O ESPECTRO - Conto Clássico Sobrenatural - Medeiros e Albuquerque

O ESPECTRO

Medeiros e Albuquerque

(1867 – 1934)


A casa da fazenda era realmente um palácio, onde havia todo o conforto moderno. Havia até muito mais do que conforto: chegava-se ao luxo. O dono da casa dizia sempre que era parente intelectual de um personagem de Eça de Queiroz. Por isso, não faltavam em sua residência mesmo as mais recentes descobertas da ciência moderna.

Ao lado do edifício central via-se um barracão enorme, perfeitamente bem-adaptado, onde estava instalado o cinematógrafo, que o pessoal de trabalhadores podia apreciar todas as noites. Havia, também, tanto na morada dos proprietários como em uma grande sala de baile dos empregados, dois grandes aparelhos de radiotelefonia. Ao som de um deles, ou de uma excelente vitrola, dançava quem queria.

O fazendeiro estava convencido de que aquele “cinema nosso de todos os dias”, como ele lhe chamava, e aquela sala de baile para os empregados garantiam-lhe melhor a regularidade do serviço do que toda a demais fiscalização. A ideia de serem dispensados daquela fazenda era para os trabalhadores um castigo pavoroso.

A casa não tinha telhado: a parte superior constituía um magnífico terraço.

Nele, nessa noite admirável de luar, estava reunida toda a família e um amigo, que aí viera passar alguns dias.

Alguém tinha falado de fantasmas e de casas mal-assombradas. Todos haviam gracejado com isso. Só o amigo da família, o Dr. Sabugosa, não acompanhou a caçoada geral:

—Na maioria, na quase totalidade dos casos, estou convencido de que se trata de abusões e crendices sem valor. Mas há factos autênticos que não sei como se explicam.

—Qual, doutor! Afinal, quando a gente vai ver quem é o narrador desses tais casos autênticos sempre que é alguma pessoa ou ignorante ou crédula.

— Se não me querem dar também esses qualificativos, referir-lhes-ei um episódio que observei pessoalmente.

Todos ficaram na expectativa. O médico tomou então a palavra:

—Sabem que cliniquei aqui por estas redondezas mais de vinte anos. Clínica da roça é uma coisa terrível, que não tem dia nem noite. Houve, decerto, muitas semanas em que passava mais tempo a cavalo pelas estradas que em casa. Tinha mesmo aprendido alguma coisa com Napoleão…

—Oh, senhor! —exclamou o dono da casa, gracejando. — Matava assim tanta gente!

—Não seja perverso, corrigiu, sorrindo, o médico. Diz-se que Napoleão dormia admiravelmente bem a cavalo. Eu fazia correntemente essa proeza.

—Foi então em sonhos que você viu a tal história autêntica que nos vai contar.

— Ouça até o fim. Eu viajava sempre com um pajem, que me servia via de auxiliar quando se tomava necessário fazer pequenas operações. Mulatinho inteligente, aprendera bem cedo os preceitos da assepsia. Muitas vezes, vendo que eu estava em pleno sono, tomava a rédea do meu cavalo e levava-me para onde eu devia ir.

Certa ocasião, entretanto, nós marchávamos bem acordados, conversando. Era tarde; quase duas horas da madrugada. Em um ponto da estrada, ele me disse apenas que convinha mais tomar por um atalho, no qual foi entrando. Mas eu conhecia bem o caminho e estranhei. Por que aquele desvio? O rapaz me respondeu que aquela era a noite do ‘cavalo de seu Pedro’ e valia mais a pena não passar por perto da casa mal-assombrada, para onde estávamos andando.

Protestei. Era até uma excelente ocasião para ver o famoso cavalo, que, disse-lhe eu, se em alguma parte estava galopando, era nos miolos dos malucos.

O pajem obedeceu-me; mas não disse nem mais uma palavra.

O fato, a que ele se referia, era sabido de toda a vizinhança. Na casa a que aludia tinha outrora morado um fazendeiro riquíssimo Juntava a ser muito rico ser também muito pouco moralizado. Era frequente que organizasse em casa orgias colossais, em que ficava até alta hora da noite. Certa vez, quando precisamente estava em uma dessas orgias, ouviram o galope furioso de um cavalo que estacou de repente junto à casa. Todos se precipitaram para ver de quem se tratava. Era o cavalo do filho do fazendeiro, belo rapaz de 23 anos, que o pai adorava.


*


A presença do cavalo sem o seu cavaleiro importava em um mau sinal. Onde ficara o moço? Propuseram ao fazendeiro montar-se e tomar para onde o animal guiasse. Mas o fazendeiro, que já estava bêbedo, opôs-se. Deu um murro sobre a mesa, com tanta força que muitos copos caíram, e gritou:

— Daqui ninguém sai!

