A CASA DO DIABO - Conto Clássico de Horror - Guy-Péron
A CASA DO DIABO
Guy-Péron
(? – 1931)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
—Não, senhores — declarou o velho guia que nos devia fazer visitar, nos arredores de Córdova, uma fazenda que datava da conquista do México pelos espanhóis. — Não, senhores, eu não os conduzirei esta noite à Barranca do Salto.
O nosso guia era um velho guerrilheiro, cujo rosto magro e pálido, assinalado por um golpe de sabre, desaparecia, pela metade, sob o largo chapéu pontudo de pelo de lhama do Peru.
—E por quê? — perguntei. — Por que não nos queres conduzir ao Barranco do Salto?
—Porque é a casa do diabo! — explicou ele.
A seguir, descansando o sabre sobre a mesa do albergue onde nos achávamos, ele esclareceu:
—Vi, com estes olhos mortais, no Barranco do Salto, coisas espantosas. Quase fiquei louco. Foi isso no tempo em que eu fazia parte do bando do general Villa (que Deus tenha lá a sua alma!). Fazíamos às tropas do general Carranza1 uma guerra atroz de guerrilheiros.
“Uma noite, em que fizéramos prisioneiro um tenente de dragonas, conduzimo-lo para a Barranca do Salto, onde havia um dos nossos postos avançados. Ele foi trancado no subterrâneo — uma estreita cova abobadada ladrilhada, de paredes espessas, e onde se encontrava uma pequena janela, por onde entrava a luz do dia e onde mal cabia a cabeça de um homem.
“O prisioneiro tinha sido atirado ali completamente nu, com as mãos o os pés ligados. Diante da porta, fechada por fora, havia uma sentinela, o que tornava toda e qualquer evasão impossível.
“E, no entanto, de manhã, quando se abriu a porta do subterrâneo, o prisioneiro lá não estava mais.
“Como? Por onde pudera ele escapar? Mistério! Era tudo mistério!
“A única hipótese admissível, diante de constatação tão desconcertante, era cumplicidade da sentinela na evasão. Era a impressão de todos. Apesar dos seus protestos de inocência, o desgraçado soldado, sob as ordens do capitão Alférez, que não admitia o dogma intangível dos mistérios, foi, por sua vez, fechado na lôbrega prisão, inteiramente nu, as mãos e os pés ligados, não tendo conservado em cima do corpo senão uma cruz de prata, pendente de uma corrente atada ao seu pescoço.
“Durante essa noite, o vento soprou, forte, sobre a floresta. Depois, uma violenta tempestade se desencadeou, cobrindo com os seus trovões os urros dos animais, que, à noite, davam, ali perto, o seu concerto noturno.
“Mas, por volta de meia-noite, o tempo se iluminou e, no céu de linho verde, a Lua apareceu — aclarando, sobre a montanha, a cruz elevada aos mortos da batalha de Calderón.
“Foi então que se elevou da ‘cave’ um clamor horrificante, que me fez tremer de pavor. Depois, ouvi dois gritos: “Socorro! Socorro!”, seguidos de um longo gemido, que terminou por um arquejo triste. E caiu num silêncio angustioso! Voltando do meu espanto, chamei a guarda do posto, que veio em meu auxílio. Abri a porta da prisão e verifiquei que ela estava vazia.
“O prisioneiro havia desaparecido. Como? Para onde? De que modo? Mistério!
“Examinando o reduto, ao clarão de uma lanterna, notei sobre o lajedo que havia larga mancha de sangue e, no meio, a pequena cruz de prata do cativo.
“Essa prova de um fato sobrenatural encheu minha alma de terror. Terror de que, até então, eu não tivera a menor ideia. — ‘O diabo anda aqui dentro!’ — gritei aos companheiros.
“E precipitei-me para a porta. Eu não tinha senão um pensamento: fugir, sair daquele subterrâneo infernal, afastar-me o mais depressa possível do Barranco do Salto.
“O ar da noite, no campo, acalmou a minha febre. Respirei melhor, os meus nervos se distenderam, alonguei-me sobre a erva e, quebrado de fadiga, adormeci.
“Quando me acordei, o céu estava de um azul, límpido, doce e o Sol da manhã dourava a floresta virgem, onde mil aves multicores davam o seu concerto habitual.
“Tendo eu me decidido a retornar à casa do diabo, percebi, no pátio de arcadas do Barranco do Salto, meus companheiros discutindo diante de um objeto volumoso, que, de longe, não distingui bem. Mas, ao aproximar-me, constatei que era uma enorme boa2 que media quase seis metros de comprimento. Ela acabava de ser abatida na ravina, justamente quando estava adormecida, fazendo uma digestão laboriosa. E, tendo aberto a serpente com o sabre, um dos meus companheiros encontrou, dentro dela, os restos do desgraçado prisioneiro, triturado, esmagado, reduzido a uma verdadeira massa.
“Então compreendi.
“Durante a noite, o perigoso réptil entrava pela janela da prisão, enlaçava o preso, quebrava-o com os seus terríveis anéis, triturava-o e, depois de tê-lo untado com a sua baba fétida, para facilitar a deglutição, ela o engolia. Depois, se retirava, pelo mesmo lugar, para ir digerir, na ravina, o produto do seu horrível festim.
“Se bem que o mistério angustiante, que havia pairado sobre o desaparecimento dos prisioneiros, fosse assim esclarecido, o Barranco do Salto continua a ser, para mim, a casa do diabo. Conservo daquela noite trágica, em que ouvi o grito pavoroso do prisioneiro, assim que ele viu o monstro aproximar-se, uma tal impressão de horror e de espanto, que fiz a jura de lá não mais voltar.
“Eis por que, senhores — concluiu o velho guia mexicano —, não os conduzirei, esta noite, à Barranca do Salto enquanto o vento sopra sobre a floresta virgem e a Lua ilumina a cruz dos mortos da montanha”.
Fonte: “Selecta”/RJ, edição de 19 de fevereiro de 1930.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Notas:
1Pancho Villa (José Doroteo Arango Arámbula; 1878 – 1923) e Venustiano Carranza (1859 – 1929) foram líderes da Revolução Mexicana, malgrado adversários.
2Gênero de serpentes constritoras como a jiboia.
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