UM CRIME HEDIONDO - Conto Clássico de Mistério/Policial - Autor anônimo do séc. XX
UM CRIME HEDIONDO
Autor anônimo do séc. XX
Numa pequena povoação da Bretanha, vivia o opulento proprietário M. Dubois, cuja única ocupação consistia em indagar a vida e milagres de seus vizinhos.
Ao lado de sua casa, estava situada a Quinta das Rosas, encantadora moradia, na qual residia, desde algum tempo, uma família americana, composta do pai, Sir Jackson, da mãe e da filha de ambos, jovens de dezoito anos, que era uma maravilha de elegância e beleza.
Que sorte para M. Dubois! Antes, a quinta era ocupada por um capitão de cavalaria, solteiro, que ali morava em companhia de seu assistente.
As coisas mudaram, por fim, de um modo definitivo.
M. Dubois não abandonava seu posto de observação detrás dos postigos da janela que dava para o jardim.
Uma noite, assim por volta das oito e meia, ouviu profundos soluços que partiam da quinta. Apagou a luz e viu Sir Jackson, sua mulher e sua filha. Esta última era quem soluçava, erguendo nos braços um objeto.
—Pobrezinha! Pobrezinha! — exclamava miss Jackson.
— Não fales tão alto, minha filha — recomendou a mãe. — Vais chamar a atenção dos vizinhos.
— Não posso conter-me!
— Não te entregues à tua dor. É preciso que esqueças.
— Não me é possível, mamãe.
M. Dubois estava alarmadíssimo.
— Que desgraça tão grande! — tornou a jovem. — Por que quis meu pai que morresse?
—Já sabes que não podíamos conservar em nosso poder! — respondeu o americano.
— Que lástima! Era tão formosa!
—Pois é preciso que desapareça! —disse o pai, em voz baixa.
—Pobre filha minha! — exclamou miss Jackson, chorando visivelmente.
—Sua filha?! — murmurou, consigo M. Dubois, cujos cabelos se eriçaram de horror.
—Enterrá-la-emos aqui no jardim — disse Sir Jackson.
—Enterrá-la! — rugiu a jovem. — Isso nunca!
— E que queres, então, que façamos dela?
M. Dubois não se atrevia a mover-se de seu lugar.
Sir Jackson, provido de uma alavanca, se pôs a cavar a terra, abrindo uma fossa.
— Aqui está feito! — disse, depois de algum tempo. —Acabemos de uma vez com isso!
—Coragem, Eva! — exclamou a mãe.
O americano se apoderou do objeto que sua filha tinha nos braços e o colocou na fossa, que imediatamente cobriu de terra.
Miss Eva ajoelhou-se.
—Descanse em paz! — disse Sir Jackson. —E não falemos mais do assunto!
—Virei, diariamente, pôr flores sobre seu túmulo! — falou a jovem.
E os três entraram na casa.
II
M. Dubois estava aterrado, cada vez mais aterrado. Acabava de ser testemunha de um crime hediondo. Aqueles estrangeiros tinham ido ao povoado ocultar a desonra de sua filha. O pai havia morto a criatura e, aproveitando o mistério da noite, acabava de sepultá-la. M. Dubois julgou-se no dever de denunciar o fato à justiça. Olhou o relógio e viu que já eram dez horas. Tomou do chapéu e correu à casa do procurador da República.
Este, ao vê-lo, lhe disse:
—É você, M. Dubois? A que devo a honra de sua visita?
—A um motivo bem grave. Alguém nos ouvirá, porventura?
—Ninguém. Pode falar.
—Senhor procurador, acaba de ocorrer, nesta povoação, um crime abominável, um crime hediondo! Eu o presenciei. O senhor, por acaso, conhece esses americanos que moram ao lado de minha casa?
—Sir Jackson e sua família?
—Sim, senhor. Embora não costume ocupar-me dos meus vizinhos, estava de sobreaviso, porque não me fiava neles.
—Vamos ao fato.
—Esta noite, às oito e meia, ouvi ruido de soluços que partiam do jardim, e tremo ao recordar o que vi de uma das minhas janelas. A jovem levava nos braços um menino recém-nascido.
—Um menino recém-nascido? O senhor o viu?
—Sim, senhor. Com estes olhos. Trata-se de um infanticídio. A criaturinha estava envolta num manto e a moça a cobria de beijos. O pai cavou uma fossa e a enterrou com um sangue-frio de espantar.
—M. Dubois fez com a cabeça um sinal afirmativo.
—Que coisa tão rara! —exclamou o magistrado. —Está o senhor disposto a sustentar a sua acusação sob juramento e a apresentar uma queixa com sua assinatura?
—Perfeitamente.
Ditada pelo procurador, M. Dubois escreveu na devida forma a correspondente denúncia, por ele firmada.
Quando M. Dubois havia partido, o procurador da República se pôs a meditar. Custava-lhe crer na culpabilidade dos acusados. Mas considerava possível a perpetração do crime denunciado. A causa devia ser, forçosamente, sensacional. Nada lhe faltava para provocar o interesse publico: a posição dos culpados, a falta da jovem, o infanticídio, a cumplicidade dos pais e até aquele enterro misterioso à pálida claridade de lua. O êxito haveria de ser ruidoso e indiscutível.
No dia seguinte, pela manhã, o juiz de instrução, acompanhado de um tenente de gendarmes, apresentou-se em casa de Sir Jackson. A multidão estacionou em frente à quinta, pois M. Dubois fizera circular a notícia do crime por toda a povoação.
—Não compreendo o que se passa — disse Sir Jackson — e desejo que me expliquem o caso.
—Um seu vizinho o acusou de um crime de infanticídio, praticado na pessoa de seu neto.
—Cavalheiro! — exclamou Sir Jackson, indignado. — Nem mais uma palavra ou o ponho fora de minha casa!
—Acalme-se e responda às minhas perguntas, que isto é melhor para o senhor.
—O gracejo é demasiado pesado, cavalheiro, para que eu possa tolerá-lo com calma!
—Nunca uso de gracejo no exercício de minhas funções.
—Se não fosse o senhor a representação da justiça francesa, eu estaria a rir do senhor.
—Que fazia o senhor, ontem, às oito e meia, em seu jardim?
—Quê?… Que fazia?
—O senhor se perturba. Se não se recorda, vou dizer-lhe agora mesmo o que estava fazendo. O senhor abriu uma fossa.
Ao ouvir estas palavras, o americano lançou uma estrepitosa gargalhada.
— O senhor está sendo vítima de algum imbecil — disse, em seguida, Sir Jackson.
E acrescentou:
—Acompanhe-me.
Ato contínuo, abriu todas as portas de sua casa para que a multidão pudesse acompanhar o magistrado.
Tomou uma alavanca, reabriu a fossa e a concorrência viu, envolto em um manto branco, o cadáver de uma formosa cadela.
Oito dias depois, Sir Jackson e sua família embarcavam para a América, resolvidos a não voltar a pôr mais os pés na França.
Fonte: “Vida Policial”/RJ, edição de 10 de julho de 1925.
Ilustração: PS/Copilot.
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