UM CRIME - Conto Clássico de Mistério/Policial - Medeiros e Albuquerque

UM CRIME

Medeiros e Albuquerque

(1867 – 1934)


Quando o Castro foi nomeado para uma delegada do Engenho Novo, os companheiros fizeram-lhe, na Secretaria da Agricultura, onde era oficial, uma ruidosa manifestação de troça. Ofereceram-lhe o retrato, caricaturado por um amanuense gaiato, cobriram-lhe a mesa de papéis picados, à guisa de folhas de rosa, foram esperá-lo à porta da rua, em comissão, e houve mesmo quem perpetrasse um bestialógico.

— Nesse momento solene…

O Castro, sorrindo, com um largo sorriso amarelo, meio desapontado pelo debique, fingia, entretanto, aceitar de bom grado a caçoada e empertigava-se comicamente. Durante o dia, fez por si só toda a despesa do espírito burocrata.

Moeu-se com aquilo. Moeu-se caladamente e prometeu vingar-se. Aquela manifestação que lhe faziam, em ar de pouco-caso, ele a teria muito a sério — jurou-o a seus deuses.

E, assim, uma semana depois, ao sábado, os companheiros viram-se todos convidados para tomar uma chávena de chá em casa dele.

Foram. Houve a função clássica: banda de música, espirrando o taratachim do hino nacional, oferta por alguns de uma faixa de seda verde e amarela, oferta por outro de um apito de ouro, discursos análogos ao ato e, por cúmulo, uma poesia — vinte quadras! Quase um poema — em que o Castro era comparado a mil coisas, terminando, enfim, por uma estrofe assombrosa, em que o poeta o chamava


“…nobre guerreiro vingador e forte,

como o amante gentil de Dulcinéa

e outros em quem poder não teve a morte!”


e dava-lhe a missão de fazer o bem e impedir o mal.

Esta missão o digno manifestado a desejava, não como fim, mas como meio para atingir certos resultados. Assim, quando, no dia imediato à festa, ele despertou — o sol já ia alto —, deixou-se ficar na cama, sonhando acordado. Seria uma autoridade modelo, perspicaz, inteligente, velando pela segurança de todos, captando simpatias gerais, arregimentando o batalhão dos votos para a campanha eleitoral; dispondo tudo para ser o homem necessário do distrito.

Nem liberais, nem conservadores poderiam passar sem o seu apoio. E, dado que isto se realizasse, ele subiria. Era segundo oficial, passaria a primeiro... a chefe de seção… E a fantasia ajudando; o Castro via-se já repimpado na cadeira do diretor, muito grave, apenas com um ligeiro sorriso amável, influência incontestável: “O Sr. Conselheiro Castro"... porque ele — olé! — seria conselheiro.

Veio a mulher chamá-lo para almoçar:

— Anda, Chico!

Ele levantou-se, enfim. Levantou-se, murmurando com uma animação: “Desta massa é que eles se fazem…”. Esfregou o rosto barbudo, levantou jorros de água, como uma baleia, enfiou um chambre e foi arrastando os chinelos até a mesa do almoço.

Bem examinadas as coisas, o Castro tinha razão para esperar tudo aquilo. Era burro (muito burro, mesmo!), sabia apenas redigir mecanicamente ofícios e avisos. Era servil: bajulava os chefes. Era impostor: arrotava as mais pífias vulgaridades com o entono de um sábio, dissertando sobre problemas transcendentes. Lia o Jornal todos os dias, desde a primeira publicação da gazetilha à última dos A pedidos, e tinha um caderninho onde colava todas as descomposturas que se trocavam pela imprensa. Processos, acusações, calúnias torpes e anônimas — tudo ali estava perfeitamente ordenado. Bastava procurar o nome de um vulto qualquer da política para encontrar adiante, grudadinhos cuidadosamente, com a menção da data, os extratos de todas as amabilidades que os adversários lhe haviam atirado. O Castro servia-se daquilo para fulminar na repartição os adversários do governo: “uns ladrões, uns vagabundos, uma canalha de republicanos que não tinham nada que perder”. E maltratava-os assim até que algum deles subisse ao poder. A farda de ministro era toda uma redenção. O homem que a enfiava ficava logo honesto, puro e bom — limpo de qualquer crime, cheio de todas as virtudes. O Castro esquecia tudo quanto dissera e, se tentavam lembrar-lhe, garantia que estavam enganados:

— Eu?!… Eu sempre o tive como um carácter de primeira água, um homem de real talento…

E não havia meio fazerem-no convir nas acusações que repetira. Era como se tivesse tido uma dessas afecções cerebrais, que riscam da memória um pedaço da vida: não recordava nada… nada inteiramente…

Ora, com um temperamento destes, claro estava que a vocação do Castro só podia ser a política e que para ele o fitão de subdelegado podia servir-lhe de muito. Ele sempre o aspirara, não querendo também dispor-se a disputá-lo, porque lhe parecia ridículo pedir com grande empenho um lugar inferior. E, quando aceitou, foi — disse ele no discurso do grande dia — “como um sacrifício feito à intransigência dos seus princípios políticos e porque acreditava que ia prestar serviços relevantes aos seus concidadãos”... E este fecho de frase, que parecia tão sem importância, exprimia também um desejo ardentíssimo.

