UMA NOITE TRÁGICA - Conto Clássico de Suspense - Antônio Tavernard

UMA NOITE TRÁGICA

Antônio Tavernard

(1908 – 1936)


Um último estertor, uma derradeira convulsão… e o corpo do animal ficou imóvel, enrijecido, morto.

Paulo de Almeida tocou-o com a ponta do estilete. A pele escura e tensa não cedeu.

— Está acabado — murmurou entre dentes, o rosto iluminado por um sorriso de orgulho.

Na grande sala transformada em laboratório, a luz do sol, entrando em jorros pelas janelas abertas, arrancando revérberos das retortas de vidro, punha manchas louras no tapete, nas estantes e nas paredes. Almeida olhou mais uma vez o cadaverzinho do símio, estirado dentro da gaiola de tela, onde outro macaco arregalava os olhitos travessos, espantado pela imobilidade incomum do companheiro.

Para o homem, aquilo era mais que a concretização de um ideal acarinhado há muito, com um desvelo e tenacidade de espantar; era alguma coisa mais sublime, atrás da qual a humanidade inteira corre, através dos séculos, algumas poucas vezes alcançando-a — a glória.

Desde que encetara os estudos de toxicologia, planejara descobrir um veneno violento, infalível, inigualável, contra o qual todos os antídotos fossem impotentes.

E pesquisara!… e pesquisara!… Durante dias, meses, anos, curvado sobre as retortas, medindo, pesando, observando, ele parecia, para os que o viam em trabalho, aqueles medievos alquimistas lendários que buscavam a pedra filosofal ou o elixir de longa vida. Obsedado, abandonou tudo por aquela luta sem tréguas, sem descansos. E eis que agora, os cabelos embranquecidos nas têmporas, uma ruga profunda entre os olhos, já quase velho, chegara ao fim, vencera. O veneno almejado ele o alcançara naquela manhã, inodoro, incolor, sem gosto acentuado, que, uma vez inoculado, manifestaria na vítima os mesmos sintomas da hidrofobia, como: delírio, ganidos e sufocações; uma agonia trágica e dolorosa, rematada, inevitavelmente, pela morte.

Para essa primeira experiência, trouxera, do bufê da sala de jantar, duas cerejas, nas quais injetara o líquido mortífero. Jogou um dos frutozinhos para a gaiola dos micos; e o resultado fora aquele, patenteando o seu completo sucesso.

Veio-lhe ainda uma tentação de repetir a prova, dando a cereja ao macaco restante.

Mas outra ideia fê-lo mudar de pensar:

— Não. Irei buscar o Alfredo e o Luís para jantarem comigo. Depois, sim, depois lhes demonstrarei que o visionário, como me chamavam, descobriu alguma coisa de tão admirável que a ciência moderna espantar-se-á.

E, na pressa de realizar o seu plano, saiu, gritando à “tia” Faustina, a sua “governante”, que traria amigos para o jantar.


*


Tia Faustina tinha 50 anos e há 20 que servia Paulo.

Era dessas empregadas que chegam até a avareza no que se trata de defender os interesses dos patrões.

O molho de chaves, pendente da cintura, não descansava um só momento, pondo os seus subalternos numa roda-viva, dando-lhes ordens secas e imperiosas, ordens essas cumpridas com religiosa atenção. Não se extraviava um palito, sem que ela o notasse; e, quando algum dos criados era apanhado em falta, parecia vir o céu abaixo, tal a tempestade de ralhos e descompostura grossa. Nessas ocasiões de tormenta, até o próprio Almeida a respeitava um pouco, talvez por pensar que muito dificilmente encontraria outra tão dedicada e que o aturasse com tanto carinho, embora disfarçado em mau humor. No fundo, “tia” Faustina era ótima criatura com duas grandes afeições:— o seu “patrãozinho”, como ela o tratava, apesar de ele ser quase da sua idade, e o ”Joujou”, um velho papagaio palrador que, segundo Luís — um amigo intimo de Paulo —, devia ter o mesmo número de invernos que a dona.

Essa, neste dia, “estava com seus azeites”. Espanador em punho, teimava em procurar poeira e manchas por toda parte.

Ao ouvir a recomendação do químico, pôs-se a resmungar que aquilo era uma coisa muito mal feita; que esses jantares extemporâneos só lhe traziam consumições; que quem quisesse dar banquetes todos os dias, tinha que procurar esposa, pois essa é que devia aturá-lo e mais os seus convivas... etc.

Assim, ruminando as mesmas rabugices de sempre, passou pela porta do laboratório, que, pela primeira vez, Paulo se esquecera de fechar à chave, no atabalhoamento da sua alegria e da saída apressada.

