O LUÍS DE OURO - Conto Clássico Fantástico - François Copée


 O LUÍS DE OURO

François Copée

(1842 – 1908)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX


Quando Lucien de Hem viu sua derradeira nota de cem francos recolhido pelo raspador do banqueiro e se levantou da mesa da roleta, onde perdera os restos de sua pequena fortuna, reunidos por ele para essa suprema tentativa, sentiu como uma vertigem e pensou cair.

De cabeça tonta e pernas bambas, foi atirar-se sobre o largo banco forrado de couro que rodeava a sala de jogo. Durante minutos, olhou vagamente a espelunca onde desperdiçara os mais belos anos de sua mocidade, reconheceu as cabeças alinhadas dos jogadores, cruamente batidas pela claridade de três grandes quebra-luzes, escutou o ligeiro roçar do ouro sobre o pano verde, pensou que estava arruinado, perdido, recordou-se de que tinha em casa, numa gaveta, as pistolas reiunas, de que seu pai, o general de Hem, se servira corajosamente, quando capitão, no ataque de Zaatcha, e, depois, exausto, adormeceu profundamente.

Quando despertou, sentindo a língua pastosa, verificou, olhando o relógio, que dormira apenas meia hora e sentiu imperiosa necessidade de respirar o ar da noite. Os ponteiros marcavam meia-noite menos um quarto. Erguendo-se e espreguiçando-se, Lucien lembrou-se que estava na véspera de Natal e, por um capricho irônico da memória, viu-se pequenino, pondo seus sapatos ao fogão.

Nesse instante, o velho Dronski, uma das colunas do antro, o clássico polaco, de casacão ruço, com alamares encaroçados de botões, aproximou-se dele e murmurou algumas palavras por entre a barbicha grisalha:

Empreste-me cinco francos, meu caro senhor. Há dois dias, aposto aqui no “dezessete”, sem arredar pé, e ele não sai… Zombe de mim, si quiser, porém juro que, antes de bater meia-noite, ele sairá.

Lucien deu de ombros. Não tinha mais no bolso nem com que pagar o imposto que os fregueses dali chamavam os “cem soldos” do Polaco. Passou à antecâmara, pôs o chapéu, vestiu o sobretudo e desceu as escadas com agilidade febril.

Desde quatro horas estivera encerrado naquela baiuca, a neve caíra fartamente e a rua — uma das do centro de Paris —, estreita e orlada de altas casas, estava inteiramente branca. No céu liso, azul negro, cintilavam estrelas friamente.

O jogador desenfurnado tremeu sob as peles do sobretudo e caminhou, remoendo intimamente pensamentos de desespero e lembrando-se, mais do que nunca, da caixa de pistolas que o esperava na gaveta da cômoda; porém, após alguns passos, parou bruscamente diante de impressionante espetáculo.

Sobre um banco de pedra, colocado, segundo antigo costume, perto da porta monumental dum palácio, uma menina de seis a sete anos, mal coberta com esfarrapado vestido preto, estava sentada na neve. Adormecera ali, apesar do frio cruel, numa horrível atitude de fadiga e acabrunhamento. Sua pobre cabecinha e seu ombro delicado, encostados a um ângulo da parede, repousavam de encontro à pedra gelada. Um de seus sapatos escorregara do pé que pendia e jazia lugubremente diante dela.

Maquinalmente, Lucien de Hem meteu a mão no bolso, mas lembrou-se que, um momento antes, ali não achara nem uma moeda de vinte soldos, esquecida por acaso, para dar a gorjeta do criado da casa de jogo. No entanto, impelido por instintivo sentimento de piedade, aproximou-se da menina, e ia talvez carregá-la e dar-lhe asilo durante a noite, quando, no sapato caído sobre a neve, viu qualquer coisa brilhar. Curvou-se. Era um luís1 de ouro! Uma pessoa caridosa — uma mulher, sem dúvida — passara por ali e vira, nessa noite de Natal, o sapato da menina adormecida. Lembrando-se da lenda tocante, deixara cair da mão discreta a esmola magnífica, a fim de que a pequena abandonada acreditasse ainda nos presentes feitos pelo Menino Jesus e, apesar de seu infortúnio, conservasse alguma confiança e alguma esperança na bondade da Providência.

Um luís! Eram muitos dias de repouso e riqueza para a mendiga. Lucien estava quase a despertá-la para dizer-lhe isto, quando ouviu ciciar-lhe, numa alucinação, a voz arrastada e untuosa do Polaco, baixinho:

Há dois dias, aposto aqui no “dezessete”, sem arredar pé, e ele não sai… Dou a cabeça a cortar, se, ao bater meia-noite, não sair!

Então, esse moço de vinte e três anos, que descendia duma raça de homens de bem, que usava soberbo nome militar e que nunca manchara sua honra, concebeu espontâneo pensamento. Tomou-o um desejo louco, histérico, monstruoso. Com um olhar, verificou que estava sozinho na rua deserta e, dobrando o joelho, avançando com precaução a mão trêmula, furtou o luís de ouro do sapato caído! Depois, correndo a toda, regressou à casa de jogo, galgou a escada em duas pernadas, empurrou a porta forrada da sala maldita e penetrou nela justamente no momento em que, na pêndula, soava a primeira badalada de meia-noite. Pôs a moeda de ouro sobre o pano verde e gritou:

No dezessete, tudo!

