WILLIAM WILSON - Conto Clássico Sobrenatural- Edgar Allan Poe
WILLIAM WILSON
Edgar Allan Pöe
(1089 – 1849)
Tradução de autor anônimo do início do séc. XX
Suponhamos, por um momento, que me chamo William Wilson. O meu verdadeiro nome não deve manchar esta lauda branca. Demasiadamente tem ele sido o horror e abominação do mundo; vergonha e opróbrio da minha família! Não terão os ventos horrorizados levado a sua infâmia incomparável até as regiões mais longínquas do globo.
Sou o mais abandonado de todos os proscritos. O mundo, as suas honras, as suas aspirações, tudo acabou para mim!
E, entre as minhas esperanças e o céu, paira uma nuvem negra, densa, enorme.
Ainda que me fosse possível, não condensaria nestas páginas todas as recordações dos meus anos de misérias e de crime irremissível. Este último período de minha vida atingiu subitamente tais proporções de torpeza que seria tão horrendo como difícil descrevê-lo O que desejo é determinar simplesmente a origem desse súbito desenvolvimento de perversidade. Em geral, o homem corrompe-se gradualmente; mas a virtude abandonou-me num momento, por uma vez, como um manto que se me desprendesse dos ombros.
Permiti que vos conte o caso, o fatal acidente que deu origem a essa maldição. A morte aproxima-se e a sombra que a precede exerceu já no meu coração uma influência benéfica de arrependimento e serenidade.
Tendo em breve de atravessar o sombrio vale, aspiro à piedade (ia dizer à simpatia) dos meus semelhantes. Desejaria convencê-los de que fui arrastado por circunstâncias superiores à resistência humana. Desejaria que descobrissem, no vasto estendal de crimes que vou fazer, a fatalidade perseguindo-me. Que concordassem (e porventura concordarão) que nunca, num mundo cheio de tentações, apareceu alguma igual a esta. E que jamais criatura humana sucumbiu vítima de torturas semelhantes!
Verdade, verdade, tudo isto não será um sonho? Não morrerei acaso vítima do horror e do mistério da mais estranha de todas as visões sublunares?
Sou descendente de uma raça de há muito conhecida pela força de imaginação e pela extrema irritabilidade de temperamento, e, desde criança, confirmei o caráter tradicional da minha família, que a idade desenvolveu e que mais tarde veio a prejudicar-me dum modo tão terrível como extraordinário.
Meus pais, espíritos fracos e sofrendo do mesmo mal, pouco ou nada podiam fazer para corrigir os meus maus instintos. Contudo, fizeram algumas tentativas, fracas, mal orientadas, que não deram resultado algum, ou, o que é mais verdade, dando o pior resultado. Desde então, eu dava a lei em casa; e, na idade em que as crianças não saem do regaço materno, fui entregue ao meu livre arbítrio, senhor de todas as minhas ações.
As primeiras recordações da minha vida de estudante ligam-se a uma grande e exótica casa, numa monótona aldeia inglesa semeada de grandes árvores e de edifícios antiquíssimos. Era realmente fantástica aquela venerável aldeia, bem própria a excitar a imaginação. Mesmo neste momento, sinto no espírito a sensação de frescura das suas avenidas, respiro as emanações das suas matas, estremeço, com indizível voluptuosidade, à recordação das badaladas sonoras do sino quebrando, de hora a hora, com a sua plangência, a quietação da atmosfera pardacenta que envolvia o campanário gótico da igreja.
A evocação destas pequenas coisas constitui, hoje, o único prazer que me é dado sentir. Imerso na desgraça, como estou, desculpar-me-ão se eu procurar um lenitivo, bem passageiro, nestas minúcias pueris. Além disso, por vulgares e insignificantes que pareçam, não podem deixar de ter, na minha imaginação, uma importância circunstancial por causa da sua íntima conexão com a época em que distingo agora os primeiros avisos do destino, que depois me envolveu tão profundamente na sua sombra. Deixai-me, pois, recordar.
Como dizia, a casa era velha e irregular; a granja grande, cercada por um alto muro de tijolos encimados por cacos de garrafa cravados na argamassa. Aquela muralha, bem própria de uma prisão, marcava os limites do nosso domínio.
Só saíamos dali três vezes por semana; uma a sábados à tarde, um passeio curto e fastidioso pelos campos, alinhados e sob vigilância dos prefeitos, e duas ao domingo, quando íamos arregimentados aos ofícios da manhã e da tarde à igreja da aldeia.