O Castro cultivava a literatura de folhetim: conhecia Ponson du Terrail, Georges Ohnet, Gaboriau, Montépin e admirava os personagens dos seus romances. Mas, como há quem prefira contos de amor e aventuras cavalheirescas, o Castro dava-se aos romances de sensação à moderna, onde um grande crime, cometido nas mais seguras condições de segredo, com mil e uma precauções, é afinal — por um cúmulo e perícia de um agente, quase genial como psicólogo — descoberto inteiramente, graças a vestígios mínimos, insignificantes, completamente despercebidos para olhos faltos de perspicácia tão insigne. Mas, ao menos nisto, o Castro tinha um ideal alevantado. Ele lia minuciosamente a notícia de todos os crimes que se praticavam. Lia e — se o criminoso era desconhecido — entrava a imaginar a cena, a reconstituir o quadro, a arquitetar hipóteses, acabando sempre por escrever em carta anonima à policia, o resultado de suas conjecturas. Conjecturas complicadas, que nunca acertava. Mas que culpa tinha — dizia ele e dizia com razão — que os fatos fossem tão estúpidos? Ele não podia supor que as coisas fossem tão tolamente prosaicas…

E, agora, feito subdelegado, tinha o ardente desejo de achar-se a braços com algum crime intrincado, novo — indecifrável para os mais, como uma charada em sânscrito —, para ele claro como água, à força de talento e habilidade… E foi por isto, quase com júbilo, que ele ouviu naquela noite, voltando do teatro, o lamento angustioso e súplice de uma voz:

— Ai!… Ai! Não me matem!

A noite estava escuríssima, a rua deserta, os lampiões na umidade fria do sereno, cercados de um halos pardacento. A voz partia de um chalé; vinha cada vez mais angustiada, mais dolorosa. Era um timbre feminino, suave e débil, que a dor, entretanto, alterava estranhamente.

O Castro sentiu bem que era um crime que se consumava a dois passos dele, um crime certamente espantoso, o assassinato de alguma pobre mulher. Sentiu — e o imbecil teve a coragem de sorrir de satisfação, lembrando que chegara emfim a ocasião azada para mostrar a sua habilidade, o seu faro policial. Pensou em correr à estação mais próxima, pensou em utilizar o seu belo apito de ouro, tudo isto no rápido volver de alguns segundos. Mas um grito soou, de angustia tamanha, de tão profundo sofrimento: — “Ai! Eu morro!” — que o Castro compreendeu que devia agir por si só. Era, pois, um assassinato, um verdadeiro e monstruoso crime que se perpetrava ali.

A desgraçada seria talvez uma moça formosa e boa — talvez uma velhinha, trôpega e fraca. Em todo caso, tratava-se de um drama lutuoso e trágico. A vítima, crivada de facadas, meio nua no chão, sangrando lamentavelmente, jazia talvez moribunda, vagindo, exalando um resto de vida… A casa caiu em silêncio.

O Castro viu, em uma alucinação, o corpo de uma mulher com enorme facada na garganta, por onde o sangue borbotava como de uma garrafa que se despeja… Atirou-se para o jardim, tomou por um dos lados. Das janelas, que eram todas muito baixas, havia uma iluminada. Eram os assassinos que se dispunham a despojar a vítima, a esconder o cadáver… Manda a justiça dizer que o Castro não se arreceou de uma luta desigual com os facínoras. Compreendeu que precisava agir e não pensou mais. Precipitou-se sobre a janela para arrombá-la. Os batentes abriram com estampido. Em um relance, os olhos correram o quarto. Havia sangue, havia um leito revolto… Uma mulher jazia sobre ele desmaiada. Um homem tentava reanimá-la… Outras mulheres estavam em torno… Ouviu um choro de recém-nascido….

Tinha sido um parto…

O homem desabou sobre ele aos socos, prendendo-o como ladrão. O Castro, ao compreender o seu erro, ficara estatelado na janela, com uma das pernas pendendo para o lado de fora... Um cachorro feroz, despertado pelo barulho, cravou-lhe os dentes nela... O infeliz berrava, uivava de dor... O homem, querendo fazê-lo calar, aumentava a energia dos socos.

Por cúmulo, dois dias depois, quando ainda estava de cama, moído das bordoadas do sujeito e das dentadas do cão, foi demitido da subdelegacia a bem do serviço público…


Fonte: “Vida Policial”, edição de 27 de fevereiro de 1926.  

 

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