A VINGANÇA MACABRA - Conto Clássico de Horror - Wharton
A VINGANÇA MACABRA
Wharton
(Séc. XX)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
O detetive Lamson estava convencido de que suas relações com o seu colega de escritório iam de mal a pior. Ou por antipatia instintiva, ou por zelos profissionais, o certo é que o tal Stevens esgotara nele toda a tolerância possível, razão pela qual esperava que de um dia para outro estourasse a sua animosidade contra esse petulante — a seus olhos, camarada e rival de investigações policiais.
Naquela manhã, ao substitui-lo pela décima quinta vez no posto de guarda, trocada, como de costume, nas primeiras horas do dia, nem sequer saudara Stevens com o “Há alguma novidade?”do ritual, indo, ao contrário, parar defronte da janela do aposento que deitava para a rua, cheia de fumaça e de neve a essa hora.
Stevens, que evidentemente não se deu por achado ante a entrada tão pouco cordial do companheiro, preparara já no quarto tudo quanto era necessário para que se rendesse a guarda sem dificuldade. Guardou no bolso o pequenino livro que estava lendo, lançou um olhar indiferente para o lado de Lamson, sempre de costas, e acendeu com lentidão o cachimbo.
Mas, em seguida, resolvendo-se seguramente a voltar, retirou do bolso o livro e depositou-o sobre uma cadeira…
—Pode lançar-lhe uma vista d'olhos — disse. — Há uma série de coisas interessantes.
Mas Lamson não se dignou responder nem com um movimento de ombros. Stevens, decidido a não se alterar pelo que se via, pôs um gorro de limpeza muito duvidosa à cabeça, levantou a gola do casaco, suja do mesmo modo, e dirigiu-se para casa no firme propósito de descansar. Tinha tempo bastante até cinco horas.
Lamson não se moveu do seu lugar, entretido aparentemente em observar o espetáculo da rua que despertava ao labor quotidiano. Afinal, como pondo termo aos pensamentos que lhe borbulhavam no cérebro, exclamou, com uma má vontade concentrada:
—Imbecil! Quererá, por acaso, condenar-me a morrer de tédio nesta casa?
*
Quando lhe ordenaram pôr fim ao assunto do Jardim Burden e auxiliar Stevens a procurar Yucatán Tonio, a contrariedade de Lamson não encontrou limites. Pô-lo quase às ordens do odiado inimigo! E ainda mais quando este tratava de ressuscitar, sem nenhuma razão plausível, o caso relativo ao tal Yucatán, uma pessoa que, na sua opinião, carecia de toda especie de interesse para a polícia! No íntimo, revoltava-se uma vez mais contra a cegueira dos seus superiores, que não sabiam discernir a importância dos personagens com quem deviam tratar.
Segundo se terá adivinhado já, Lamson era um homem com uma alta ideia de si mesmo; unia à sua juventude uma veemência pouco comum e uma absoluta confiança em suas habilidades de pesquisa. Bastava, por isso, dar-lhe um conselho sobre a matéria, ou sugeri-lo simplesmente, para feri-lo em seus mais caros sentimentos.
Todos pareciam comprazer-se em pôr obstáculos a seu acesso profissional. Agora, que se lhe apresentava uma verdadeira oportunidade de demonstrar seus relevantes méritos, depois de dezoito meses passados obscuramente ao serviço da Secção de Investigações, o bruto do Stevens se lhe atravessava no caminho para fazê-lo abandonar o interessantíssimo assunto do Jardim Burden, tão promissor, e que o assinalaria, a ele, o ignorado agente da secção, à consideração definitiva dos superiores. Mas a sorte ingrata empenhava-se em persegui-lo. Se Stevens não acreditasse ter visto Yucatán Tonio em Waterloo Road — era o que ia ver! —, ele poderia levar adiante as investigações iniciadas já acerca do caso do Jardim, sob a vigilância imediata dos chefes, que, desse modo, apreciariam devidamente seu trabalho admirável…
— Muito bem, Lamson! — haviam dito já os superiores.
Mas eis aí que chega, pouco depois, o sargento Weston, para dizer-lhe, enquanto lhe entregava um embrulho de roupas imundas:
— Vista-as e vá ao encontro do detetive Stevens, na rua Lymposs 37, quarto andar, à direita. Lá ele lhe dará as instruções necessárias.
