eriçava os cabelos. Morreu de uma doença do coração, e foi preciso que a implacável ‘velha’, que nos há de levar a todos, a dominasse por completo… Ela não queria morrer. Rebelava-se com energias supremas contra a lei comum… ‘Não me deixem morrer — gritava. — Não quero morrer…’

E a asquerosa Morte estrangulou em sua garganta um desses gritos de protesto.

Depois, cada morto deixou em mim a angústia de sua partida, de tal sorte que, pode dizer-se, minha alma ficou impregnada de todas as angústias de todos os mortos; que eles, ao partirem, legavam-me essa terrível herança de medo… No colégio, onde anualmente os padres jesuítas nos davam alguns dias de exercícios espirituais, meu pavor, durante os frequentes sermões sobre “o fim do mundo”, chegou ao inefável do tormento. Saía eu dessas práticas macabras (nas quais, com uma não invejável riqueza de detalhes, eram pintadas as cenas da última enfermidade, dos últimos instantes de vida, da desintegração de nosso corpo), saía eu, dizia-vos, presa do pânico, e minhas noites eram tormentosas até o martírio.

Eu me recordava, com frequência, dos conhecidos versos de Santa Teresa:


Vivo sem viver em mim,

e tão altaneira vida espero

que morro por não morrer!”


E invejava raivosamente aquela mulher, que amou de tal maneira a morte, e a ansiou de tal forma que passou a vida inteira esperando-a como uma noiva aguarda o seu prometido…

Quanto a mim, a cada passo, tremia. E estremecia — tremo e estremeço — somente em pensar na morte.

Pouco tempo depois, morreu em meus braços um irmão meu, aos dezoito anos de idade, forte, belo, inteligente, generoso, amado… E morreu com a serenidade de uma bela tarde de meus trópicos.

Sempre temi a morte — disse-me ele. — Mas agora, quando ela se acerca, já não a temo: a sua própria aproximação parece diminuí-la perante mim… Não é tão mau morrer… Quase diria que é bom!

E invejei raivosamente também o meu irmão, que partia assim, com a fronte sem sombras e o olhar tranquilo voltado para o crepúsculo, que se desvanecia como ele…

Minha leitura predileta respeitava aos últimos instantes dos homens célebres. Eu lia e relia, analisava e tornava a analisar as suas derradeiras palavras para ver se nelas encontrava oculto o medo, o “meu medo”, o implacável medo que devora a alma…

Now I must sleep1 — dizia Byron, e havia, nestas palavras, alguma nobre e tranquila resignação que me aprazia.

Achei que morrer era mais difícil — dizia o feliz e mimado Luís XV, e esta frase me enchia de consolo… Este, pois, não tivera medo, nem se havia rebelado contra a morte.

Deixar todas estas coisas tão belas!… — clamava Mazarino, acariciando, em sua agonia, com o olhar, os primores de arte que enchiam seu quarto. Mas este grito de dor não me desconcertava, porque jamais temi a morte porque ela me tira o que é meu… O amor às coisas é demasiadamente insignificante para me atormentar.

Tudo o que tenho por um instante de vida! — gemia, agonizante, Elisabete da Inglaterra, e este gemido me congelava a alma.

Meu desejo é apressar o máximo possível a minha partida! — exclamava Cromwell, e eu surpreendia nessa frase a impaciência angustiosa dos que têm de sair, o quanto antes, de um martírio insuportável.

Chegará a conta que vamos prestar a Deus de nosso reinado! — murmurava Filipe III da Espanha, e estas palavras me acovardavam além da conta.

Ah! Quanto mal eu fiz! — soluçava Carlos IX da França, recordando o massacre da Noite de São Bartolomeu, e este soluço apavorava-me o coração.

Agradava-me sobremaneira a desdenhosa frase do poeta Malherbe, como se sabe o autor daquela estrofe que fez célebre (envaidecei-vos alguma vez legitimamente, senhores tipógrafos) uma errata de imprensa:


Mais elle était du monde, où les plus belles choses

Ont le pire destin,

Et rose elle a vécu ce que vivent les roses,

L’espace d’un matin.2


Ao padre que lhe falava da eternidade, e lhe rogava que se confessasse, Malherbe respondeu:

Vivi como todos, morro como todos e quero ir... para onde todos irão...

A seu turno, as palavras de Afonso XII:

Que conflito! Que conflito! — aterrorizavam-me até o absurdo.

E, à medida que crescia, este medo da morte adquiria — e continua adquirindo — proporções fora de toda ponderação. É raro, por exemplo, que transcorra uma noite sem que eu acorde, de repente, banhadas as têmporas de suor e mortificado, pelo súbito pensamento de meu fim, que se crava em minha alma como uma punhalada invisível.

Eu vou morrer — digo a mim mesmo. — Vou morrer!