O oficiante era o diretor do colégio. Com que profundos sentimentos de admiração e dúvida o contemplávamos do nosso lugar reservado, quando subia ao púlpito com solenidade e passo vagaroso! Aquela venerável figura, de aspecto tão modesto e bondoso, de vestes ondeantes, a cabeleira empostada, ereta, podia ser o mesmo homem que, pouco antes, carrancudo e resmungão, com o fato sujo de tabaco, fazia executar, sob a ameaça da palmatória, as draconianas leis do colégio? Oh, colossais paradoxo, cuja monstruosidade não tem solução!
Mas voltemos ao edifício.
Num ângulo da parede maciça, havia uma solidíssima porta com varias fechaduras e terminada por uma ferragem dentícula. Essa porta (que sentimentos profundos ela inspirava!) abria-se apenas para as três saídas e entradas a que aludi. Então, no ranger dos seus fortes gonzos, achávamos uma superabundância de mistério, todo um mundo de solenes observações e de graves meditações.
A granja era de forma irregular e muito dividida. Uma parte dela, das maiores, era destinada ao nosso recreio. Era um pátio situado na traseira da casa, areado, sem arvoredo nem bancos. À frente do edifício havia um pequeno jardim, plantado de buxo e outros arbustos; mas esse oásis só nos era franqueado em ocasiões solenes: à entrada no colégio, quando da saída definitiva, ou quando, tendo sido convidado por parente ou amigo, o aluno saía temporariamente nas férias do Natal.
E a casa! Que curiosa construção! A meu ver, que verdadeiro palácio de mágica! Que sem-número de recantos e que labirintos de subdivisões! Em qualquer ponto que nos achássemos, era difícil dizer ao certo em que andar estávamos. De sala para sala havia três ou quatro degraus a subir ou descer. Depois, os compartimentos laterais eram inumeráveis, obrigando a tantas voltas que as nossas ideias mais exatas, relativamente ao conjunto da edificação, não eram mais nítidas do que as que tínhamos do infinito. Durante os cinco anos que lá residi, nunca me foi possível determinar exatamente a situação do dormitório que eu ocupava com mais dezoito alunos.
A sala de estudos era a maior de todas e eu julgava que fosse a maior de todo o mundo. Muito comprida, estreita, com tetos baixos e janelas ogivais. A um canto, donde emanava o terror, havia um recinto quadrado de oito ou dez pés de espessura, que representava o “Sanctum” do diretor, reverendo Dr. Bransby, durante as horas de estudo.
Noutros dois cantos havia outros compartimentos análogos, que inspiravam menos terror: um destinado ao professor de Belas Artes e outro ao professor de Inglês e Matemática. Espalhados pela casa, inumeráveis bancos e estantes carregadas de velhos livros empoeirados.
Numa das extremidades da sala estava um balde d’água e, na outra, um enorme relógio. Encerrado naquele venerável colégio, passei, contudo, sem aborrecimento nem dissabores, o terceiro lustro dá minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior acidentado para se entreter ou divertir; por isso, na aparente monotonia do colégio, encontrei impressões mais vivas e mais intensas que todas as que o meu temperamento procurou mais tarde na devassidão e no crime.
O início de meu desenvolvimento intelectual foi extraordinário. Geralmente, os acontecimentos do período infantil deixam-nos apenas impressões mal definidas.
Tudo são sombras, reminiscências vagas, confusão de breves prazeres e fantásticos desgostos. Comigo não se deu este caso. É necessário que tenha sentido na minha infância, com a intensidade de um homem-feito, tudo que ainda hoje encontro gravado na memória com traços indeléveis, profundos.
E, contudo, à primeira vista, esses dias não mereciam a menor recordação. O levantar, o deitar, o estudo, as lições, as horas de recreio e passeio, o pátio com os seus folguedos, as suas intriguinhas e nada mais. Mas tudo isso continha imensas sensações, todo um mundo de incidentes, um universo das variadas emoções e excitações. Que belo tempo, esse!
O meu temperamento entusiasta e ardente marcou-me um lugar à parte entre os meus companheiros e, pouco a pouco, deu-me um grande ascendência sobre todos os que não eram mais velhos que eu, com exceção de um. Era um aluno que, não sendo meu parente, tinha, contudo, o mesmo nome e sobrenome. Só o meu homônimo, entre todos os que pertenciam à minha classe, rivalizava comigo nos estudos, nos jogos e nas questões que se levantam à hora do recreio. Não ligava importância ao que eu dizia e não se submetia à minha vontade. Numa palavra, contrariava o meu absolutismo em todas as circunstâncias. Não há no mundo despotismo superior ao que uma criança enérgica exerce sobre os seus camaradas tímidos.