Lamson vestira-se rapidamente com aqueles andrajos, mas, durante todo o trajeto, até chegar à rua Lymposs, amaldiçoara Stevens. Instruções de Stevens!
Apenas iniciado no serviço de investigações, Lamson notou — como não o fazer com um espirito perspicaz como o seu? —que a generalidade das pessoas que trabalhavam na seção era justamente o contrário do que considerava perfeição. Para onde quer que voltasse os olhos, via defeitos que jamais copiaria, com a graça de Deus! Stevens, classificara, era um velho fóssil, medíocre, de inteligencia escassamente cultivada, que se, às vezes, obtinha alguns êxitos, eram devidos, unicamente, à sua perseverança pela obstinação, e, em parte, por um pouquinho de sorte que o acompanhava invariavelmente em toda a empresa empreendida... Se a desilusão tinha sido amarga, relativamente ao caso do Jardim Burden, mais amarga lhe era a ordem de receber instruções de Stevens, o teimoso pobre diabo que lhe coubera por companheiro.
O assunto do Jardim era desses que fazem época em qualquer parte: um príncipe, um duque, uma reunião de mulheres a dançar num salão matizado de festas alegres… e, em seguida, como desfecho digno do quadro, um crime provocando a mais intensa expectativa em todo o país. Lamson começara a trabalhar para descobrir o mistério que rodeava o assassinato ao lado do maior investigador da seção, o sargento Whatley. E recordava de novo a frase de aprovação deste: “Muito bem, Lamson, muito bem!”
Até lhe prometeram ficar sozinho no prosseguimento das pesquisas!
Foi, então, que sobreveio a catástrofe; Stevens e o seu maldito Yucátan Tonio. Lamson, enquanto montava guarda no quarto andar de Lymposs Street, mordia os lábios com incontida cólera. Não tinha, afinal, mais nada a fazer do que consolar-se da morte de uma de suas mais caras ilusões dos útimos tempos... e continuar a a vigilância como nos dias anteriores.
Yucatán Tonio era um bailarino de terceira classe. Trabalhava com uma companheira, Yucatán Tonia, linda morena de olhos ternos — a melhor do duo. Por um par de annos, o casal Yucatán aparecera com pequenos intervalos, nos Hall e um tabladozinho dos musicais baratos e tabernas enfumaçadas do bas-fond londrino. Tiveram sua época de sucesso, mas logo depois a estrela de ambos declinara rapidamente. A vida do casal passara despercebida a todos, porque nada aconteceu propriamente que pudesse chamar a atenção sobre eles. Quando se deu a morte de Yucatán Tonia, os dois tinham descido tanto, que, dado o ambiente em que viviam, era lícito pensar em coisa pior.
Uma tarde, foi encontrado o cadáver de Tonia num quarto imundo de uma casa situada em certa rua próxima de Totenham Court-Road, quarto que haviam alugado poucas semanas antes. O cadáver ali permaneceu por espaço de dois dias, conforme as informações proporcionadas pelo sargento da secção. A morte produziu-se em consequência de um golpe terrível no estomago. Quanto a Yucatán Tonio, não foi encontrado em parte alguma. A dona da pensão e os vizinhos julgaram prudente ignorar os assuntos íntimos dos inquilinos, ao menos pelo momento. Contudo, chegou-se a saber, pelas declarações de algumas mulheres, que, noites antes da descoberta do cadáver da pobre Tonia, dois homens tinham voltado com ela altas horas da noite. Depois de uma breve pesquisa, a polícia averiguou quem eram os dois indivíduos: Purdy. chamava se um, e era jogador de box de profissão; o outro não era mais do que o seu sparring-partner, de nome Holohan. Ambos eram perfeitamente conhecidos no bairro.
Os dois detidos declararam ter encontrado Yucatán Tonia em Leicester Square, acompanhando-a até em casa com a intenção de cearem com ela. Enquanto o faziam, apareceu um estrangeiro de rosto amarelado, que logo à entrada promoveu um desagradável incidente, motivado evidentemente pela presença em casa daqueles dois desconhecidos. Sua excitação era grande: ameaçava todo mundo, inclusive Tonia. Tanto Purdy como Holohan acrescentaram que, como não queriam ver-se envolvidos em complicações, e ainda menos com um personagem como aquele, se retiraram imediatamente. Quanto ao que tinha sucedido depois, não podiam declarar coisa alguma, pela simples razão de que tudo ignoravam. O caso pareceu claro à polícia; por isso, iniciou-se uma ativa investigação para dar com o paradeiro de Tonio. Mas este, por motivos que guardava consigo, de ordem privada seguramente, empenhava-se em não se deixar ver.
