O ANEL MALDITO - Conto Clássico Sobrenatural - Beatrice Grimshaw

O ANEL MALDITO

Beatrice Grimshaw

(1870 – 1953)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Darwin, o último ponto civilizado no extremo norte a Austrália, o fim do mundo na ilha continente, é uma cidade cosmopolita por excelência. Ali vão dar todos os destroços de aventurosas expedições nas pescarias de pérolas, nas explorações de copra e outras tentativas miríficas pelos vários arquipélagos que coalham o mar, por dezenas e centenas quilômetros, entre a Índia e a Nova Zelândia.

Ali se instalam, igualmente, como aranhas à espera da teia, todos os homens de coração seco e olhos sagazes, que, tendo algum capital e ausência de escrúpulos, “escumam os destroços”, como dizem cinicamente, em sua linguagem pitoresca, para significar que, por processos mais ou menos lícitos, arrancam aos recém-chegados ingênuos ou desanimados os últimos níqueis.

Nesse dia, haviam chegado a Darwin dois viajantes que pareciam presas destinadas aos escumadores. Eram um homem e uma mulher, ambos moços e sólidos, embora esbeltos, com essa delicadeza de aspecto peculiar às raças do Norte europeu, apuradas por muitos séculos de exercícios atléticos ao ar livre.

De fato, os israelitas, mouros, indianos e chineses de Darwin, sempre à espreita de vítimas para lhes arrancar as últimas penas, tinham razão para observá-los com a complacência de caçadores felizes; porque não seria impróprio chamar a essas duas criaturas aventureiros. Ele, Charles Pentecost, havia já dez anos que vivia pelas ilhas do Pacífico e do Oceano Índico exercendo todos os ofícios, improvisando vinte indústrias ilusórias, caçador profissional em Bornéu, plantador de borracha em Sumatra… Em uma ilhota perdida dos mares do Sul, tivera as mais assombrosas aventuras. Graças ao prestígio de sua pontaria, chegara a ser, durante algum tempo, rei de uma tribo primitiva.

Porém, não fora essa a maior loucura de sua vida. Todas as outras, inclusive a de abandonar seu posto do exército inglês na Índia, para empreender a busca de um tesouro no Camboja — só interessavam à sua pessoa. Mas um dia, em Melbourne, apaixonara-se por uma órfã, que trabalhava como datilógrafa para empresa do porto e, fiando-se na durabilidade de quinhentas libras, que apurara no comércio de copra, na Malásia, desposou-a em menos de um mês.

Agora, após cinco ou seis tentativas infrutuosas de “negócios”, Charles e Helen tinham vindo parar em Darwin reduzidos quase à roupa do corpo. E, sem uma ideia sequer, perambulavam pelos bairros variegados da cidade em busca de um pouso decente e barato.

Charles conservara um terno de casimira ainda apresentável, porém a pobre Helen, surpreendida por um incêndio a bordo, no momento em que dava um espetáculo de variedades, a fim de ganhar o dinheiro de sua passagem, ficara com um vestuário de boêmia de fantasia com que estava representando. Mas, a despeito de tudo, porque anda tinha amor a seu desastrado marido — e também porque era altiva e briosa —, Helen mantinha-se tão serena como se soubesse onde ia dormir naquela noite.

De súbito, quando passavam diante de uma casa do bairro chinês, que se distinguia de todas as outas por suas proporções imponentes e a riqueza do material com que a haviam construído, Helen não pôde conter uma observação.

— Charles — disse ela em voz baixa —, olhe aquele chinês. Deve ter cem anos, pelo menos.

O rapaz voltou a cabeça e, sem dar por isso, deteve-se, tão estranha e impressionadora era a figura que sua esposa lhe indicava.

—Já ouvi falar nele — disse ele. — É Wing Sing Lee, o chinês mais rico de Darwin e talvez do mundo. Tem 90 anos. Deus me dê as suas preocupações — concluiu com o bom humor sarcástico que o caracterizava.

Helen continuava a fitar o rosto de Wing Sing Lee, que aparecia imóvel e lívido como o de uma cabeça cortada, acima de um para-vento de laca.

— Que admiráveis bordados os daquele para-vento. Que maravilhas de arte deve conter essa casa.