A rebelião de Wilson era-me fonte perene de desgostos, tanto mais que, apesar da sobranceria com que afetava tratá-lo, no fundo recreava-o; não podia deixar de encarar essa igualdade que mantinha comigo como prova de verdadeira superioridade, porque, por minha parte, não era sem grande esforço que conseguia manter-me ao seu nível. Contudo, essa igualdade, ou melhor dizendo, essa superioridade só era reconhecida por mim: os outros, com uma inexplicável cegueira, não davam por ela.
William não parecia ter a ambição que me impelia a dominar e a energia donde provinha a minha autoridade. Dir-se-ia que o único móvel da sua rivalidade era o desejo de me contradizer, de me contrariar, de me apoquentar, conquanto eu não pudesse deixar de constatar, por vezes, com espanto, raiva e humilhação, que o meu rival adoçava as suas impertinências com uma afetuosidade irritante. Não podia explicar a mim próprio semelhante procedimento, que apenas podia atribuir à estulta presunção de superioridade.
A nossa homonímia, ligada ao fato de termos ingressado ao mesmo tempo no colégio, dera aos nossos condiscípulos a ideia de que éramos irmãos. Geralmente, os mais velhos não se preocupavam muito com a vida dos mais novos. Como disse, William não era, nem no mais remoto grau, aparentado comigo. Mas se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos, porque, depois de ter saído do colégio, soube, casualmente, que o meu homônimo viera ao mundo precisamente no mesmo dia do meu nascimento.
É inacreditável que, apesar da rivalidade de Wilson e do seu irritante espirito de contradição, não chegássemos a odiar-nos absolutamente. É certo que, todos os dias, surgia entre nós uma questão que terminava por Wilson conceder-me a palma da vitória publicamente, sem, contudo, deixar de me fazer sentir que ele é que a merecia. No entanto, dois sentimentos distintos — em mim o orgulho; nele, a dignidade — mantinha-nos nos termos da conveniência. Ao mesmo tempo, a paridade dos nossos caracteres despertara era mim um sentimento que, sem aquela situação hostil, ter-se-ia convertido em amizade. De fato, é-me difícil definir o verdadeiro sentimento que nutria por ele. De tudo isto havia um pouco: animosidade que não chegava a ser ódio; estima, respeito bastante, receio e uma enorme e sobressaltada curiosidade.
Em consequência dessa ambiguidade de relações, todos os meus ataques contra ele tinham mais o caráter irônico e trocista que hostilidade. Mas os meus esforços neste sentido não eram coroados de êxito, por mais engenhosos que fossem; porque o meu homônimo era daquela austeridade plácida e reservada que dá aos que possuem o privilégio de ferir os outros sem exporem o seu calcanhar de Aquiles. Só lhe descobri um ponto vulnerável: e esse mesmo era um defeito físico que, precedendo talvez de uma enfermidade de construção, teria sido respeitado por outro antagonista menos encarniçado do que eu. O aparelho vocal do meu homônimo era fraco, impedindo-o de elevar a voz. Era dessas imperfeições que eu tirava as minhas pequenas desforras.
William usava de diversas represálias, mas havia especialmente uma que me irritava muito. Não sei como chegou a perceber semelhante futilidade produzia em mim tamanho efeito. Mas, desde que o descobriu, foi o seu gênero de tortura predileto.
O meu sobrenome, tão vulgar, e o meu nome próprio, trivialíssimo e plebeu, sempre tinham sido causa de profundo desgosto para mim. Ora, quando, no mesmo dia de minha chegada, se apresentou no colégio um segundo William Wilson, senti-me logo indisposto com ele, simplesmente por assim se chamar, porque, por causa dele, eu ouviria chamar o dobro de vezes esse nome que me humilhava, porque estaria constantemente na minha presença, porque a sua vida, na monotonia colegial, seria a cada passo confundida com a minha. E por tudo isto aborreci ainda mais o meu nome.
