SOLFIERI - Conto Clássico Macabro - Álvares de Azevedo

SOLFIERI

Álvares de Azevedo

(1831 – 1852)


Yet one kiss on your pale clay

And those lips once so warm — my heart! My heart.

Byron, Cain.


Sabeis… Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido.

É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!

Era em Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai sempre no verão por aquele céu morno; e o fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. — Eu passeava a sós pela ponte de… . As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito das nuvens.

Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei à aresta de um palácio. — A visão desapareceu no escuro da janela, e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa; havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém — saiu. Eu segui-a.

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou; estávamos num campo.

Aqui — ali — além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

Não sei se adormeci; sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão — as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio, passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão…

Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a bela condessa Barbora. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. — Saí. — Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota do vinho do deleite…

Quando dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados… Era uma defunta!… e aqueles traços todos me lembraram uma ideia perdida… — Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro por quê, eu achara abertas.

Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...

Sabeis a história de Maria Stuart, degolada, e do algoz, “do cadáver sem cabeça e do homem sem coração”, como a conta Brantôme? Foi uma ideia singular a que eu tive.

Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim; rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. — A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados. — Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa — apertou-me em seus braços — um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte — era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me naquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou...

Nunca ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara.

Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo: abaixei-me; olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio esquecido de fechar a porta…

Saí. — Ao passar a praça encontrei uma patrulha.

— Que levas aí?

A noite era muito alta — talvez me cressem um ladrão.

— É minha mulher que vai desmaiada…

— Uma mulher!… Mas essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte — era fria.

— É uma defunta…

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida, ainda.

— Vede, disse eu.

O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo… o punhal já estava nu em minhas mãos frias…

— Boa-noite, moço: podes seguir, disse ele.

Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo — e eu sentia que a moça ia despertar.

Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem-me, corri com mais esforço…

Quando eu passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo…

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia.

Reclamaram que abrisse.

Fechei a moça no meu quarto e abri.

Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda.

A turvação da embriaguez fez que não notassem a minha ausência.

Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.

Dois dias e duas noites levou ela de febre assim…

Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. — Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

À noite, saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um túmulo. — Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida no sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.

Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam… Um dia, o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo…

Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?

— E quem era essa mulher, Solfieri?

— Quem era? seu nome?

— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia, e sentia morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça. —Bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

— Solfieri, não é um conto, isso tudo?

— Pelo inferno, que não! por meu pai, que era conde e bandido, por minha mãe, que era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra — eu vo-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

— Vedes? Murcha e seca como o crânio dela.


Fonte: “A Noite na Taverna”, Tipografia de J. H. Verde, Lisboa/PT, 1878.

Manteve-se a pontuação original. Corrigiram-se evidentes erros de impressão.

 

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