— Ora, até que enfim encontro esta porta aberta — murmurou a velha, entrando naquele recinto até então defeso aos seus cuidados. — Santa Bárbara! Que desordem por aqui a dentro! Nem loja de ferro-velho.

Isso dizendo, no seu vício incorrigível de tudo arrumar, começou a pôr em ordem os frascos, os cadinhos, as pinças, enfim, uma infinidade de objetos, espanando aqui, brunindo acolá.

Nessa lufa-lufa de asseio, encontrou a cereja, esquecida sobre um simples prato de cobre. Num gesto natural, guardou-a no bolso do avental azul. Depois, dada a ultima demão, circunvagou o olhar perscrutador por todos os recantos, como o general cuidadoso a passar em revista os seus soldados, e, achando tudo mais ou menos apresentável, saiu do aposento, reatravessando a sala de jantar, onde, sem pressentir a enormidade do seu ato, tão simples na aparência, colocou o pomo venenoso no bufê, de mistura com os outros que lá estavam, contrastando as suas vivas cores de lacre da azulada “Sèvres1”.


*


Findara o jantar. O jovial Luís, levantando a taça de champanha, brindou, folgazão:

—Almeida, bebo em regozijo da importantíssima descoberta que vens de fazer. Porém, com maior sinceridade ainda, saúdo as tuas magníficas cerejas, quase completamente devoradas pelas nossas bocas gulosas…

Alfredo e Paulo sorriram do discurso cômico do outro. Alfredo Bastos e Luís de Alcântara, amigos inseparáveis de Paulo, desde os bancos universitários, químicos também, de grande nomeada, apesar de pilheriarem, frequentemente, do afã laborioso deste, embrenhado na toxicologia, bem que conheciam o valor profissional de Almeida; e, por isso, quando, nesse dia, ele lhes anunciara o seu achado, não se espantaram, sentindo-se, também, felizes pela vitória do amigo.

Este, radiante, enfiou o braço nos dois, arrastando-os suavemente para o laboratório iluminado, agora, pela luz forte das lâmpadas incandescentes.

—Eh! Lá! — fez Alfredo ao entrar. — Isso parece mais um “boudoir”2 que uma sala de trabalho. Só faltam flores e carmim.

—Foi com certeza, a “tia” Faustina que andou por aqui — explicou o dono da casa, que, em seguida, mostrou, pressuroso, aos dois, o cadáver do mico sacrificado à primeira experiência. Com a sua voz clara e vibrante, começou a informar aos colegas:

—Aqui está! Algumas gotas do soro em uma simples frutazinha e a morte vem, inexoravelmente, após uma agonia rápida, plena de contorções, espasmos e saltos epiléticos. Vocês já viram alguém morrer de “raiva”? Pois bem! O meu veneno produz essa mesma morte, precedida dos mesmos sofrimentos e da habitual loucura furiosa.

—Admirável! — exclamou Luís, entusiasmado.

—E quer saber, Alfredo, quanto tempo medeia entre a absorção do tóxico e o desenlace? No organismo inferior de um pequeno animal como este, a diminuta doze, que hoje empreguei, levará, para agir, 3 ou 4 horas, apenas; no de um ser humano, 10 ou 11.

—Admirável! — repetiu Luís.

—Vocês irão apreciar melhor com a prática.

Dizendo isto, Almeida começou a procurar, por sobre os moveis primeiro, depois, já impaciente, pela estante, o pomozinho por ele empeçonhado, pela manhã, para a segunda prova.

—Que é que procuras? interpelou-o um dos amigos.

—A cereja envenenada que eu destinara para provar a vocês a eficácia da minha descoberta — respondeu.

—Onde a guardaste?

—Aqui, sobre esse prato, se não me falha a memória. Mas, agora, não há maneira de a encontrar.

Os outros auxiliaram-no na busca, abrindo as gavetas e os armários, sacudindo os tapetes, espiando por sob os moveis.

Debalde!

Uma angustia, muito vaga ainda, começava a confrangê-los.

De repente, Luís lembrou:

—Quem sabe se a “tia” Faustina não o comeu ao fazer a arrumação?

—Meu Deus! — murmurou Almeida, transtornado. — Será possível?

Mais calmo entre todos, Alfredo, gritou para dentro:

—“Tia” Faustina, “tia” Faustina, faça o favor de chegar até aqui no laboratório!

Decorreu um minuto antes que, anunciada pelo tilintar das suas inseparáveis chaves, a governante entrasse no aposento:

—Que é que me querem? — perguntou aos três homens, que, pálidos, não ousavam falar.

Vendo que eles não respondiam, repetiu.

—Que é que me querem?