Esta irritação aumentava com cada circunstância tendente a evidenciar qualquer semelhança física ou moral entre mim e o meu homônimo. Então eu ainda não tinha descoberto o notável fato da paridade das idades; mas éramos da mesma altura e achava até uma certa semelhança em nas nossas fisionomias, o que me contrariava muitíssimo. O crer-se geralmente que éramos parentes exasperava-me também. Enfim, nada havia que me encolerizasse mais (apesar dos meus esforços para o ocultar) do que qualquer alusão à nossa semelhança física e moral ao nosso suposto parentesco. Contudo, nada me levava a crer que essas analogias tivessem dado lugar a comentários ou houvessem sequer sido apercebidas pelos nossos companheiros de classe. Que Wilson as observasse com tanta atenção como eu, era natural; mas o que não era natural era o ter descoberto, em tais circunstâncias, um tão rico manancial de contrariedades para mim.
Tendo, pois, percebido quanto essas semelhanças me desagradavam, o meu homônimo aumentava-as ainda, imitando-me com inexcedível habilidade. Reproduzia-me os gestos e as palavras; vestia-se como eu; arremedava-me o andar, as maneiras e até a própria voz, a despeito do seu defeito constitucional. Não podia imitar as minhas notas altas, mas o timbre e as inflexões eram iguais. Quando falava baixo, a sua voz dir-se-ia o eco da minha.
Não tentarei dizer até que ponto aquele retrato (pois não se tratava de uma caricatura) me afligia. O que me consolava era que só eu notava a imitação; de forma que só tinha a suportar os sorrisos sardônicos de Wilson que, satisfeito de produzir no meu coração o efeito desejado, parecia deleitar-se intimamente com a punhalada que me dava, sem pensar no aplauso de outrem, que a sua habilidade teria facilmente conquistado. Como é que os nossos companheiros não compreendiam, não lhe percebia, as intenções, não partilhavam daquela humilhante caçoada? Durante alguns meses de inquietação, isto foi para mim um enigma indecifrável.
Já me referi aos insuportáveis ares de proteção que ele tomava para comigo e da sua intervenção em quase todas as minhas vontades. Essa intervenção exercia-se às vezes sob a forma de conselho, que era dado com rodeios, como que insinuado, e que eu recebia com má vontade, à medida que o tempo ia correndo. Contudo, nesta época já longinquá, é de justiça confessar que todas as sugestões do meu rival eram ajuizadas e superiores à sua idade, em geral destituídas de reflexão e experiência; que o seu bom senso, o seu talento e o seu conhecimento do mundo estavam muito acima dos meus; e que eu seria hoje uma criatura melhor e, portanto, mais feliz, se tivesse seguido os conselhos comportados nessas atiladas sugestões que, então, me provocavam tanto ódio e desdém.
Por fim, revoltei-me formalmente contra a sua odiosa vigilância, detestando cada vez mais o que eu considerava uma intolerável insolência. Como disse, nos primeiros anos, meus sentimentos para com ele poderiam, noutras circunstâncias, ter-se transformado em amizade; mas, durante os últimos meses que passei no colégio, apesar da importunidade das suas maneiras habituais ir diminuindo consideravelmente esses sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham derivado para o ódio. Creio que lho demonstrei muito claramente uma vez e, desde então, Wilson evitou-me ou fingiu evitar-me.
Foi pouco mais ou menos nessa época, se não estou em erro, numa violenta discussão que tivemos, durante a qual ele perdeu a habitual reserva, que descobri, ou julguei descobrir, na sua voz, nos seus modos e na sua fisionomia, alguma coisa que me era muito familiar. Essa descoberta fez-me primeiro estremecer, trazendo-me ao espírito visões obscuras da minha meninice, recordações vagas dum tempo que a memória não podia alcançar.
Era como que uma ideia extravagante e insistente de ter visto já o ser que me falava numa época remota. Essa ilusão, no entanto, desvaneceu-se rapidamente; refiro-me a ela simplesmente para determinar o dia da última discussão que tive com o meu estranho homônimo.
A velha casa do colégio compreendia, nos seus inumeráveis compartimentos, muitas salas amplas, que comunicavam entre si e serviam de dormitório à maioria dos alunos. Além disso, havia, como era natural em prédio tão mal dividido, muitos cantos e desvãos, que o espirito econômico do Dr. Bransby tinha transformado em dormitórios; mas, como eram pequenos, não podiam comportar mais de uma pessoa. Um desses cacifos era ocupado por Wilson. Uma noite, no termo do meu quinto ano, depois da altercação a que me referi, levantei-me, enquanto todos dormiam, peguei num candeeiro e dirigi-me cautelosamente por um labirinto de estreitos corredores à alcova do meu rival. Havia muito que projetava fazer-lhe uma partida real, superior às que até então lhe tinha feito e das quais não tirara resultado algum. Nessa noite, eu tinha resolvido pôr meu plano em execução, fazendo-lhe sentir toda a má vontade que me animava contra ele.