—Se deseja admirá-las, não faça cerimonias — respondeu o chinês, quase sem mover os lábios e mantendo nos olhos a mesma imobilidade tétrica.

—Como? — balbuciou Helen, interdita. — Não pensei que o senhor pudesse ouvir.

—Eu ouço muito — replicou Wing Sing Lee. — Dizem que eu ouço tudo quanto se diz em Darwin. Mas isso não tem importância. Bendigo meus bons ouvidos que me permitiram ouvi-la. E repito. Se lhe podem interessar as pobres coisas que tenho em minha humilde casa, terei muito prazer em recebê-la como grata visita.

Ante a insistência do convite, Helen voltou-se para seu marido, que piscou olhos nervosamente e disse:

—Por que não? Há de ser interessante.

E, resolutamente, encaminhou-se para uma porta larga, baixa e sobrecarregada de ornato, que era a única naquela fachada.

Era de se jurar que sua visita era esperada, porque, sem demora de um segundo, essa porta se abriu silenciosamente diante deles. O criado, que a abrira, curvava-se tão profundamente que os dois não lograram ver-lhe o rosto. A porta dava para um longuíssimo corredor, no qual já emergia outro criado, igualmente curvado e indicando-lhes uma porta.

Helen hesitava ainda, mas exatamente aquela atmosfera de mistério exaltava o espírito de Charles que, segurando a esposa por um cotovelo, adiantou-se a passos largos.

Entraram em uma sala vasta, alta, que tinha todo o aspecto de um museu. Que maravilhas estavam ali reunidas! Somente as tapeçarias, que pendiam do teto colocado à altura do segundo andar, deviam valer muitos milhares de libras, sem contar seu valor de beleza, que era inestimável. E ao longo das paredes, no meio da sala havia jarras, Budas, vitrines cheias de porcelanas preciosas, esmaltes, bronzes… Charles não sabia para onde se voltar, atraído ao mesmo tempo por vários encantos. A própria Helen estava deslumbrada. O servo mantinha se imóvel, discretamente, a um canto, deixando que examinassem tudo à vontade. Foi sua esposa, quem afinal, compreendendo a incorreção de sua atitude, tocou-lhe um braço, lembrando-lhe a conveniência de saudar, primeiramente, o dono da casa.

—Sim, sim, é verdade… — concordou ele, voltando-se.

Imediatamente, o criado precedeu-os, encaminhando-se para outra sala.

Essa era de menores proporções, mas os objetos ali acumulados eram ainda mais escolhidos e valiosos. Wing Sing Lee ali estava, sentado em uma cadeira monumental, um verdadeiro trono, e ergueu-se a meio antes que Charles pudesse impedi-lo. Depois, falando pausadamente, com os requintes de polidez oriental, o chinês indicou-lhes o que havia de mais notável ali, demonstrando, com suas apreciações breves e rápidas, profunda cultura. Depois, a um gesto seu, o criado colocou diante de Charles uma bandeja de laca cheia de joias, colares, anéis, pulseiras; algumas de gemas preciosíssimas, outras valiosas pela forma e o trabalho artístico.

O rapaz interessou-se logo por um anel, que apanhou, entre os demais, para observar mais de perto. Na verdade, a joia que ele volteava entre os dedos era muito bizarra. A pedra tinha uma cor singular; não era vermelha, nem rosa; tinha tons de sangue e, ao mesmo tempo, de leite; colocada de certo modo parecia quase preta… Era de se jurar que tinha no interior qualquer coisa que se movia e alterava seu aspecto.

— Que pedra é esta?—perguntou Charles, de súbito.

O chinês sorriu antes de responder e, a um novo gesto seu, o criado lançou qualquer coisa em um grande defumador de bronze colocado a seu lado. Um perfume vago, mas muito doce e estonteante, espalhou-se pela sala. No mesmo instante, outro criado entrou, trazendo chá em xícaras de finura e beleza incomparáveis.

Helen olhou em torno de si com uma inquietação injustificável, mas que crescia, de instante a instante, em seu coração. Aquele perfume, o aspecto da sala, o sorriso imóvel daquele chinês tão velho… Tudo isso lhe parecia fantástico e alarmante, porém seu marido, alheio a tudo mais, continuava a contemplar o anel que pusera em um dedo para admirar melhor.

