OS ÚLTIMOS CARTUCHOS - Conto Classico de Terror - André Lichtenberger


OS ÚLTIMOS CARTUCHOS

André Lichtenberger

(1870 – 1940)

Tradução de autor desconhecido do início do séc. XX



O que dizias, então, marquês?

Dizia, senhores, que, em minha opinião, é este o plano que devemos seguir. Embarcamos todos amanhã em Douvres. No mesmo dia Puisaye e os seus fazem-se ao mar em Plymouth. As duas esquadras reunidas dominam a Mancha e forçam a entrada do porto de Brest. Apoderamo-nos dos navios rebeldes. A cidade é nossa. E confiscamos os bens dos culpados.

Bravo! E depois?

Lança-se uma proclamação em nome do rei. A Bretanha inteira levanta-se. Não é com um punhado de bandidos uniformizados que a domarão. Em uma semana, somos nós os senhores e alcançaremos a Vendeé.

A Vendée dorme, não está morta.

Bem faltado, meu caro d'Allagre. Então, tendo por nós todo o Oeste do reino, com um exército de cinquenta mil homens, marcharemos sobre Paris.

Oh! — murmurou o barão de Rilliére. —Não será demasiada ousadia?

Erro, meu caro senhor, erro. O camponês esmagado está farto dos tiranos. Reconheceu a sua loucura e só tem uma aspiração: o repouso. Enquanto o espera, sentir-se-á muito feliz em combater conosco para não morrer de fome.

Em quinze dias — interveio impetuosamente o conde de Saint Valmont —, seremos cem mil. Agradecemos aos nossos bons aliados e, depois de uma batalha, talvez sem batalha, entraremos na capital. Purgamo-la dos monstros que a infestam e a França é nossa.

Viva Deus! — exclamou Baudoin. — Isto é que é falar. Será uma campanha magnífica.

Nossa pobre Paris! Como a vamos encontrar!…

Deve estar tresandando a sans-culotte

Ora! — disse d'Aclinval. — Paris será sempre Paris.

Ah, visconde, pois pensas assim? A nós as ninfas da Ópera, as partidas finas, as ceias!

Julgas que a Derval viva ainda?

Se não viver, haverá outras. Paris nunca verá falta de vinho, de mulheres e de casas de jogo.

Nem de cabeleireiros — resmungou Morlaye. — Esses idiotas de ingles nem ao menos sabem fazer um frisamento galante.

O camponês Kennaduc, de cabelos brancos, pensou em voz alta:

Eu verei a igreja de Notre Dame e a de Mme. Saint Geneviève.

Vivam as belas sans culottes, senhores? Havemos de mostrar-lhes que, em amor como na guerra, um aristocrata vale dez patriotas.

Essas palavras eram trocadas em uma noite de junho de 1795, em uma sala enfumaçada da estalagem do “Mutton Head”, em Londres.

Havia alguns instantes, um homem entrara; conservava-se calado, a um canto, mergulhado na obscuridade. Suas feições duras, quase selvagens, revelavam uma energia singular. Era a fisionomia de um camponês. Seu rosto era moço, o corpo revelava a juventude, mas os cabelos eram brancos como o estandarte real.

D'Arlinval, que o viu primeiro, bradou:

Viva! Eis o bravo Michel Bauchy, o herói de Bocage.

Foram todos apertar-lhe a mão. Era um dos gigantes das guerras vendeanas. Filho de camponês, depois escrevente de tabelião, tornara-se um dos chefes dos levantamentos católicos. Recebeu os cumprimentos com dignidade.

Então, meu bravo — perguntou Saint Valmont —, com quem embarca amanhã?

O homem acabou de acender o cachimbo e disse:

Não embarco.

Houve um murmúrio de assombro, seguido de um silêncio desaprovador. Rompeu-o Morlaye:

Tem talvez outra missão; compreendo. Está, sem dúvida, encarregado de sublevar a Vendée?

O homem respondeu:

Não me bato mais.

O espanto redobrou.

Desculpe-nos — disse d’Arlinval. —Não podemos compreendê-lo. Pois quê! O herói de Torou e de Cholet, o vencedor de Chemille, de Mans, de Savenay… Que motivo tão forte…

O homem tirou o cachimbo da boca:

É que tenho medo.