Quando cheguei à alcova, entrei sem fazer ruído, deixando a luz à porta, e avancei até sentir a sua tranquila respiração. Tendo adquirido a certeza de que dormia profundamente, voltei à porta, peguei no candeeiro e aproximei-me da cama. As cortinas estavam corridas. Ao abri-las com precaução, a luz bateu de chapa no adormecido e o meu olhar incidiu na sua fisionomia. Senti um arrepio; o coração palpitou-me violentamente, os joelhos vergaram-se; senti-me horrorizado. Respirei aflitamente e aproximei mais a luz. Aquelas feições eram mesmo de William Wilson? Eram, sim. Que havia, pois, de extraordinário no seu semblante para produzir em mim tal impressão? Contemplei-o durante alguns momentos, trêmulo, convulso; o meu cérebro trabalhava sob a ação de um turbilhão de pensamentos diversos. Ele não era assim, não! Nunca fora assim quando me contrafazia! Estaria verdadeiramente nos limites da possibilidade humana que o que eu via agora fosse unicamente o resultado desse hábito de imitação sarcástica! Trêmulo de espírito, apaguei a luz, saí do quarto e abandonei para sempre o velho colégio.
Tendo passado alguns meses na casa paterna e em completa ociosidade, matriculei-me no colégio de Eton. Esse lapso de tempo bastara para dissipar as recordações do colégio de Bransby, ou, pelo menos, para modificar muito os sentimentos que tais recordações me inspiravam. O motivo que me levara a abandonar o colégio parecia-me, agora, de pura imaginação. A realidade, a face trágica do caso, tinha desaparecido completamente. Quando me lembrava de tal aventura, admirava-me até onde pode chegar a credulidade humana, e motejava da grande força de imaginação que tinha herdado de meus ascendentes.
Ora, a minha vida em Eton não era própria a diminuir aquela espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura, em que mergulhei logo, tudo varreu, absorvendo de uma vez e inteiramente as impressões do passado.
Não pretendo descrever os meus miseráveis desregramentos, que nada podia deter. Tinha passado três anos, perdidos em loucuras, habituando a alma ao vicio, ao passo que o meu corpo se desenvolvera anormalmente Um dia, após toda uma semana de dissipação, convidei alguns colegas dos mais dissolutos a uma orgia no meu quarto. Reunimo-nos a altas horas da noite e aquela miséria devia prolongar-se até o dia seguinte. O vinho corria a jorro, e outros prazeres, ainda mais perigosos, não tinham sido esquecidos. Quando a aurora despontava, o delírio tinha chegado ao auge.
Excitado pela embriaguez e pelo jogo, teimava em fazer um brinde obsceno, quando a minha atenção foi distraída pela entrada precipitada do criado, anunciando-me quem, que parecia muito apressado, pedia para me falar no vestíbulo.
Saí do quarto cambaleando e pouco depois estava no vestíbulo, um recinto baixo e estreito, apenas alumiado pela luz da aurora, que a custo entrava pelas janelas. Aquele que me esperava era um moço da minha estatura, vestindo um fato claro, perfeitamente igual ao que trazia eu nesse momento.
Apenas me viu, aproximou-se, agarrando-me no braço com violência e murmurou-me ao ouvido “Wiliam Wilson”. A minha embriaguez dissipou-se como encanto.
Havia, nas suas maneiras, no tremor da mão erguida diante dos meus olhos, qualquer coisa de sobrenatural.
A frieza, a solenidade, o ar de repreensão das suas palavras, o caráter, a inflexão dessas poucas sílabas tão simples, tão familiares, fizeram-me estremecer como se em mim houvessem produzido a descarga de uma pilha.
Por momentos, o espanto e o terror ensandeceram-me; quando voltei a mim, o rapaz tinha desaparecido.
Aquela singular ocorrência produziu sobre a minha imaginação exaltada um efeito poderosíssimo.
No entanto, esse efeito desvaneceu-se gradualmente.
Pensei, é certo, no caso durante algumas semanas, ora entregando-me a sérias investigações, ora permanecendo dias inteiros presa de ideias mórbidas. A identidade daquele que se intrometia tão obstinadamente na minha vida não me deixava dúvidas.
Mas quem era?
O que era William Wilson, de onde vinha e o que queria?
Nunca pude responder a estas perguntas.