Iam já para quinze meses de buscas infrutíferas, quando, uma tarde, Stevens, que vigiava numa rua próxima de Waterloo Road, acreditou ver Yucatán Tonio atravessando a calçada. Vinha do lado da estação e trazia numa das mãos uma pequena valise, e, na outra, uma caixa de folha de Flandres maior do que a maleta; acompanhava-o uma mocinha, estrangeira seguramente, morena, e de pequena estatura.
Isto foi uns quinze dias antes. Mas, por uma dessas casualidades que seu colega Lamson considerava fator principal de seus êxitos como detetive, Stevens tornara a ver a mesma mocinha noites depois, em Leicester Square, quando passava defronte dos focos do “Eldorado”. Seguira-a durante duas horas em suas voltas pelo bairro; finalmente, já bastante adiantada a noite, chegou, sempre em seu encalço, à rua Lymposs 37, Stepney, quarto andar, porta à direita. Depois de repetir dois dias a vigilância, acabou por tomar um aposento na mesma casa.
Transcorreram duas semanas. Stevens e Lamson instalaram-se, primeiro, num quarto situado no andar abaixo daquele ocupado pela estrangeira; depois, favorecidos pela morte oportuna de um inquilino, passaram a ocupar o aposento contíguo ao da mocinha. Desde então, montaram uma guarda severa, de dia e de noite, revezando-se, naturalmente. Essa vigilância era o que contrariava extraordinariamente a Lamson.
A rapariga saía duas vezes por dia para fazer compras modestas. Mas nunca se encontrava com ninguém e menos com alguma pessoa que parecesse compatriota sua, ia direito às lojas ou ao mercado, voltava do mesmo modo para o seu pequenino aposento. Já estavam no décimo quarto dia de guarda. Lamson encontrava-se inteiramente farto de semelhante vigilância, a seu ver, de nenhum resultado. Mas do que estava principalmente cansado, era do mau cheiro insuportável que parecia vir de certa fábrica de produtos químicos situada junto do rio, no fim da rua Lymposs — e que aproveitava restos e imundícies de toda especie como matéria-prima. Durante quatorze dias, com as suas noites correspondentes, aqueles miasmas, que se levantavam no ar, lhe tinha envenenado o organismo e, com isto, a própria existência. O cheiro horrível parecia persegui-lo por toda parte, saturando-lhe a roupa, a comida, os lençóis dos leito, até mesmo o tabaco que fumava. Stevens, ao contrario, não dava mostras sequer de tê-lo adivinhado... Quando Lamson lhe falou do assunto, limitou-se a aconselhar: "Não é nada... "
“Para ele, não é nada!” — pensou Lamson. indignado com semelhante indiferença. “Está claro, pois, ele tem a coragem de fuma no cachimbo um fumo nauseabundo que a mais ninguém ocorreu”…
Um sol, que se diria mal desperto, erguia-se no céu, afastando preguiçoso as sombras da brumosa noite de agosto. Todas as coisas pareciam distilar cansaço, um tédio infinito. Lamson, mergulha do até então em seus pensamentos, voltou, finalmente, as costas para a janela e sentou-se numa cadeira. O livrinho de Stevens estava agora no chão, a seus pés, no mesmo lugar em que o arrojara num movimento de cólera. Apanhando-o mal humorado, leu o titulo na capa: “Enciclopédia Popular, IV parte”. Seguramente, o velho Stevens comprara-o para encurtar suas aborrecidas vigílias naquele quarto andar da casa da rua Lymposs; em sua obstinação, lera, com certeza, todo o livro do começo ao fim. Seis, sete, oito, nove, dez... Passavam com pés de chumbo todas aquelas horas para o pobre Lamson. Para cumulo, o “perfume” da bendita fábrica saturava todo o quarto, até o almoço frugal que lhe tinham enviado, preparado na polícia. Um gato, único habitante permanente do quarto, aproximou-se de Lamson em busca da costumada ração de leite; servia-o a pequenos goles, marcando o ritmo com a linguinha cor de rosa; limpou depois os bigodes e afastou-se, satisfeito, muito mais, certamente, do que o seu benfeitor ocasional. Às quatro da tarde, regressaria outra vez, mas, até lá, sua silhueta esquálida se refugiaria nas sombras dos tristes aposentos daquela sucursal da burocracia polícial plantada em pleno coração de uma pensão do bairro pobre. Lamson morria literalmente de tédio, mas não tinha nenhum outro remédio senão esperar a hora de render a guarda. Pelas onze horas, a rapariga saiu do quarto, fechando à chave a porta. Lamson seguiu-a na sortida habitual — ela não parecia suspeitar sequer que a vigiavam — e teve-a sob os olhos até que desaparecesse de novo por detrás da porta do aposento. O detetive voltou para o seu lugar, para a odiada cadeira, onde devia esperar estupidamente que o tempo passasse, quando havia mil outros assuntos que reclamavam com mais urgência a sua presença!...