Os presentes deixaram escapar uma exclamação de assombro. Todos sabiam que aquele homem era um herói. Os mais moços puseram-se a rir. Ele lançou-lhes um olhar, pesado como um machado, que lhes cortou o riso.

Ouça — disse o marques d'Orval —, nós todos conhecemos a sua bravura; mas explique essas palavras. Alguns dentre nós poderiam interpretá-las mal.

Se eu falar… Mas não, não poderei fazer-lhe essa narrativa.

Os sorrisos irônicos recomeçaram.

O conde d'Allagre dirigiu-se a Bauchy:

Em nome do rei, meu amigo, fala; sou eu quem to pede.

O homem parou de fumar:

Senhor conde — disse —, minha família deve-lhe muito. Desde que me manda falar, falarei.

Esvaziou o cachimbo e guardou-o na algibeira. E, com as mãos cruzadas sobre a mesa, os olhos perdidos no vácuo, começou:

Era a 14 de maio do ano 1894. Achava-me eu a bordo do “Devastator”, navio de linha inglesa, de oitenta canhões; comandava-o Sir John Palton. Com ele, vogavam duas fragatas, a “Sweet Lady” e a “Albion”, a corveta “Squale” e o palhabote “King Henry”. Atirados ao mar pelos azuis, depois da derrota de Armaillé, recolheram-nos às chalupas inglesas, a mim e aos que restava dos meus homens. A frotinha cruzava a quatro léguas da costa, entre Brest e Lorient. Sabia-se que o navio republicano “Carmagnole” devia demandar Brest. Tratava-se de capturá-lo. A seu bordo encontrava-se o convencional Barcus, que nele instalara uma guilhotina permanente. Deixara Nantes a 9, com quatrocentos e sessenta e sete homens de equipagem e dezenove prisioneiros; entre estes, meu irmão Jean Mathieu, ferido no ataque de Legré.

Na manhã de 14 foi assinalada uma vela. Era a ‘Carmagnole’. Começou a caça. Nossas medidas foram bem tomadas, o barco republicano foi acossado no golfo de Glenano. O ‘Sweet Lady’ e a ‘Albion’ abriram o fogo, amparadas pela ‘Squale’. O inimigo dispunha de uma boa artilharia e respondeu vigorosamente. O vento caíra. Isso durou três horas, sem que nos fosse possível intervir. Depois, subitamente, apanhada por uma corrente de jusante, a ‘Carmagnole’ começou a derivar. Ao passar pela ‘King Henry’, pô-la fora de combate com uma banda da sua artilharia.

Foi então a nossa vez de entrar em combate. O resultado não era duvidoso. Os republicanos tinham dois mastros partidos, metade da equipagem inutilizada, e vinte peças desmontadas. Houve ainda uma hora de canhoneio. Nossas perdas foram sensíveis. Depois, o fogo do inimigo diminuiu. Compreendemos a causa. Examinamos os fragmentos de projéteis caídos a bordo: eram latas de conservas, ferragens, lâminas de chumbo e pedras. Se havia pólvora, faltavam balas.

Uma brisa ligeira começou a soprar. O comandante mandou abrir todas as velas para fulminar o inimigo de mais perto. Em duas horas, estaria tudo acabado. Nesse momento, vimos a primeira coisa horrível. O convés da ‘Carmagnole’ estava raso como um pontão. Apenas uma coisa se conservava erguida. Uma pequena construção de tábuas: a guilhotina. Os melhores artilheiros apontavam-lhe os canhões, os projéteis passavam dos lados, como se uma mão os afastasse. E, de repente, os que tinham óculos viram que para essa guilhotina eram conduzidos homens amarrados. Havia dezenove. Compreendi: antes de morrer, o regicida queria matar.

Precipitei-me para o comandante. Disse-lhe que meu irmão estava ali. Supliquei pela abordagem. Respondeu-me friamente que o seu dever era poupar os homens, e que o inimigo seria destruído a tiros de canhão antes da noite. Além disso, o vento era muito fraco. Eu estava louco, injuriei-o... Dois marinheiros afastaram-me.