De todas as pesquisas que a seu respeito fiz, só pude saber que um acontecimento inesperado o obrigara a abandonar o colégio na mesma tarde do dia em que eu fugira.
Entretanto, passando um certo tempo, não pensei mais nisso para me entregar inteiramente aos projetos de minha partida para Oxford.
Apenas cheguei àquela cidade, ostentando um luxo gratíssimo ao meu coração, e que a bondade extrema de meus pais me permitia, comecei a competir em prodigalidade com os mais ricos herdeiros do contados da Grã-Bretanha.
Incitado por aquele meio, dei largas à minha natural propensão para o vício, removendo, na loucura dos meus desregramentos, os naturais óbices da honra e da decência.
Seria ocioso demorar-me nos pormenores dessa vida de dissipação. Basta dizer que as minhas dissipações ultrapassaram as de Herodes.
Inventando um sem-número de novas loucuras, acrescentei largamente a lista dos vícios que então imperavam na mais devassa das universidades europeias.
Numa palavra: dominado pela libertinagem, desci a ponto de praticar as mais vis artimanhas dos jogadores profissionais com o fim de aumentar a minha fortuna, já grande, à custa da dos meus camaradas.
A enormidade do atentado, incompatível com todos os sentimentos da honra e da dignidade, era por isso mesmo a minha salvaguarda.
Qual dos meus companheiros, mesmo o mais depravado, teria suspeitado do jovial, do generoso William Wilson, o rapaz mais nobre e mais franco de Oxford, cujas loucuras, no dizer dos seus exploradores, eram apenas expansões duma mocidade irrequieta, cujos erros apenas eram caprichos, cujos vícios desprezíveis não passavam de simples extravagâncias?
Por este processo já eu tinha vivido dois anos, quando ingressou na universidade um rapaz de nobreza recente, chamado Glendinning, que diziam rico como Herodes Ático1 e que não hesitava em gastar a sua fortuna. Relacionei-me com ele e, percebendo que era pouco inteligente, deliberei fazê-lo vítima das minhas habilidades.
Jogamos algumas vezes e a princípio deixei-o ganhar quantias importantes. Por fim, estando o meu plano amadurecido, encontramo-nos em casa dum dos nossos colegas, Preston, conhecido dos dois, sem que eu tencionasse jogar lá. Para salvar as aparências, levei na minha companhia oito ou dez rapazes, preparando as coisas de modo que aparição das cartas resultasse da coisa mais natural do mundo e que a ideia do jogo partisse da própria vítima. Em suma, não esqueci nenhuma das rabulices empregadas em idênticos casos, rabulices tão estúpidas e conhecidas, que é inacreditável ainda haja criaturas de tal simplicidade que nelas se deixem cair. Jogamos o meu jogo favorito, o écarté.
Passava da meia-noite quando consegui ficar com Glendinning como único adversário. Os outros, interessados pelas grandes proporções que a partida ia tomando, faziam círculo junto de nós. Glendinning brilhava, dava cartas e jogava muito nervoso; mas, como eu o fizera beber copiosamente, imaginei que a sua excitação era devida ao álcool. A breve trecho, devia-me uma soma grande. Então, depois de ter bebido mais um copo, fez exatamente o que eu tinha previsto: quis dobrar a parada. Com resistência afetada, que lhe provocou palavras irritadas, vim por fim a ceder. O resultado foi o que devia ser. A vítima caíra no laço; numa hora, a sua divida quadruplicara. Observei, então, com espanto, a horrível palidez que substituíra, subitamente, na fisionomia do meu parceiro, a cor dos congestionados pelo álcool. E digo com espanto porque, segundo as minuciosas informações que tomara acerca de Glendinning, imaginava-o muitíssimo rico, e as somas que ele tinha perdido até ali, conquanto realmente importantes, não podiam, como eu supunha, embaraçá-lo seriamente e menos ainda impressioná-lo àquele ponto. Julguei, ainda, que a sua perturbação era produzida pelo álcool, e não desinteressadamente; mas, para manter perante os outros a reputação do meu caráter, ia insistir para que o jogo acabasse, quando algumas palavras pronunciadas a meu lado e uma exclamação de Glendinning, revelando o maior desespero, me deram a entender que o tinha arruinado completamente. Ser-me-ia difícil dizer o procedimento que teria usado em tal circunstância. A desgraçada situação da minha vítima entristecia e sensibilizava todos os presentes. Durante alguns minutos de profundo silêncio, senti, mau grado meu, que me ruborizava sob os olhares repreensivos que me dirigiam. Confessarei mesmo que senti o coração aliviado dum grande peso à interrupção extraordinária que se seguiu. Subitamente, abriram-se as portas da sala, tão violentamente que todas as velas se apagaram. Mas, antes de se extinguir, a luz permitiu que víssemos alguém que entrava: um homem aproximadamente da minha estatura, embuçado numa capa. Antes de alguém ter voltado a si da surpresa que em todos produzira aquele acidente, ouvimos a voz do desconhecido:
—Meus senhores — disse ele, em voz muito baixa, mas distinta, voz inolvidável, que me gelou o sangue nas veias —, não peço desculpa do meu procedimento, porque apenas cumpro um dever. Não conheceis certamente o carácter desse homem que acaba de ganhar uma quantia importantíssima a Lorde Glendinning. Vou, portanto, propor-vos um meio de chegardes a esse conhecimento. Examinai bem o forro do canhão da sua mão esquerda e alguns baralhos que achareis nas algibeiras de seu casaco.