Às duas horas, Lamson não precisou deixar o aposento para o lanche, pois levara consigo alguns sanduíches. Claro está que, com o cheirinho vindo da fábrica, ninguém poderia comer com gosto. Tendo desenrolado os sanduíches tornou a embrulhá-los.
Se as coisas prosseguissem de tal modo, morreria de fome, de tédio ou de neurastenia. E tudo por causa de um velho maníaco, que se empenhava em descobrir fios de uma trama onde reinava a mais perfeita normalidade. Passou por uma modorra durante algum tempo. Despertou-o a cautelosa reaparição de Stevens. Não devia vir senão às cinco, mas acabava de inteirar-se de algumas novidades que julgou de seu dever comunicar ao companheiro de pesquisas. Mas começou por levantar o livro do chão e acomodar os sanduíches que Lamson atirara ao acaso sobre a mesa: a ordem acima de tudo.
—Esse caso se vai tornando interessante—pôs-se a dizer, com visível bom humor.
E, sem maiores preâmbulos, despejou tudo quanto sabia. Holohan traíra o companheiro, Purdy, fazendo algumas revelações sensacionais. Assim, quem matara Tonia não fora seu “partenaire” de dança, Yucatán Tonio, mas o próprio Purdy. O descontentamento de Tonio e a cena de ciúmes —tudo era pura invenção, porque o estrangeiro não aparecera em coisa alguma. A mocinha resistira aos ataques amorosos de Purdy, embriagado completamente, e, então, furioso por ver-se repelido, aplicara-lhe um terrível pontapé no ventre. Depois do fato, Holohan retirara-se, arrastando consigo o camarada.
A repentina declaração de Holohan não era inspirada, certamente, por um desinteressado desejo de facilitar o trabalho da justiça; aos ouvidos do sparring-partner haviam chegado rumores de que Purdy pretendia atirar-lhe a responsabilidade do crime. Além disso, acreditava que o outro estivesse prestes a embarcar para a Argentina—se é que não o havia feito já—, pois não voltara a vê-lo.
Pôs-se naturalmente em campo para salvar sua reputação. Com respeito à polícia, nenhuma noticia tinha tido de Purdy até as declarações inesperadas de Holohan, O resultado dos informes do spairing partner não o deixaram ir, a ele, Stevens, tranquilamente, para casa, como de hábito, mas o detiveram nas ordens para a captura de Purdy, que podia ter ou não embarcado para a Argentina, mas que, com certeza, já não frequentava já os sítios onde era visto sempre.
Lamson escutou toda a exposição do colega com um sorriso que tinha muito de irônico.
—Má sorte, Stevens! — exclamou, contendo um bocejo.—E má sorte para mim também! Deus o abençoe e mais ao tal Yucatán Tonio. Creio, isto sim, que tais novidades significam o final de nossas estúpidas vigílias…
Aproximou-se para apanhar o gorro, enquanto Stevens coçava a cabeça, pensativo.
—Mas falta uma coisa ainda, amigo Lamson— disse, lentamente.—A última vez que Holohan viu Purdy, isto é, a ultima vez que alguém o viu, num táxi com uma mocinha muito parecida com a nossa vizinhazinha de lado. Purdy e Holohan encontraram-na em Leicester Square, uma noite, há mais ou menos duas semanas, justamente em frente ao “Eldorado”; e ao mesmo tempo que eu. Purdy afastou-se logo num táxi, sempre em companhia dela. O interessante é que não se teve mais notícia dele desde essa noite. Holohan acredita ter sido um dos últimos a ver o sparring-par tner. Teme, por isso, que haja fugido para a América.