Com os olhos fora das órbitas, vi rolarem dezenove cabeças. Uma delas era a de Jean Mathieu. O sol descambava para o mar. Começávamos a acender os nossos fogos. A bordo do navio republicano não havia luz; o canhoneio diminuíra gradualmente, cessando afinal. Nós avançávamos lentamente, lançando-lhe sempre um turbilhão de ferro. A ‘Carmagnole’, flancos abertos, parecia um cadáver prestes a submergir. Não se via ninguém a seu bordo, como se a equipagem estivesse toda morta.

Subitamente — estávamos a cerca de trezentas toesas1 —, inflamaram-se as bocas dos canhões republicanos e um furacão passou sobre nossas cabeças. Um artilheiro caiu a meu lado. O chefe da peça grunhiu: ‘Os demônios reservaram-se para o fim’, e inclinou-se para responder. Era impossível recuar. Íamos sempre para a frente, sobre as águas tranquilas, como um cortejo fúnebre… Maquinalmente, eu olhei para o homem morto a meu lado. Tinha o peito esmagado. Mas, coisa curiosa, não fora cortado em dois, como o são habitualmente aqueles que uma bala alcança a essa distância. A terceira peça da bateria fora igualmente atingida, mas não estava desmontada; simplesmente, cobria-a uma espécie de lama singular. Evidentemente, o inimigo não tinha mais balas. Os canhões eram carregados com projéteis improvisados, ‘não muito duros’, e que se despedaçavam ao encontrar o alvo. Essa resistência selvagem me impressionava. Eu perguntava a mim mesmo que espécie de artilharia podia ser aquela.”

O narrador calou-se, deixando pender a cabeça sobre o peito. Em voz mais surda prosseguiu:

Caía a noite. À luz dos nossos fogos cada vez mais próximos, divisava-se o vulto negro da “Carmagnole”. Uma vez mais o fogo irrompeu das bocas dos canhões, a descarga abatera-se sobre nós. Uma bala, ou antes, alguma coisa que não era uma bala, passou tão perto de mim que a deslocação do ar esteve a ponto de derrubar-me. Não era o silvo bem conhecido de uma massa de ferro ou de chumbo. Aquilo sibilava, com rumores de asas ou de pano, como qualquer coisa, enfim, que “não fosse muito dura”. Eu tinha, portanto, razão! Mas que poderiam eles atirar-nos?

O mastro da mezena, atingido, estalou, mas não caiu. Um oficial, com uma lanterna na mão, precipitou-se… Vi-o voltar um momento depois, pálido como a morte. Os dentes batiam-lhe… Corri ao mastro. Estava coberto de uma espécie de lama gelatinosa, onde se viam coisas negras, brancas, avermelhadas, moles, bizarras. O convés estava empastado de matérias viscosas, infectas… Um arrepio de horror percorreu-me a espinha. Vi as fisionomias contraídas de alguns marinheiros; um assombro pesava sobre o navio.

Uma terceira descarga rasgou a noite, mais formidável, como se o inimigo exasperasse à medida que nós nos aproximávamos. E, sem dúvida impelido por uma carga muito fraca, um dos projéteis veio cair sobre um rolo de cordas e de sacos e, em vez de se despedaçar, rolou quase a meus pés, na sombra. Atirei-me sobre ele… Ia saber, enfim.”

Michel Bauchy enxugou a fronte coberta de suor. E continuou:

Era uma coisa mole em parte, em parte dura; não muito pesada, de forma desigual, arredondada. Envolvi-a um líquido espesso… Embaixo, era ora doce ao tato, ora rude; havia cavidades singulares, saliências, na verdade… Dir-se-ia…

Uma ideia atroz atravessou-me o cérebro… Oh não, Virgem Santa, não era possível, não!… Corri à lanterna de um artilheiro: e vi que, enegrecida pela pólvora, deformada, desfigurada, eu… eu tinha na mão uma cabeça… A cabeça de Jean Mathieu…”

Um frêmito de horror percorreu o auditório.

Então, desvairado, pus-me a bradar: “cabeças, cabeças!”. Compreenderam todos. Um delírio de horror correu sobre nós como gotas geladas que nos entrassem pelo cérebro e parassem na garganta, impedindo-nos de gritar. Houve um concerto de gemidos, de suspiros, de gritos de criança ou de animal que entrevê a morte… Cabeças: eis os últimos cartuchos dos republicanos. Não apenas as dos guilhotinados — eram muito poucos —, mas as de todos os mortos, sem dúvida as dos feridos.

