A VELHINHA DA CAMPINA - Conto Clássico de Terror - Pedro Goytacazes
A VELHINHA DA CAMPINA
Pedro Goytacazes
(Sécs. XIX e XX)
Na margem esquerda do rio Uruguai, muitos quilômetros aquém de sua foz, ergue-se uma cidadezinha modesta nas construções, mas alegre e viçosa no seu conjunto encantador.
Aí nasceu Feliciano, o escravo velho e trôpego, ao qual um misterioso acidente arrebatara ambas as mãos, emprestando uma legenda de horrorosa piedade.
Eis a sua história, contada ao clarão bruxuleante de um fogão de senzala, em uma noite de inverno, fria e chuvosa:
— Como todos os meus, fui gerado no útero pesado de uma escrava que o meu senhor, homem cruel, espancava atrozmente, sem intermitência de um dia.
“Débil de construção física, a infeliz cedeu a esse flagício selvagem e, doze anos após ter-me dado à luz, expirava amarrada em um tronco, com as carnes apodrecidas em consequência das lesões produzidas pelas intérminas sevícias.
¨Atiraram-na em uma vala… Dias depois, os corvos arrastavam pela campina sombria pedaços de intestinos ou outros despojos humanos da infeliz escrava.
“Fiquei só no mundo: ao meu senhor, votava ódio de morte.
“Uma noite, quando ele dormia, apareceu-me uma velhinha que aconselhou-me a matá-lo como vingança. Essa velhinha, segundo diziam os escravos meus avós, nunca mostrara o seu verdadeiro rosto a ninguém e morava no fundo de uma grande campina e quem ali fosse ter saía cego e sem braços, ficando ainda com o fado que ela impunha: de ser lobisomem ou mula sem cabeça.
“Por isso, aceitei o conselho e corri depois; na própria cama, a cabeça do meu senhor rolava separada do corpo por uma foiçada; e eu fugia.
“Começava a chover. Corri durante muito tempo, sem consciência e nenhum destino certo, debaixo de um frio de matar e da chuva que mais e mais engrossava.
“Cansado, tropecei num vulto e caí sem sentidos. Quando acordei, a chuva ainda continuava torrencial e, junto de uma cama imunda, outra velhinha, muito pobre no trajar como a primeira, velava à minha cabeceira. Nada me disse, porque mal eu acabara de proceder, cheio de surpresa, a esse ligeiro exame que me revelava uma casa desconhecida; a porta abriu-se com desusada violência, e um homem de longas barbas entrou acompanhado de uma lufada de vento, que quase apagou o candeeiro.
“Sem uma palavra pronunciar, dirigiu-se ereto, iracundo, à velhinha que tremia, mostrando na fisionomia imenso pavor; agarrou-a pelos cabelos e mergulhou-lhe na garganta a lâmina de um punhal que tirara da cintura; depois, como carniceiro feroz, arrancou-lhe os dois olhos, pô-los no bolso, e partiu, carrancudo, sem importar-se comigo, a quem nem olhou.
“Eu tremia de medo. Ao clarão dos relâmpagos que fuzilavam no céu, vi-o montar a cavalo e afastar-se a galope, todo de preto, molhado, correndo água.
“Saltei da cama e corri para fora de casa, deixando no chão, estendida, sem olhos, morta, a pobre velhinha.
“Quando o dia clareou, voltei-me na direção onde deixara a casa: nada vi!…
“A chuva continuava caindo e bordando de uma pulverização cerrada a imensidade de uma campina sem fim.
“Caminhei…
“À tardinha, quando de novo voltava a noite, avistei longe, no deserto verde, um vulto semelhando uma barraca.
“Corri ao seu encontro.
“Era uma pedra grande, muito grande, que, ao pálido alumiar da luz que morria, pareceu-me mover-se em sentido giratório.
“Quis certificar-me e encostei-lhe as mãos. Uma dor horrível arrancou-me um grito. Encolhi os braços Dos punhos gotejava sangue.
“As mãos tinham-me sido devoradas pela pedra, que continuava movendo-se lenta, demoradamente.
“Chorei de dor e de angústia.
“E ia fugir, quando vi, pouco distante, a mesma velhinha que fora morta pelo cavaleiro de longas barbas, que ria freneticamente, como uma alma plenamente satisfeita.
“Fitei-a.
Nas órbitas dançavam-lhe não dois olhos humanos, mas duas bolas de fogo. Era uma bruxa.
“Era a deusa do mal daquelas paragens desertas, que ao viandante se apresentava sempre sob fisionomias diversas.
“Era a mesma que, no exercício de seu funesto poder, me tentara à consumação de um ato de vingança a que o céu me castigara com um suplício infindável, pois que terá existência igual a dos meus dias de vida e, a cada momento, quando, cansada, a consciência adormece envolta nas brumas do esquecimento, ele surge, torturante, à simples necessidade de utilizar-se das mãos que a bruxa mas devorou com seus horríveis instrumentos.”
Feliciano calou-se, soturno. E, à luz bruxuleante do fogão de senzala, a sua fisionomia tomou expressões apavorentas de um duende monstruoso. Seus braços, privados das extremidades carpais, descreveram no ar confusas e sombrias parábolas enigmáticas, que nem os seus soluços nos puderam explicar.
Fonte: “Revista de Policia”/RJ, edição de maio de 1929, com referência a “O Soldado”, edição de 14 de julho de 1910.
Comentários
Postar um comentário