Deu o dezessete!

Com as costas da mão, ele empurrou os trinta e seis luíses ganhos sobre a vermelha. Deu a vermelha! Deixou os setenta e dois luíses sobre a mesma cor. Tonou a dar!

Apostou ainda duas vezes, três vezes, sempre com a mesma sorte. Tinha agora diante de si um montão de ouro e notas, e pôs-se a distribuí-los pelo pano, freneticamente. “Dúzia”, “coluna”, “números”, todas as combinações que fizesse ganhava. Era uma sorte inaudita, sobrenatural. Dir-se-ia que a pequena bola de marfim, saltitante nas casas da roleta, fora magnetizada por esse olhar de jogador e lhe obedecia. Ganhara, em umas doze apostas, os miseráveis bilhetes de mil francos, seu último recurso, perdidos no começo da noite. Agora, apontando aos duzentos e trezentos luíses, em cada parada, servido pela fantástica fortuna, ia em breve ressarcir o patrimônio desperdiçado em poucos anos, reconstituí-lo integralmente. Na pressa de jogar, nem despiu a pesada peliça. Já lhe enchera os grandes bolsos de maços de notas de banco e rolos de peças de ouro, e, não sabendo onde guardar o que ganhava, socava de ouro e papel os bolsos externos da sobrecasaca, do colete, das calças, mesmo a charuteira e o lenço, tudo quanto podia servir de recipiente. E jogava sempre, e ganhava sempre, como furioso! Como um ébrio! E atirava aos punhados os luíses sobre a mesa, ao acaso, à toa, com um gesto de certeza e de desdém!

Entretanto, um ferro em brasa queimava-lhe o coração! Pensava na mendigazinha adormecida na neve, na menina que furtara.

Está no mesmo lugar. Por certo, deve estar ainda!... Daqui a pouco... quando der uma hora — juro! —, sairei daqui, apanhá-la-ei adormecida nos meus braços, levá-la-ei para casa e deitá-la-ei na minha cama... Educá-la-ei, dotá-la-ei, amá-la-ei como minha filha e tomarei conta dela para sempre!

Mas o relógio bateu uma hora, e um quarto, e uma e meia, e uma e três quartos, e Lucien, sentado sempre à mesa infernal. Enfim, um minuto antes de duas horas, o chefe dos banqueiros, bruscamente, se levantou e falou alto:

A banca quebrou, senhores… Basta por hoje!

De um salto, Lucien pôs-se de pé. Afastando brutalmente os jogadores, que o rodeavam e olhavam com invejosa admiração, partiu depressa, degringolou escadas abaixo e correu até o banco de pedra.

De longe, à luz dum lampião, avistou a menina.

Graças a Deus! — exclamou. —Ainda está lá!

Aproximou-se e tomou-lhe a mão:

Oh! Como tem frio! Pobre menina!

Segurou-a por baixo dos braços e ergueu-a para levá-la. A sua cabeça descaiu para trás, sem que ela despertasse.

Como se dorme nesta idade!

Apertou-a contra o peito, como para aquecê-la, e, tomado de vaga inquietação, quis, a fim de tirá-la do pesado sono, beijá-la sobre os olhos, como dantes fazia à sua mais querida amante. Mas, então, viu com terror que as pálpebras da criança estavam entreabertas, deixando aparecer as pupilas vítreas, apagadas, imóveis. Atravessou-lhe o cérebro horrível suspeita e pôs a boca contra a da pequenina. Não sentiu hálito algum.

Enquanto que, com o luís de ouro, furtado à mendigazinha, Lucien ganhava ao jogo uma fortuna, a menina desabrigada morrera de frio!

Sentindo-se afogar na mais horrível angústia, Lucien quis dar um grito… E, no esforço que fez, despertou do pesadelo no banco da casa de jogo, em que adormecera pouco antes da meia-noite e onde o criado da espelunca, partindo às cinco horas da manhã, o deixara dormir por piedade.

Brumosa aurora de dezembro empalidecia as vidraças das janelas. Lucien saiu, pôs o relógio no prego, tomou um banho, almoçou e foi ao escritório do recrutamento apresentar-se como voluntário ao 1º regimento de caçadores da África.

Hoje em dia, Lucien de Hem é tenente e vive, com dificuldade, do seu soldo, sendo um oficial correto como é, e não jogando mais. Parece mesmo que até faz economias, porque, uma vez, em Argel, um camarada, que o seguia à distancia, por uma rua acidentada da Kasba, viu-o dar uma esmola a uma pequena espanhola adormecida à sombra duma porta e teve a indiscrição de olhar o que ele lhe dera. Muito surpreso o curioso ficou com a generosidade do pobre tenente. Lucien de Hem pusera um luís na mão da menina.



Fonte: “Fon-Fon”, edição de 5 de janeiro de 1924.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Ilustração: Dorothy Tennant (1855–1926).


Nota:

1Antiga moeda francesa.

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