Então, Almeida decidiu-se, a voz ligeiramente trêmula:

—“Tia” Faustina, o que a senhora fez de uma cereja que estava sobre esse prato?

—Uma cereja? Ora essa! Não me lembro — disse a velha; e, fazendo esforço, depois, para recordar-se: — Ah! Esperem um instante… Uma cereja, não é? Pu-la entre as que vos servi ainda agora, à sobremesa.

O mesmo espanto trágico estrangulou os três. Suas faces tornaram-se congestas, salpicadas, aqui e ali, por pequenas manchas lívidas.

A governante, não reparando no efeito das suas palavras, interpelou ao patrão se já podia retirar-se.

Da garganta contraída de Almeida uma sílaba caiu, enrouquecida, quase afônica:

—Sim…

A velha saiu.

E, agora, tendo nos rostos a palidez mórbida dos cadáveres, os três ficaram mudos e imóveis, como se fossem três múmias antigas ou três blasfemos mitológicos surpreendidos por um castigo divino e transformados em estátuas de alabastro.

A mesma angústia os aniquilava; o mesmo pensamento horrível lhes cauterizava os cérebros. Um, entre eles, estava condenado, pois todos haviam comido das cerejas fatais. Qual deles o envenenado? Qual o que, daí a algumas horas, dançaria o bailado fantástico da loucura, babando, ganindo, contorcendo-se até a morte, morte cruciante de todos os hidrófobos? Qual? Não o saberiam senão quando, declarada a crise, o desgraçado começasse a ulular.

Uma hora arrastou no aposento os seus sessenta minutos de expectativa indescritível. Qual? Ainda não se podia saber.

Só o que percebiam muito bem é que um, entre eles, tinha, girando nas suas veias, a peçonha mortífera, infalível na sua crueldade. Aos três acudiam vontades dispares; queriam correr, gritar, agir, fazer emfim, alguma coisa para desvencilhar-se daquela martirizante atonia que os subjugava com mão de ferro. Em vão!

Afinal, Luís, após um esforço gigantesco para domar os nervos tensos, perguntou:

—Al… mei… da, não há… nenhum… antí… do… to?

Essas palavras fragmentadas, tal fossem proferidas por um ébrio, produziram, contudo, na alma daqueles desgraçados, efeito idêntico ao de um metal em brasa ao tocar um corpo humano. Arrancou-a do entorpecimento quase faquírico em que estava imersa.

—Nenhum antídoto? — repetiram Alfredo e Luís, tendo nos olhos a ansiedade dos réus que esperam, transtornados, a decisão do juiz.

Almeida, que neste momento estava sendo o juiz de si próprio também, sacudiu a cabeça, negativamente, para um lado e para outro, e, numa descarga histérica, começou a soluçar.

A sentença fora proferida: nenhum antídoto, nenhum remédio, nada. Ai daquele que trincara o pomo intoxicado!

De novo, o silêncio amortalhou o ambiente com a sua capa de chumbo. Na remembrança dos infelizes, uma a uma, todas, as cenas do passado cirandaram, rápidas e fugazes, como uma visão de éter: — a infância, a família, a juventude, os amores, a virilidade — época em que os homens deixam de sonhar, — os trabalhos, tudo enfim.

No quadrante branco do relógio, os ponteiros, como dois bisturis negros, continuavam, infatigavelmente, a dissecar as horas.

Parecia cantar, incisiva ainda, a frase de Almeida: — “Vocês já viram a morte de um hidrófobo? Pois bem! O meu veneno produz essa mesma morte, precedida dos mesmos sofrimentos e da habitual loucura furiosa”.

A mesma morte de um hidrófobo. Mas isso era uma coisa horrível de mais. E, ainda, a loucura furiosa em que a vítima procuraria morder, agatanhar os antagonistas!?

Instintivamente as mãos procuravam uma arma, um objeto qualquer que os defendesse daquele que ia enlouquecer.

— Sim — pensava cada um de si para si —, não terei piedade. Um destes dois vai ficar furioso. Eu esmagá-lo-ei como se fosse um cão danado.

E, no instinto de conservação — o mais forte de todos os instintos —, volteavam os olhos de um para outro à procura de um sinal, de um vestígio que lhes indicasse qual o intoxicado; porque, no egoísmo bestial daqueles que se querem salvar à custa de tudo, eles, que, inda há pouco eram amigos sinceros e dedicados, desejavam, queriam que fosse qualquer dos outros o atingido.

Talvez, aguilhoado pela fome, ou lamentando, talvez, o companheiro morto, o símio sobrevivente pôs-se a cortar o silêncio tumular da sala com seus gritos finos e estridentes.

Para dentro da casa o sossego se fizera, pois todos os criados se haviam recolhido.