—Que pedra é esta? —repetiu ele.

— Não sei — disse o chinês com sua voz preguiçosa e sem timbre. — Este anel foi-me dado e só tem o valor de sua singularidade. Acha-o bonito?

— Curioso… Pelo menos, muito curioso — respondeu Charles.

—Pois se quer aceitá-lo, como humilde lembrança de sua visita a esta casa, dar-me-á muito prazer.

—Oh, senhor! — exclamou o rapaz, encantado. — Não sei como lhe agradecer…

Contrafeita, quase envergonhada pela sem-cerimônia com que o marido aceitava um presente de um desconhecido, Helen desviara o olhar, que pousou desatento sobre o criado. E, no momento em que Charles pronunciava as palavras de aceitação, ela teve a impressão de que os olhos desse criado se dilatavam de surpresa e prazer, de toda a sua fisionomia se expandia num ímpeto de indizível satisfação.

Foi rápido. Mal a moça entrevira esta expressão fugaz, e já a face pálida do oriental voltara à impassibilidade imutável. Mas, voltando-se, Helen sentiu a impressão estranha de que toda a sala se desanuviara.

A fumaça do defumador dissipou-se. O perfume esvaiu-se. O próprio Wing parecia-lhe agora mais moço, mais forte.

Charles não parecia ter dado por essas inexplicáveis transformações. Já de pé, despedindo-se e, repetindo agradecimentos, contemplava, com satisfação, seu dedo ornado com o anel de pedra cambiante.

Quando voltaram à rua, era já quase noite. Recordando mais uma vez que só dispunha de duas libras e meia, o rapaz acabou por se decidir quanto ao pouso, escolhendo um hotel modesto, mas asseado, que ficava pouco adiante da casa de Wing Sing Lee. Esse hotel, que lhe fora recomendado a bordo, era dirigido por um chinês idoso chamado Hop Chong, que passava por ser excelente cozinheiro e negociante honesto. Segundo as informações, poderiam passar aí uma semana com libra e meia. Ora, em uma semana…

E a imaginação de Charles entrou a galopar, cavalgando planos e sonhos magníficos. Entrando no hotel, quando foi assinar o livro de registro, ele próprio notou que os dois chineses de serviço na portaria tiveram verdadeiro sobressalto ao ver o anel que ostentava com vaidade quase infantil. Lisonjeado com isso, abriu bem a mão e fez a pedra misteriosa cintilar sob a lâmpada elétrica. Os chineses, desta vez, não se limitaram a manifestar surpresa; recuaram, mal disfarçando uma expressão que talvez fosse de susto… ou de horror.

Charles riu. Helen, que já vinha preocupada, ficou ainda mais intrigada, inquieta, quase pressentindo um mistério que não saberia localizar, mas perturbava-a como uma ameaça.

Tendo passado rapidamente pelo quarto, que lhes foi indicado para fazer um simulacro de toalete, vieram sentar-se a uma mesa pequena no restaurante do hotel. Ao que parece, os chineses da portaria já haviam falado a outros, porque, apenas o casal entrou no salão, todos os indivíduos orientais, que ali se achavam, começaram a observá-los e alguns cochicharam com animação.

Helen, que tinha o ouvido fino, distinguiu entre o que diziam o nome de Wing Sing Lee.

Embora não tivesse almoçado nesse dia, a moça mal deu atenção ao jantar, absorta por aquela sequência de fatos tão… anormais.

Terminada a refeição, o velho hoteleiro veio até sua mesa perguntar-lhes se estavam satisfeitos. Com sua graça frágil e seus grandes olhos de criança, Helen tinha uma habilidade indiscutível para falar aos humildes, inspirando-lhes confiança. Depois de elogiar o hotel e seus serviços, lisonjeando Hoo Chong, ela lhe perguntou, designando discretamente os demais chineses:

—Que é o que eles estão dizendo sobre nós?

O velho hesitou um instante, porém a cândida doçura do olhar de Helen comoveu-o; curvando-se mais ainda e baixando a voz, respondeu:

—Eles dizem que Wing Sing Lee deu o anel.