Mal terminou, o intruso partiu tão bruscamente como havia entrado. Não posso descrever as minhas impressões nesse momento. Senti-me agarrado por todos os meus companheiros. Depois de haver luz, revistaram-me. No forro da manga acharam-me todas as figuras essenciais do “écarté” e nas algibeiras do casaco alguns baralhos de cartas iguais aos que usávamos, dolosamente preparadas.
As mais rudes exclamações de indignação geral ter-me-iam produzido menor impressão que o silêncio de desprezo e os sorrisos de sarcasmo com que acolheram aquela descoberta.
—Sr. Wilson — disse o dono da casa, entregando-me uma capa forrada de excelentes pele —, isto é seu, creio. Espero que compreenderá a necessidade de partir de Oxford. Como quer que seja, tem de sair imediatamente de minha casa.
Aviltado, humilhado como a própria lama, é provável que eu tivesse castigado imediatamente aquela linguagem insultante, se minha atenção não estivesse naquele momento absorvida por um fato tenebroso. A minha capa era riquíssima, forrada de magníficas peles, de um feitio muito original da minha invenção. Por isso, quando Preston entregou-me a capa, que apanhara no chão, vi, com assombro, vizinho do terror, que já trazia a minha no braço, e que aquela, até nos mínimos detalhes, era perfeitamente semelhante. Não perdi, contudo, a serenidade; pu-la sobre a minha sem que os outros dessem por tal e saí. Na madrugada seguinte, deixei precipitadamente Oxford e fugi para o continente, coberto de opróbrio e de terror.
Fugia em vão. O meu destino prosseguiu-me triunfante, provando-se que o seu poder misterioso apenas tinha começado. Mal cheguei a Paris, tive a prova da intervenção de Wilson.
Decorreram anos sem trégua para mim. Ó miserável!
Em Roma, com que insuportável solicitude, com que ternura, esse espectro veio interpor-se entre mim e a minha ambição! Em Viena! Em Berlim! E em Moscou! Onde iria eu que não tivesse, logo, uma razão para o amaldiçoar de todo coração! Tomado de um pânico indescritível, fugia diante de sua tirania como se foge da peste. Fugi até o fim do mundo, mas baldadamente!
E sempre, sempre interrogando secretamente, a alma repetia as minhas perguntas: “Quem é? Donde vem? Que quer ele?”. E analisava minuciosamente as formas, o método, as feições características de sua insuportável espionagem. Mas nem desse ponto achava nada que pudesse servir de base a uma conjectura.
Era verdadeiramente singular que, nos casos em que Wilson se tinha ultimamente atravessado no meu caminho, todos os planos por ele contrariados eram loucuras que, a não serem atalhados, teriam necessariamente tido por remate uma desgraça. Triste indenização de direitos naturais do livre arbítrio, tão tenazmente, tão insolentemente denegados.
Havia muito que o meu perseguidor, conquanto usando sempre vestuário igual ao meu, me aparecia com o rosto velado. Quem quer que fosse esse Wilson, tal mistério era uma afetação ridícula. Pensaria ele que no meu camarada de Eton, no homem que me desonrara em Oxford, no que tinha contrariado a minha ambição em Roma, a minha vingança em Paris, os meus amores em Nápoles, que nesse meu gênio mau eu não reconhecia o William Wilson do colégio, o homônimo, o rival detestado? Não creio.