Lá de fora, da rua, apenas, de quanto em quando, o buzinar agudo de alguns automóveis retardados subia até aquela sala, onde o drama espantoso desenrolava-se, em silêncio, horripilante e dantesco. No céu, através das janelas abertas, a lua, pouco acima da coma escura de uma palmeira, parecia uma grande hóstia pálida, saindo de um cálice verde, para a comunhão de todas as estrelas.

Mas os estáticos atores da inesperada tragédia nada viam, nada ouviam, parecendo já estarem do outro lado da vida, anestesiados pela angústia.

E as horas passavam…

O macaco, fatigado de gritar, adormecera, encolhido, num canto da caixa.

Já devia estar próximo o amanhecer. A cidade, qual mastodonte despertando de um sono profundo, bocejava, surdamente, pelos primeiros ruídos da sua atividade matinal.

E as horas passavam…

A brisa fria da madrugada entrava no aposento, balouçando as cortinas, arrepiante, gélida.

De repente, porém, um quase nada — a simples pancada do relógio marcando as quatro e meia — reanimou as estátuas. Agora, no entanto, uma estranha calma os empolgava, na geral e tácita aceitação da catástrofe, como um fato natural.

Luís falou:

—Já está chegando a hora do desfecho, não é, Almeida?

—Sim — confirmou este, com a convicção inabalável de quem sabe o que asserciona. — Talvez daqui a um minuto, ou, talvez, daqui a uma hora, no máximo, quem tiver de sucumbir, sucumbirá.

—Pois bem! — fez o outro, enquanto tirava do bolso da calça uma “browning”3, cujo níquel, faiscou mordido pela luz crua das lâmpadas — Eis aqui alguma coisa que poupará à vítima os padecimentos crudelíssimos da agonia. Aquele que começar a sentir os primeiros sintomas do envenenamento arrebentará os miolos com uma bala e, pronto, não sofrerá.

Sacudiu a arma para sobre uma pequena mesinha de centro, e continuou:

— Agora, aquele que, entre vocês, ainda sabe rezar, que ore pela alma do que vai morrer.

Calou-se.

Bastos, baixinho começou a rezar, repetindo, semi-inconsciente, as velhas preces aprendidas, em menino, de sua mãe, uma velha que ainda vivia na singeleza de uma longínqua vila nortista. Mais alto, de quando em vez, ouvia-se um “amém” repetido pelos outros, num eco doloroso.

Tristíssima aquela oração em que, com certeza, alguém estava rezando pela própria alma.

Um último “amém”" e a oração findou. Porém, esse término lhes trouxe, outra vez, o pavor sobre-humano à morte. Não, eles não queriam morrer. O que haviam feito, que grande pecado haviam cometido para serem tão barbaramente castigados? Não, eles não queriam morrer.

Cinco horas!

Jamais um dobre de finados repercutiu tão dolorosamente em corações humanos. Parecia que o eco das cinco pancadas permanecera no ar, parado, vibrante, interminável.

Só faltava meia-hora.

Como a avezinha hipnotizada que não pode desviar os olhos da serpente magnética, assim os três químicos não tiravam os seus da “browning” aliviadora.

Mais um quarto de hora!… Mais outro… e a meia hora depois das cinco tilintou…

Era o fim!

Num gesto, acorde, harmônico e instintivo, os três aproximaram-se do centro.

Nenhum queria morrer; mas, também, nenhum queria sofrer.

Súbito, de dentro da casa, um barulho de passos apressados, e, logo depois, olhos ainda inchados de quem acordou ha pouco, “tia” Faustina, desfeita em pranto, entrou na sala, trazendo, nas mãos trementes, o corpo rígido do seu querido papagaio.

—Veja, senhor Paulo, o que tem o “Joujou”. Ainda agora, fui encontrá-lo duro, pendurado pela patazinha à corrente do poleiro. Veja se ele está morto, senhor Paulo.

Uma descarga elétrica de 5.000 volts não faria estremecer tão fortemente um corpo humano como aquelas palavras fizeram na alma dos angustiados, os quais de, uma vez só, perguntaram, como quem põe toda a vida nas palavras:

—“Tia” Faustina, a senhora deu-lhe alguma daquelas cerejas do bufê?

—Sim, dei-lhe umas duas ou três que sobraram. Mas...

Não concluiu a frase, atônita por ver aqueles três homens, aqueles três sábios, caírem, aniquilados, de joelhos, soluçando, ao derredor da mesinha em que pusera o corpo do papagaio, como se essa fosse o esquife de um pequenino deus morto.


Fonte: “Primeira”/RJ, edição de 10 de abril de 1928.


Notas:

1Porcelana.

2Ambiente decorado feminino.

3Arma de fogo.

 

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