Lamson lançou-lhe um olhar de cepticismo sincero.
—E quem diz que a mocinha era a mesma do quarto do vizinho ao nosso?—perguntou.
—Digo-lhe eu—respondeu Stevens, profundamente convencido. —A descrição de Holohan coincide com os sinais dela, os sinais que conhecemos por tê-los observado uma infinidade de vezes, e diretamente.
Lamson deixou ouvir um grunhido de zombeteira incredulidade. Pôs de novo o gorro sobre a mesa e voltou à cadeira odiada. O resto revelava eloquentemente a contrariedade que semelhante coisa lhe produzia. Não conseguiu, todavia, molestar Stevens, que não se mostrava disposto de modo algum a prolongar uma discussão inútil.
—Voltarei às cinco — disse rapidamente.
Lamson ficou só de novo. Passou-se uma hora, duas, três... Às quatro apareceu outra vez o gato da manhã. O animalzinho olhou Lamson, da porta, com evidente desconfiança; depois, convencido, sem duvida, de que nenhum perigo o ameaçava, entrou lentamente no quarto, com a cauda quase vertical. Lamsom, que via na coisa mais insignificante uma especie de distração para o seu isolamento forçado, acolheu-o com um sorriso quase amistoso. Tomou logo em seguida os sanduíches de cima da mesa e colocou-os no chão, depois de tê-los livrado do papel que os envolvia. O gato cheirou o fiambre um instante; em seguida, pôs-se a mordiscar os sanduíches lenta e preguiçosamente. Lomson entreteve-se uns minutos vendo comer o seu companheiro de vigília habitual, até que do quarto imediato lhe chegou um ruido muito conhecido. A pequena morena saía mais uma vez. Ausentava-se sempre a essa hora para comprar leite. Era seu dever segui-la, pelo que se dispôs a fazê-lo apesar do aborrecimento enorme que trazia tal coisa. Estava, na realidade, cansado de andar atrás da pobre mulher, que saía invariavelmente com o mais inofensivo dos fins. Resolveu-se então que saísse para comprar leite se o quisesse e voltasse sozinha, como nas ocasiões anteriores.
Da janela, viu-a afastar-se e perder-se, afinal, numa esquina da rua.
Quatro horas chegaram. Passou-se quase mais uma hora. Lamson olhou, então, o único leito do quarto. Tão odioso quanto lhe era a cadeira, não se lembrara dele para sentar-se ou recostar-se. Mas a atmosfera do acanhado aposento, pessimamente ventilado, uma atmosfera pestilenta acabou por dar-lhe sono. Acendeu um cigarro e pôs-se a fumar, para disfarçá-lo.
O apetite do gato foi rapidamente saciado. Brincava, agora, com os papéis dos sanduíches, dando pancadinhas com uma outra patinha. Lamson sentia que os olhos se lhe cerravam. Dormiu pensando na possibilidade de ir à noite ao teatro. Quando despertou, o cigarro abrira dois grandes buracos na colcha e nos lençóis. O sono durara mais de cinco minutos. Levantou-se vagarosamente, bocejou e espreguiçou-se à vontade, acendendo, por fim outro cigarro. Só então olhou casualmente para o lugar onde brincava, momentos antes, o animalzinho.
Foi grande a sua surpresa. O bichano jazia de flanco junto ao papel dos sanduíches, inteiramente imóvel, com as patas muito separadas. Lamson inclinou-se, então, sobre ele para fazer-lhe cócegas nas costas, notando, com explicável assombro, que o seu pequeno protegido estava morto. As pernas já estavam tesas e duras como pequenas barras de aço. Imediatamente, quase, fez outra descoberta. No ventre haviam desaparecido alguns pedaços de pele, como se a tivessem devorado sem respeitar qualquer pelo.
A certa distância, viu um bichinho que se movia com estranha celeridade. Quis apanhá-lo; desistiu, porém, do intento, pois sentiu duas ou três vezes alfinetadas nas pontas dos dedos. Teve, de pronto, a explicação: encontrou no flanco do gato uma espécie de formigas esverdeadas.
Olhava, absorto, o gato morto, quando apareceu Stevens, de regresso já. Interessou-se pelo episódio do gato e pelas formigas, mas, no momento, toda a sua atenção estava concentrada no caso da mocinha.