Até então submetera-me covardemente ao seu jugo. O grande sentimento de respeito com que me habituara a considerar o elevado caráter, o saber, a onipotência aparentes de Wilson, a par com indizível sensação de terror que inspiravam as outras feições de sua natureza, tinham-se insinuado a ideia da minha absoluta impotência, aconselhando-me uma humildade absoluta, conquanto triste e invencível repugnância ao seu arbitrário despotismo. Mas, ultimamente, tinha-me de todo a bebida, e a sua influência irritante sobre o meu temperamento tornava-me cada vez mais rebelde a toda espécie de censura. Comecei a murmurar, a hesitar, a resistir. Depois, pouco a pouco, senti a inspiração de uma ardente esperança. Ultimamente, alimentava, em segredo, a resolução despertada de me resgatar daquela escravidão.
Era em Roma e no Carnaval. Eu estava num baile de máscaras no palácio do duque de Broglio. Nessa noite, eu tinha bebido mais do que do costume, e a atmosfera pesada dos salões indispunha-me. A dificuldade de atravessar a multidão de convidados exasperava-me, porque procurava ansiosamente — e com que indigno fim! — a jovem e linda esposa do velho duque, o qual, com imprudente confiança, me tinha dito como ela viria vestida. Tendo-a avistado ao longe, diligenciava alcançá-la, quando senti que alguém me tocava no ombro e, em seguida, ouvi o inolvidável e maldito murmúrio.
Voltei-me exasperado, assim, para quem me perturbava e agarrei-o pela gola. Trazia, é claro, fato igual ao meu: capa de veludo azul e, à cintura, espada suspensa por um cinto carmesim. O rosto desaparecido sob uma máscara negra.
— Miserável! — gritei com a voz estrangulada pela cólera. — Impostor maldito! Não tornarás a atormentar-me! Acompanha-me ou mato-te aqui mesmo!
E dirigi-me a uma pequena sala, arrastando-o.
Mal entrei, atirei com ele contra uma parede; fechei a porta e disse-lhe que desembainhasse a espada. Hesitou um momento; depois, com um fundo suspiro, pôs-se em guarda silenciosamente com o maior sangue-frio. O combate durou pouco. Exasperado como estava, a minha energia era extraordinária. Levei-o contra a parede e cravei-lhe várias vezes a espada no peito com ferocidade. Nesse momento, mexeram no fecho da porta. Tratei de evitar alguma pessoa importuna e voltei para junto do adversário, que agonizava. Mas que linguagem poderá traduzir o assombro e horror que senti ante o espetáculo que se me deparou.
Produzira-se na disposição geral da sala uma grande mudança.
Em local onde me lembrou de nada ter visto, estava agora um grande espelho — pelo menos assim o julguei — e, como eu avançasse para ele aterrado, a minha própria imagem, com o tosto medonhamente desfigurado e manchado de sangue, avançou para mim a passos lentos e hesitantes.
Assim me parecia, mas tal não sucedia. Era o meu rival, era Wilson moribundo, que se erguia na minha frente. A máscara e a capa estavam no chão. Não havia um fio do seu fato e uma linha em todo o seu corpo que não fossem meus; era absoluto na identidade! Era Wilson, mas não o Wilson que murmurava as palavras. Falando alto, a ponto que me pareceu ouvir a minha própria voz, disse:
—Venceste e eu sucumbo. Mas, desde este momento, também tu estás morto: para o mundo, para o céu, para a esperança! Existes em mim; e, agora, atenta na minha morte, vê nesta imagem, que é a tua, como te mataste a ti próprio!
Fonte: “Diario de São Luiz”/MA, 19 a 27 de fevereiro de1925.
Ilustração: PS/Copilot.
Nota:
1 Herodes Ático (101 – 176) foi um político e retórico grego, famoso por sua fortuna.
oi barão amigo, que contaço esse, já li e reli e vou ler de novo, e a ilustração que bonito o Poe está! Agora, o meu conto O EU INTRUSO, eu tentei, apenas tentei, fazer algo assim como este conto. Muito bom , cara, muito!
ResponderExcluirrealmente o Poe nessa ilustração está muito classudo rss rss essa eu vou ver se coloco numa camiseta rss rss muito show
ResponderExcluiramigo essa tradução ficou simplesmente GENIAL, cara. Nota dez pro tradutor.
ResponderExcluircada parágrafo desta tradução é uma obra de arte, cara. Que coisa maravilhosa, que achado!
ResponderExcluirvoce notou que o Poe antecipou Jung nesse conto? Wiliam Wilson é a Sombra junguiana, eu acho...
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