E então experimento com uma compreensão rápida e terrível toda a realidade que há nestas palavras.

II

Morrer! Ah, meu Deus! Os animais, quando sentem que se aproxima o seu fim, vão deitar-se em um cantinho, tranquilos e resignados, e expiram sem uma queixa, em uma divina inconsciência, em uma santa e piedosa inconsciência, devolvendo ao grande laboratório da Natureza a misteriosa porciúncula de sua alma coletiva. As flores se dobram silenciosas e murcham sem que percebam (quem o sabe?) e sem angústia alguma (quem o sabe?). Todos os serem morrem sem pesar… menos o homem.

Nenhum dos animais sabe que vai morrer e cada um vive a sua furtiva existência em paz… Só o homem é perseguido pelos fantasmas da morte, como Orestes por seu séquito de Eumênides… Horror! Horror!

Só há duas maneiras de morrer: morre-se por síncope ou por asfixia. Pouco me surpreende a primeiras destas mortes… Um desmaio… e nada mais. Um desmaio do qual não se retorna: o generoso órgão para de bater no peito e dormimos docemente para sempre. Mas a asfixia… Meu Deus! A asfixia que nos vai sufocando sem piedade, que nos atormenta até o paroxismo… E, unido a ela, o terror do que vem em seguida… do desconhecido em que iremos cair, desse poço negro que abre a sua bocarra insaciável… da ‘única coisa séria’ que há na vida.

A mais de cem médicos, perguntei:

Sofre-se quando se morre?

E quase todos me responderam:

Não. Morre-se dentro de uma perfeita inconsciência…

Ah, sim! Isto é o natural, o bom, o misericordioso: a santa mãe, a nobre mãe Natureza deve nos envolver em um suave entorpecimento. Deve fazer-nos adormecer em seus braços benditos durante a transição da vida à morte. Sem dúvida que morremos como nascemos… em uma misteriosa ignorância… Mas, e se não for assim? Se não for assim? — eu me perguntava, tremendo.

III

Morrer! — eu prosseguia pensando (e ainda sigo, para a minha infelicidade). — Eu vou morrer, pois, e todas as coisas seguirão o seu curso. Esta multidão que inunda as calçadas continuará seu ativo e alegre trânsito, sob o mesmo azul do céu, aquecida pelo mesmo ouro cálido do Sol! E, nos bosques, os ninhos continuarão piando, e os amantes continuarão buscando nas bocas o furtivo mel da vida. As mesmas preocupações atormentarão as almas… Os mesmos prazeres, sem cessar renovados, deleitarão as gerações… A Terra continuará girando como uma imensa mariposa ao redor da chama do Sol. Mas eu não existirei mais, nada verei, nada sentirei… Apodrecerei silenciosamente num caixão de madeira que se esfacelará comigo…

Passarão as parelhas de aves sobre a terra que me cobre, sem comover as minhas cinzas…

O Sol despertará novas germinações ao redor de mim, sem que meus pobres ossos se aqueçam com o seu fogo bendito.

Minha memória ter-se-á apagado dos homens; meus rastros, perdidos; meu nome, ninguém mais pronunciará. O vazio que deixei estará preenchido.

E se ao menos fosse assim, se a morte se reduzisse a um imóvel e incomovível sonho… Mas as palavras de Hamlet me torturam o pensamento: ‘Morrer… dormir… talvez sonhar…’

Não, já não é possível padecer mais que isto. A resistência humana tem seus limites, e a minha está esgotada. Esta obsessão pela morte, ultimamente, assenhorou-se de mim de um modo tal que já não posso falar senão dela, nem pensar em algo que não seja ela… Minhas noites são de agonia lenta e odiosa... Meus dias são tão tristes que obnubilam luz do Sol...… Meu tormento chega ao heroísmo dos tormentos… Já não posso com o meu mal e vou recorrer ao mais absurdo, ao mais estranho, ao mais ilógico, porém, ao mesmo tempo, o mais eficaz dos remédios. Eu vou me matar. Sim, eu me matarei. Poderei vós conceber isto? Vou me matar…pelo medo da morte!”

IV

Sobre o peito do suicida, encontraram, à guisa de carta, as páginas que copio. Os jornais já publicaram parte delas. Creio que seria um gesto de piedade reproduzir todas elas…


Notas:

1Eu preciso dormir agora.

2Mas ela era do mundo, onde as coisas mais belas/têm o pior destino,/E, cor-de-rosa, ela viveu o que vivem as rosas,/Por uma manhã.

 

Comentários

  1. O livro "O medo da morte" foi muito bem escrito. Fala sobre um garoto que passou a ter muito medo da morte desde sua primeira experiência com ela. No texto ele fala também, que inveja pessoas que conseguem ver um lado "bom" nisso, ou, que não temem a ela.

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