Ah! Helen sentiu um baque no coração. Então seus pressentimentos não a tinham enganado… Estremeceu e murmurou:

—Mas que tem esse anel?

—Oh, oh! — fez Hop Cong. — Ele não bom. Senhor inglês não devia querer anel…

E afastou-se, evidentemente para fugir a mais explicações.

Charles, atento ao movimento da sala, ou renovando seus eternos projetos, não dera atenção a esse incidente. Engolida a beberagem indefinível, que lhe haviam servido com o nome de café, ergueu-se e caminhou para a sala vizinha, atraído irresistivelmente pele ruído de fichas, que tinham para ele o poder de um ímã. Em outra qualquer ocasião, sua esposa teria tentado detê-lo; mas, agora, estava tão absorvida por seus próprios pensamentos que se contentou com a desculpa murmurada com displicência.

— Assim como assim, vou arriscar meia libra. Se perder…

Somente ao fim de uns dez minutos, Helen se ergueu à ideia de que seria bom vigiar seu marido, impedir que ele se deixasse arrastar e jogasse até o último xelim. Foi encontrá-lo a uma mesa de pôquer, com cinco libras diante de si. E a sorte continuou a protegê-lo com tal persistência que, uma hora depois, o jogo terminava por falta de adversários. Todos os jogadores das outras mesas tinham vindo enfrentá-lo com igual desdita e Charles ganhara, em conjunto, quarenta e duas libras, tudo quanto havia a ganhar.

—Que pena! — disse Charles, metendo no bolso as notas, as moedas. —Vir-me uma sorte destas num jogo tão fraco! Se isso me acontecesse numa boa roleta; mas quem sabe…

E arrepiou os cabelos com o gesto, que lhe era habitual quando o espírito de aventura começava a dominá-lo.

— Não—disse Helen, tomada subitamente de uma energia rara.

—Quê?—perguntou ele admirado. —Pois não é que estou com sorte? É preciso aproveitá-la.

—Não — repetiu Helen, tomando pela primeira vez um ar de resolução intratável. — Com sorte não se precisa de arriscar tanto dinheiro. Leve dez libras e deixe o resto guardado comigo.

Impressionado por essa teimosia e ansioso por sair em busca de um grande hotel onde houvesse roleta e jogo forte, charles entregou trinta e duas libras à esposa e saiu. Voltou ao amanhecer, extenuado e radiante

— Que sorte, meu amor! Nunca se viu uma coisa assim! Ganhei em tudo, no pôquer, no dado, no bacará, na roleta… e sem cessar. Era jogar e ganhar. Toda a gente estava assombrada, aninhada em tomo de mim, de boca aberta. Fiz saltar a banca e trago aqui quinhentas e vinte libras… Mas que cara é essa? — concluiu ele, notando a expressão de angústia que havia no rosto de sua esposa. — Eu pensei que ias ficar tão contente…

— Não sei —disse ela afinal.—Não gosto dessas coisas. Uma sorte assim chega a me assustar.

—Que tola! Isso só nos pode ser útil. Além do dinheiro que me pôs nas mãos, vai me tornar conhecido. Toda agente vai falar nisso; amanhã serei o homem mais popular de Darwin e isso vai me facilitar qualquer negócio.


*


Dormiu até as três horas da tarde. Isso o impediu de ouvir comentários, que teriam lisonjeado sua vaidade de aventureiro. Como previra, o assunto do dia era a sorte inverossímil que lhe permitira limpar todas as algibeiras na sala de jogo do Victoria Hotel. Porém, Helen não dava atenção a isso; continuava a observar os chineses que viviam ali como empregados ou hóspedes. Todos, mesmo os que vinham como visita aos hospedes, pareciam conhecer já a historia do anel, pois olhavam para ela de modo singular, semi-irônico, semialarmado.

Que haveria debaixo daqueles olhares disfarçados e suspeitos? Muitos, ao encontrá-la, olhavam logo para suas mãos. Em busca do anel, decerto.

À noitinha, Charles preparou-se para sair de novo depois do jantar.

— Vai jogar outra vez? — perguntou-lhe Helen.

—Sim… Quero ver se a sorte continua.

