ANGÉLICO CELESTE - Conto Clássico de Terror - Rui Miranda e Silva
ANGÉLICO CELESTE
Rui Miranda e Silva
(Séc. XX)
Há cinco anos eu o conheci.
Angélico Celeste era um cidadão virtuoso, funcionário cumpridor dos deveres, pacífico, ordeiro e um bom cristão. Tinha, porém, uma mania esquisitíssima: — nunca havia deixado de fazer quarto a um defunto.
Conhecesse ou não a família do morto, fosse ou não rico ou pobre, aristocrata ou plebeu, sentado em uma cadeira ao lado do caixão estava sempre Angélico Celeste.
Com o seu semblante triste, os olhos pretos, pequenos, amendoados, constantemente úmidos, o nariz fino e comprido, um bigode ralo e mal aparado sobre uma boca rasgada, o queixo longo e pontudo sem o menor sinal de barba, metido em uma roupa preta, que brilhava de tanto ser passada a ferro, parecia um parente próximo do falecido. Tanto assim que quase todos os visitantes lhe davam pêsames, tomando-o por membro da família enlutada. Porém, ele, que sempre fora de poucas palavras, recebia as condolências contrito, evitando dar explicações, e continuava sentado, velando o morto.
E assim, assinando religiosamente o ponto na repartição e à noite velando os defuntos, Angélico Celeste levava pachorrentamente a sua vida.
Todos na cidade sabiam de sua mania, mas ninguém o incomodava por isto. Ela não era, porém, oriunda de seus sentimentos de compaixão. O prazer mórbido que sentia em permanecer junto de um cadáver, a alegria íntima que experimentava em olhar um defunto estendido no caixão, tendo em volta a família em pranto, o gozo que lhe causava o cheiro do incenso, o trepidar das chamas das velas em torno do esquife, o perfume forte das flores das coroas eram a manifestação de uma perversão doentia do cérebro e do espírito.
E foi isto que pude constatar quando, certo dia, um parente seu o trouxe ao meu consultório. Perguntando-lhe sobre fatos de sua vida passada, Angélico Celeste contou-me o seguinte: —Era ainda criança e morava com sua família nas vizinhanças do cemitério da cidade, que ficava atrás do adro da matriz.
Sempre muito medroso, tinha receio enorme de passar a noite pelas redondezas do cemitério.
Certa vez, foi jantar com sua madrinha e, durante a refeição, só se falou em aparições, fantasmas e almas do outro mundo. Todos os presentes contaram histórias horripilantes…
Como não encontrasse companhia, teve que voltar sozinho para casa.
Caminhava, olhando de um lado para outro, a passos largos, quase correndo, com o coração a saltar pela boca.
Cada sombra lhe parecia um duende, cada árvore se assemelhava a um espectro enorme, que, ao mais leve balouçar dos seus galhos, parecia estender seus largos braços para ele.
Desvairado, se pôs a correr ladeira acima. Um arrepio febril apoderava-se de seu corpo, não um arrepio de doença, mas um arrepio de angústia e medo. Havia chegado ao adro da igreja, bem defronte do portão do cemitério, quando um clarão brilhou em sua frente. As lages dos túmulos se abriram e centenas de defuntos, velhos, homens, mulheres, crianças, abandonando os jazigos, caminharam para ele… Estacou de súbito, quis gritar, mas não pôde; quis mover-se, mas não pôde… A terra, sob os seus pés, começou a girar, rápida como um pião, e caiu de bruços no chão, desmaiado… E, durante três dias, permaneceu inconsciente.
Após eu lhe ter aconselhado uma longa viagem, distrações e repouso, ele retirou-se e durante muito tempo fiquei sem ter notícias de Angélico Celeste.
Porém, depois deste dia, a sua figura não saía de meu pensamento. Uma influência misteriosa transformou o meu bem-estar em um desespero permanente. De noite, de dia, em casa ou no consultório, vinha-me sempre a lembrança de Angélico Celeste e de sua perversão doentia. Tinha sempre a horrível sensação de que seu espírito se associara ao meu, de que sua mania iria acabar também me pervertendo, de que meu rosto ia aos poucos se assemelhando ao dele. Decididamente, estava ficando doente. Já estava com receio de endoidecer, quando resolvi fazer uma viagem pelo interior.
Voltei forte e perfeitamente curado e, durante muito tempo, não mais ouvi falar de Angélico Celeste.
Encontrei-o dois anos mais tarde na casa de um colega que havia falecido, sentado ao lado do caixão, com os olhos fixos no cadáver com o mesmo semblante doentio. Quis aproximar-me, porém senti um frio percorrer a espinha, apanhei o chapéu e saí.
Três dias depois, soube que Angélico Celeste havia falecido. Um automóvel em disparada o atropelou na saída da secretaria, e uma fratura na base do crânio lhe causara morte quase instantânea.
Resolvi fazer uma visita à sua família. Já passava de 23 horas, mas a casa ainda estava cheia. Nos cantos, nas cadeiras encistadas na parede, os visitantes conversavam distraídos, em voz baixa, quase em murmúrio. Nos quartos dos fundos, as pessoas da família choravam, lamentando a sua morte prematura. No centro da sala, rodeado por seis velas que ardiam, o caixão, com a sua magnificência fúnebre, e dentro dele o corpo sem vida de Angélico Celeste.
Batia o relógio a última pancada da meia-noite, quando, ao sair, voltei-me na porta para despedir-me de uns amigos… Um frêmito de frio, tangenciando a minha pele, penetrou em meus nervos, apossou-se de minha alma. Uma forte sensação paralisou os meus movimentos. Fechei os olhos. Quase caí. Reabri novamente os olhos e vi… e vi, no meio da sala, sentado em uma cadeira, junto do caixão, com sua roupa preta surrada, Angélico Celeste, que fazia quarto ao seu próprio cadáver.
Hoje, aqui no hospital onde estou internado desde aquele tenebroso dia, ninguém acredita no que eu vos contei. Porém, podeis estar certos de que eu vi, com estes olhos que um dia a terra há de comer, Angélico Celeste velando o seu próprio caixão.
Fonte: “O Cruzeiro”/RJ, edição de 3 de junho de 1944.
Ilustração: Frank Holl (1845 – 1888).
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