—Saiu esta tarde?— perguntou, indicando com um gato o compartimento contíguo.
Lamson vacilou um instante só. Uma força irresistível levava-o a assentir com a cabeça. Em muito tempo do que pensava, resolveu-se a fazê-lo. De qualquer modo, não corria perigo algum, porque a essa hora a mocinha já deveria ter voltado. Não havia, pois, razão nenhuma para confessar a Stevens que não a seguira, segundo seu dever. Assim foi; assegurou com um leve movimento de cabeça que a rapariga havia saído. Se bem que tivesse um segundo de vacilação na resposta, Stevens não o pareceu notar. Detinha-se em observar o lugar em que faltava um pedaço de pele ao gato.
—Olá!—exclamou, surpreendido.—Como trabalham depressa esses bichos! No ponto destroçado, já se vê o osso.
Lamson lançou fora o cigarro aceso havia pouco; não sabia porque, mas o fumo causava-lhe náuseas agora. Sentia a cabeça como se flutuasse numa atmosfera de densos vapores; os ouvidos zumbiam-lhe. Voltou a sentar-se no leito.
— Que se passa, Stevens? — perguntou, com um tom distraído.
Mas Stevens não o escutava. Tirou outro volume de sua enciclopédia do bolso e começou a folheá-lo ansioso.
—Neste volume existem duas boas gravuras representando uns bichos muito parecidos com os que acabamos de ver—falou.—Parece-me que poderia reconhecê-los se estivessem aqui. Vai embora agora?
Mas Lamson não tinha nenhuma pressa de ir embora. Julgou conveniente continuar sentado ainda na beira da cama, para procurar certificar-se de que os zumbidos nos ouvidos eram reais ou, se não, imaginários, provenientes de alguma alucinação.
Stevens, ao ver que a sua pergunta não merecera resposta, sentou-se de frente da mesa e continuou em sua pesquisa. Na primeira gravura referida, não encontrou a espécie de formigas que o interessava; mas, na segunda, achou um bichinho de cor verde-clara que lhe fez aspirar com força o fumo do cachimbo. Mas antes quis convencer-se de que não o enganavam seus olhos. Voltou ao meio do quarto e observou bem as formigas que ainda se encontravam ao pé do gato: eram as mesmas.
—Vejamos — disse, procurando o número da gravura. — Vinte e três?… Vinte e três… Aqui está!… E depois, em voz alta:
—“Termitas phagosarkos” (formiga-branca da América Central)…
Repetiu várias vezes o nome, dando mostras de grande satisfação. —América Central… “Termitas.”
O cachimbo fumegou como uma chaminé vários minutos.
—“Termitas”… América Central… — repetia Stevens, pensativo. — Vejamos se encontramos outras…
Os himenópteros tinham desaparecido. Começou a revolver os papéis, deu uma volta em torno do gato morto. Sem o querer, viu também Lamson sentado sempre à beira da cama, com a cabeça entre as mãos; mas não deu importância ao fato, atribuindo-o à estúpida hostilidade mostrada pelo colega nos últimos quinze dias. Aproximou-se da porta. Aí, caminhando em direção ao papel dos sanduíches, viu outro himenóptero. Era do mesmo tamanho que os demais e esverdinhado também; de modo que não havia razão para confusões.
Amassou o inseto entre os dedos e abriu a porta do quarto. Ficou uns instantes olhando o corredor apenas iluminado Dor uma pequena lâmpada que pendia do teto. Estava para cerrar de novo a porta, quando viu um pequeno ponto surgir da fenda existente entre o umbral e o batente da porta, por detrás da qual a mocinha havia vivido silenciosamente aquelas duas semanas. O pontosinho escuro aproximou-se dele. Atrás desse inseto — já o podia distinguir perfeitamente — vieram outros e mais outros. De modo que as tais formigas chegavam do aposento contíguo, do mesmo aposento ocupado pela pequena morena que eles tinham vigiado por tanto tempo inutilmente… na opinião de Lamson.
Uma pancada seca fê-lo voltar a cabeça. Lamson, tendo deslizado da beira da cama, jazia inanimado sobre o assoalho. Stevens correu em auxílio do colega, colocou-o de novo no leito, umedecendo-lhe, em seguida, o rosto com água fria. Sacudiu-lhe com força as mandíbulas, finalmente. Mas Lamson não parecia querer despertar.