—Então — atalhou Helen —, vai levar apenas vinte libras.

Confiante e tranquilo, o marido concordou. Mas nessa noite voltou mais cedo e um pouco irritado.

—Miseráveis! Cobardes. Isso não é uma cidade; é uma pocilga. Não há aqui gente com fígados de homem.

—Mas que foi?

—A sorte continua comigo, mas o pessoal assustou-se. Quase ninguém quis jogar comigo e o banqueiro da roleta limitou as paradas ao máximo de uma libra. Assim, não é possível fazer coisa que valha a pena. Que corja!

Helen nada disse, mas em seu cérebro começava a surgir uma hipótese tão inverossímil que não se atrevia a aceitá-la. Entretanto…

Passaram-se mais dois dias. O mau humor de Charles aumentava de instante a instante. Pois não era de enlouquecer? Continuava com uma sorte louca, mas ninguém queria jogar com ele. Na única roleta de Darwin, diante da insistência de seus ganhos, tinham acabado por não aceitar suas paradas. E toda a gente olhava para ele como para um bicho curioso… Terra ignóbil!…

No segundo dia, aproveitando um momento em que Charles estava mais prostrado pelo desânimo, Helen animou-se a lhe comunicar seus receios.

Aquele anel… E como o marido se admirasse, insistiu. O modo singular como Wing Sing Lee os convidara para entrar cm sua casa, a facilidade com que lhe deu aquela joia certamente valiosa, depois a atitude de rodos os chineses, que o viam com esse anel, aqueles ganhos espantosos em qualquer jogo…. Não lhe parecia tudo isso extraordinário?

Charles refletia, com os olhos dilatados pela surpresa. Com a vibratilidade exagerada de seus nervos, o aventureiro sobressaltou-se. Sim… essas coisas não pareciam normais. E, bravo até a temeridade diante dos homens ou dos elementos em fúria, ele tremeu ante a possibilidade de estar envolvido em qualquer enredo sobrenatural.

Arrancou o anel do dedo e, segurando-o com visível repugnância, declarou:

— Vou restituí-lo imediatamente.

Helen acompanhou-o; mas, diante da casa ao chinês milionário, detiveram-se interditos. O enorme edifício tinha todas as portas e janelas hermeticamente fechadas. Indagaram pela vizinhança. Um codie1 postado à esquina teve um sorriso indefinível e disse:

— Wing Sing Lee partiu. Wing-Sing-Lee feliz. Ele agora podia voltar à China e gozar a vida. Wig Sig Ling foi embora.

Charles empalideceu.

—Cada vez mais estranho!

Voltaram para o hotel silenciosos e Charles, deixando-se cair sobre uma cadeira, ficou imóvel, a contemplar o anel, que, atirado sobre a mesa, parecia-lhe agora ter um fulgor diabólico.

Helen, porém, estava resolvida a tentar qualquer coisa. Ela recusara utilizar-se de um pêni sequer do dinheiro ganho por seu marido no jogo; não comprara sequer uma peça de roupa para seu uso e isso causara evidentemente boa impressão sobre Hop Chong, levando-o a tratá-la com atenções especiais, quase com carinho.

Isso encorajou-a a procurá-lo na cozinha e suplicar-lhe:

—Sr. Chong, eu lhe peço pelo que de mais caro tiver neste mundo… Diga-me o que há sobre aquele anel…

O velho hoteleiro hesitou, mas havia no rosto de Helen uma expressão de ansiedade tal que, apiedado, ele murmurou:

— Eu não devia falar, mas… Muito triste… Caso muito triste. Esse é o anel magenta; é muito antigo; mais de mil anos. Anel magenta maldito… Maldito. Dá dinheiro, todo dinheiro pessoa querer, mas maldito.

—Então meu marido deve pô-lo fora, atirá-lo ao mar, por exemplo.

—Não, não! — atalhou Hop Chong, estendendo as mãos num gesto de grande terror. — Não fazer isso! Quem destruir ou der sumiço ao anel Magenta ficará com sua maldição para todo o sempre… Ele seus filhos, seus netos e os netos de seus netos. É preciso dar anel… Como Wing Sing Lee fez. Encontrar alguém queira anel.