O cavalo, à porta, batia com as patas e, de espaço a espaço, relinchava, como a pedir, a suplicar socorro.

Um dos que estavam perto do fazendeiro, impaciente, com um desejo louco de verificar o que havia, propôs-lhe então uma aposta: se ele seria ainda capaz de tomar de um trago, um grande copo de vinho. O fazendeiro aceitou o desafio e bebeu. Daí a poucos momentos estava caído por terra, inteiramente ébrio. Era o que queria o desafiador, que imediatamente se precipitou, tomou um cavalo e, aproximando-se do outro, viu que este se embrenhava pelo mato.

Acompanhou-o e, dentro em breve, encontrou o moço, filho do fazendeiro, morto, assassinado, com o corpo crivado de balas, as roupas despedaçadas. Perto dele agonizava ainda seu pajem, que pôde informar o que se tinha passado. O moço havia sido atacado por ladrões. Conseguira ganhar um lugar de onde, por cerca de duas horas, lhes fez frente. Se, durante esse prazo, tivesse vindo o auxílio, ele teria sido salvo. Mas o auxílio tardou, os ladrões tiveram tempo de destacar alguns para atacar por trás e o rapaz acabou sucumbindo.

Quando, no dia imediato, o fazendeiro soube do fato, ficou fulminado. A única pessoa de família que tinha era exatamente esse filho, que, por culpa de sua embriaguez, acabara tão tragicamente.

Nada mais lhe restava. Envelheceu bruscamente. Ficou sendo um pobre desgraçado. Distribuiu tudo o que possuía por seus empregados e conservou apenas a casa, em que, aliás, pouco tempo morou, porque pouco mais viveu.


*


Um dos que ouviam o médico atalhou:

—Até aí, não há nada de outro mundo.

O médico respondeu:

—Não há, de fato. Mas daí por diante, na noite de 16 de junho de cada ano, aniversário do fato horrível, todos veem chegar até defronte da casa um grande cavalo branco, que aparece correndo, pára, demora-se perto de duas horas e desaparece então, não se sabe como.

—E o doutor viu?

—Perfeitamente. Eu segui com o meu pajem, que ia cabisbaixo. Justamente quando me aproximava da casa, vi nitidamente um cavalo branco, que chegava a todo galope. O pajem deu um grito e teve um movimento de recuo. Mas eu, que estava absolutamente convencido de que se tratava de um cavalo real, como outro qualquer, sem nada de extraordinário, dirigi-me para o animal. Só verifiquei que esse cavalo real era inteiramente irreal quando estendi a mão para tomá-lo pelo freio, que eu via claramente ao meu alcance, e não achei nada. Senti apenas que minha mão passava por um lugar gelado: e sempre, de fato, que eu punha a mão onde estava o espectro do animal, era como se a metesse numa zona de ar glacial, de um frio penetrante.

Repeti a experiência várias vezes — o que mostra como eu estava acordado e calmo. Meu pajem tremia, como se estivesse com um acesso de impaludismo. Ao fim de algum tempo, de repente, o cavalo sumiu-se.

Alguém comentou:

—Olhe que os médicos, meu caro doutor, não estão isentos de ter alucinações.

—Eu sei — volveu o médico; — mas, um ano depois, convidei alguns amigos sem lhes dizer nada e garanti-lhes que desejava fazer-lhes uma surpresa. Fomos à noite, cercamos o lugar e ficamos esperando. Esperando o quê, nenhum deles sabia. Um do grupo acabava de protestar contra a maçada que eu lhes estava dando, quando todos, quase ao mesmo tempo, perguntaram espantados:

—Que cavalo é aquele?

O cavalo acabava de aparecer.

—Vão espantá-lo! — disse-lhes eu.

E todos se precipitaram contra o animal-fantasma. Mas ninguém achava resistência alguma no ar. Apenas os que passavam através do espectro acusavam uma sensação de frio intenso.


*


No momento em que o médico acabava de narrar esse fato, a voz do alto-falante, que uma das moças da casa se levantara para ligar, anunciou que de Buenos Aires iam tocar um foxtrote. E a música começou, enquanto a moca dizia:

—Qual, doutor! Neste tempo em que a gente aqui, tão longe, pode ouvir pelo radiotelefone foxtrotes, tocados em Buenos Aires, não há mais almas do outro mundo.

E acrescentou:

—Pode espantar o seu cavalo, que ele não volta mais...


Fonte: “Primeira”/RJ, edição de 25 de outubro de 1927.

 

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