—Que diabo terá ele? — ruminava Stevens, alarmado.
Lamson estava extraordinariamente pálido e com feições dolorosamente contraídas.
—Céus! — exclamou para si Stevens, no tom de quem fez uma grande descoberta. — De onde virão esses monstros?
Aproximou-se de novo da porta e saiu de ponta de pés pelo corredor. Chegou-se à porta da vizinha. Reinava lá dentro, como sempre, o mais profundo silêncio. Examinou a fechadura; era indubitavelmente uma fechadura nova. Bateu, e colocou a mão no gatilho do revólver, disposto ao que desse e viesse. Mas o chamado não obteve resposta alguma.
Ficou suspenso alguns minutos. Nenhum ruido veio perturbar a absoluta serenidade do ambiente. Decidiu, então, tentar a sorte. A fechadura parecia nova, mas o batente era, evidentemente, velho. Pouca ou nenhuma resistência podia opôr. Tomou distância, tanto quanto lhe permitia a largura do corredor, e lançou-se com força de encontro à porta. Tal como previra, esta cedeu, e ele foi cair de joelhos no interior da peça.
O único ocupante do quarto, um homenzinho de rosto amarelado, assentado de cócoras sobre uns almofadões, levantou-se, mas sem demonstrar nenhuma surpresa nem alarme. Stevens também se ergueu.
—Eu o estava esperando — disse Yucatán Tonio, porque era ele, sorrindo calmamente. — A polícia, não é verdade? É a mim que procura? Ou procura, por acaso, o gigantesco Purdy?
Stevens nada respondeu, absorto na contemplação de uma mesinha situada no meio do quarto, sobre o qual ardia uma pastilha que enchia todo o aposento de um cheiro penetrante. Mas, para lá da espiral de fumaça rosada, se via uma pilha, simetricamente disposta, de ossos brancos; coroava a pilha um crânio que parecia olhar sorridente do fundo das órbitas vazias e profundas. O espetáculo tinha alguma coisa de grotesco e de macabro ao mesmo tempo; Stevens, ainda que possuindo nervos bem fortes, não pôde subtrair-se a um movimento de involuntário horror.
Yucátan Tonio estendeu, então, a mão para os ossos, e, à maneira de apresentação, disse:
—O senhor Purdy…
Tornou a sentar-se nos coxins. Aquele homem estava louco ou, seguramente, não tinha o que chamamos sensibilidade.
—Ele matou a minha pequena Tonia — explicou. — Esta manhã, acabei com ele. Reservei o cérebro para o último lugar, mas as formigas não o querem devorar. Engolem com demasiada lentidão. Parece que não gostaram do cérebro de Purdy... Creio que algumas se escapam pelo assoalho. Foi preciso espalhar por ele um pouco de mel..., para que o pudessem tragar... Só assim darão cabo dele... Prenderam a pequena Nita?... Disse-me ela que o senhor e o seu companheiro a seguem todos os dias... Ah! Mas é hábil a pequena Nita!... Auxiliou-me bastante para atrair Purdy, porque é irmã de Tonia... Trouxe-a da América... Custou- me tudo isso muito dinheiro, mas, graças a Deus, acabamos com Purdy. Quer ver as formigas?
Sem esperar resposta, tirou uma pequena lata de folha de Flandres de sob a cama; os rebordos estavam untados de mel. Abriu-a com grandes precauções.
— Olhe! — disse, suavemente.
Mas Stevens não se moveu do lugar onde estava, profundamente impressionado.
*
Não condenaram a pequena Nita, se bem que tivesse atraído Purdy ao próprio sítio onde a vingança se devia consumar, e assistisse impassível ao macabro festim das formigas. E Tonio, tampouco, foi condenado à pena capital. Além disso, ele mostrou sempre uma absoluta indiferença pela espécie de castigo que lhe impuseram; dir-se-ia até que experimentava certo prazer diante da perspectiva de ser condenado à morte. Perdida Tonia, o mundo significava muito pouca coisa para ele…
Após vários dias, passados entre a vida e a morte, Lamson decidiu não morrer. Pensa, todavia, que os mais ineptos têm sempre uma sorte espantosa. E aí estava o caso desse bruto Stevens, promovido agora ao posto de sargento detetive.
Fonte: “Fon-Fon”, 29 de outubro e 5 novembro de 1932.
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