A cinquenta toezas, uma nova descarga de cabeças caiu sobre nós. A trinta toezas, outra ainda. O chefe de peça caiu, o crânio esmagado. Uma cabeça loura matou o segundo tenente. Voavam louras, voavam pretas, voavam grisalhas. Elas chegavam, gritando com suas bocas morta a voz formidável do canhão, e os nossos cabelos arrepiavam-se, sentindo passarem seus beijos mortais e seus furores de além-túmulo. Eram cantos horripilantes de réprobos, risos sarcásticos de desafio, uivos, ameaças, que nos lançavam aqueles pedaços de cadáveres que matavam ainda. Oh, bem veem os senhores, era horrível, era demais!

Uma cabeça esmigalhou-se contra a peça em que eu servia. Os dentes saltaram e enterraram-se no meu ombro, e eu vi os longos bigodes grisalhos colados à culatra da peça. Um horrendo crânio calvo matou um marinheiro que passava...

O convés parecia um açougue. Por toda a parte sangue, cérebros, ossos espalhados, coisas sem nome. Havia dentes que queriam morder ainda, bocas que pareciam rir, olhos hediondos que pareciam olhar. Oh! Aquela noite, aquela noite…

E, no entanto não era tudo… A brisa refrescava. Antes a abordagem. Tudo era preferível a esse combate.

Enfim, o navio inimigo apareceu diante de nós, nu com a guilhotina. Vinte toezas, dez toezas... Os grampos estavam preparados. Os homens armados de machados de chuços, de sabres, preparavam-se para saltar. Em frente, na ‘Carmagnole’ , reinava o silêncio. E um sobressalto de angústia apertava-nos o coração, como se fôssemos combater entes de pesadelo, esses espectros que nos apertam o pescoço e nos asfixiam... invisíveis. Os navios quase se tocavam. Mudas, as goelas dos canhões alongavam-se diante de nós. O pé sobre a amurada, o jarrete distendido, um gigantesco irlandês e eu preparávamo-nos para saltar... E, de súbito, o meu vizinho pôs-se a balbuciar e a persignar-se... Em frente, no outro convés, atrás de uma peça, uma mecha acesa na mão, vi erguer- se alguma coisa.”

Michel Bauchy suspirou.

Aquilo tinha um corpo, aquilo tinha braços, aquilo tinha pernas, aquilo trazia um uniforme de delegado da Convenção, e, no entanto, aquilo não era mais um homem, porque, compreendam, sobre os ombros… não havia mais nada! E eis que a mão aproxima a mecha do canhão, que ribombou e cuspiu a cabeça sobre o irlandês.

Que horror! — exclamou Saint Vahomont. — Estavam todos alucinados!

Sem dúvida, assim o pensei — disse Bauchy —, e foi o que me impediu de ficar louco. E, entretanto, não o estávamos. Precipitamo-nos para a “Carmagnole”, brandindo as armas… Acolheu-nos um silêncio de tumba. Nenhum ser vivo se apresentou… Mas, à dos fachos, vimos, deitados no convés, fileiras de corpos sem cabeça. Contamo-los: eram quatrocentos e oitenta e seis; quatrocentos e sessenta e sete mais dezenove.

Bem veem, pois, que os próprios mortos haviam atirado as cabeças sobre nós. E quando tivemos esta certeza, um terror louco fez com que nos precipitássemos fora daquele cemitério. As amarras foram cortadas, quebrados os grampos. Era muito. Levado pelo vento da noite, o ‘Devastator’ fugiu.

Na manhã seguinte, quando o Sol se ergueu, o navio tinha uma equipagem singular. Uns caminhavam de um para outro lado, com os olhos desvairados, murmurando palavras sem nexo. As cabeças dos outros estavam branca, como a minha. Só havia a bordo loucos e anciãos. Desde essa noite, os senhores compreendem, tenho medo, tenho muito medo.”

Poucos dias depois, os que haviam ouvido essa narrativa desembarcavam na terra da França, em Guiberon. Seus ossos ali dormem.


Fonte: “Para Todos”, edição de 26 de novembro de 1921.

Ilustração: Willem van de Velde, o Jovem (1633 - 1707).


Nota:

1Toesa: antiga medida de comprimento equivalente a, aproximadamente, 1,9 m.

 

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