Quando Helen contou essa estranha história a seu marido, viu-o empalidecer de tal modo que, assustada, tentou disfarçar seu próprio terror.

—Oh, Charles!… mas isso não é possível. Está-se vendo que é uma estúpida superstição de Chineses… Em nosso tempo, não se admitem mais essas bruxarias…

Porém, ele tremia. No fundo de sua alma, continuava a ser um inglês autêntico; em assuntos de religião, conservava a candura e temor dos crentes sinceros. A ideia de se ver envolvido em um caso de magia impressionava-o profundamente. Seu espírito exaltado debatia-se freneticamente diante desse mistério. Havia momentos em que tentava repeli-lo com desdém; mas lembrava-se da repugnância com que Helen recusara aceitar fosse o que fosse do dinheiro ganho por ele depôs que tinha o anel… Por instante, tinha a tentação de partir de Darwin e ir para Monte Carlo ou para Londres… para um logar onde ninguém soubesse… Mas que adiantaria isso? Ele sabia e isso seria bastante para envenenar toda a sua existência. E não poder arrancar do dedo esse anel… atirá-lo ao longe!

— A quanto monta tudo quanto temos hoje? — perguntou subitamente Helen.

—Mais ou menos mil libras.

—Dá-me cem.

—Para quê? — perguntou Charles, surpreendido.

—Tenho uma ideia.

O rapaz estava tão abatido que não teve ânimo para discutir ou sequer indagar que ideia seria essa. Entregou o dinheiro pedido.

Helen dirigiu-se ao melhor joalheiro da cidade, comprou um anel com um brilhante, grande e vistoso, e voltou trazendo-o ostensivamente no dedo. Entrou no hotel e tremeu de alegria, verificando que todos notavam a nova joia. Foi a seu quarto e disse ao marido:

— Há no porto um navio que parte amanhã cedo para Sydney. Dê-me o anel chinês e vá comprar passagens para nós.

—Como? — perguntou ele, atônito. — Que vai fazer com o anel?

—Creio que encontrei quem o queira… Não me pergunte coisa alguma… Confie em mim. Vá comprar as passagens.

E saiu. Com passo rápido, resoluto, dirigiu-se ao extremo da cidade, ao bairro puramente chinês, o mais sórdido e sombrio de Darwin. Chegando ali, começou a perambular por aquele dédalo de vielas como se procurasse alguma coisa.

Ao fim de dez minutos, notou que estava sendo seguida por um oriental ainda moço e forte, que evidentemente observava o brilhante cintilando em seu dedo. Tomando o ar mais ingênuo deste mundo, ela perguntou-lhe onde ficava um hotel de propriedade de um homem caolho… O chinês respondeu-lhe que não sabia e, enquanto falava, Helen pressentia bem que ele tinha ímpetos de assaltá-la. Mas não se atreveu. Então, ela continuou a caminhar como quem hesita e não sabe o que faça… Mas, olhando disfarçadamente para trás, viu que outro chinês se aproximava do primeiro e parecia encorajá-lo. Depois, os dois se separaram e o segundo entrou correndo por uma rua transversal, enquanto o outro continuava a segui-la. Simulando susto, Helen apressou o passo e entrou por outra rua. Aconteceu o que esperava. Quando ia voltar a segunda esquina, deu de cara como segundo chinês que, tomando-lhe a mão, arrancou-lhe o anel e fugiu.

Helen deixara-se despojar, com expressão de profundo terror, mas sem um grito, e, apenas o ladrão desapareceu, ela saiu a correr em direção oposta, rindo e chorando de emoção.

Voltando ao hotel, não teve ânimo para esperar Charles em seu quarto. Juntando a sua minúscula bagagem, foi esperá-lo no vestíbulo; e, quando ele chegou, fê-lo pagar a conta e seguir logo para o cais.

Somente a bordo confessou ao marido o ousado plano que levara a cabo. Fizera-se assaltar por um ladrão; ao voltar à esquina, tirara a joia que levava no dedo, de modo que o chinês assaltante levara o anel maldito.


Fonte: “Eu Sei Tudo”, edição de março de 1928.

Ilustração: PS/Copilot.


Nota:

1Pessoa a quem se busca e de quem se recebe auxílio.

 

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