CIÚMES ANDALUZES - Conto Clássico Cruel - Ítala Gomes Vaz de Carvalho
CIÚMES ANDALUZES
Ítala Gomes Vaz de Carvalho
(1892 – 1948)
Em tempos que já lá vão, o marquês Álvaro Pedro Fuentes y Alcántara y Bienvenide Gomez Pereira, grande de Espanha, e par de Inglaterra pela nobre pureza de um sangue anilado há mais de séculos, chegado em plena força viril aos sessenta anos de idade, sentiu derreter-se-lhe o coração, envolto em velhos pergaminhos, por Miguelita, a mais formosa donzela da Estremadura.
Casaram! O solene marquês, embevecido, levara em triunfo a sua linda noiva a tomar conhecimento e fosse das terras infindáveis, dos numerosos castelos medievais e das riquezas de baixela e de arte que enchiam as salas imensas de suas vetustas casas patrícias. A árvore genealógica da ilustre família figurava, imponente e pesada da espessa ramada, presa à parede do salão de honra, entre o retrato a óleo de Dom Alonso de Alcántara, camareiro do tenebroso rei Filipe, e o de Dom Alexandre Fuentes, encarniçado inquisidor do mesmo rei.
— Aqui tens indicada a tua missão — dizia o severo marques com olhar incisivo em direção ao derradeiro galho da árvore genealógica. —Dar um rebento novo à nossa estirpe gloriosa que a ti confia a semente ilustre dos antepassados, como a terra fecunda e pura, a fim de que concorras para lhe eternizar os feitos e as virtudes!
Miguelita olhava estremulada e tímida, sem poder ainda formular um juízo certo no turbilhão do destino que a trouxera de soldão, como num sonho, ao lustre de tão nobre solar. Mas, ao retumbar dos elogios do esposo ilustre à sua própria estirpe, perpassava-lhe, no profundo negrume dos olhos aveludados, uma expressão irônica, pois se lembrava do horror que experimentara ante a miséria em que viviam os campônios a criar touros, nas terras do marido. Metidos em buracos fundos cavados na encosta dos montes, uns sobre outros, sem ar, sem luz, sujos e mal cobertos, pareciam bichos trogloditas em suas cavernas. Por que tanto sofrimento e abandono ao lado de tanto luxo e riqueza? Assim era que, apesar do deslumbramento de sua nova vida, os dias passavam lerdos e enfadonhos, sem nenhum encanto para o jovem marquês na prisão dourada em que a mantinha o ciúme feroz do mais virtuoso senhor de toda a Andaluzia. Que fazer para encher as horas daqueles dias intermináveis em que só podia contemplar a paisagem silenciosa e falar com as numerosas aias que a rodeavam sem cessar?
Uma tarde de outono, chegou o marquês ao solar, após uma viagem pelas suas terras, em que duramente castigara feitores e feudatários, e encontrou Miguelina sozinha, toda faceira, com uma rosa rubra nos cabelos, a cantar, acompanhando-se de bandurra, junto das grades de ferro do mais alto balcão do castelo.
Alguns quilômetros de bosques e prados circundavam a casa do marquês, isolando-a de qualquer povoado, mas lá longe, pela estrada larga, passava, de quando em vez, um vulto que virava o rosto, sorrindo, em direção da cantora.
Ao se lhe deparar o formoso quadro, Dom Álvaro Pedro Fuentes y Alcántara estremeceu de ciúmes; arrancou a rosa rubra da cabeça de Miguelita e jogou-a pela janela. Os longos cabelos negros, apenas presos por um tênue laço, desenrolaram-se, sedosos, pelas espaduas abaixo.
— Miserável! — rosnou Dom Álvaro, de dentes cerrados.— Estas madeixas são belas demais!
E, tomando de uma podadeira do caseiro, cortou-lhe cerces os cabelos.
Miguelita chorava em silêncio, enquanto as suas mãos corriam ainda, num gesto de anseio automático, sobre as cordas da bandurra, tirando-lhe sons de queixume e de dor.
— Nunca mais tocarás bandurra! — clamou o tirano.
E tomando uma navalha afiadíssima, decepou-lhe as mãozinhas pálidas, que caíram ao chão como espigas ceifadas.
— Maldita! — continuou ele. — Poderás ainda assim cantar e dizer palavras de amor a outro homem! Não pode ser!
E, abrindo-lhe a boca, cortou-lhe a língua na garganta.
—E esses alvos dentes poderão ainda sorrir a alguém. Não quero!
Com a torquês, arrancou-lhe todos os dentes.
— Não basta — berrava o marquês, num crescendo de fúria.
— Com esses olhos de perdição ainda podes atrair os homens.
E, com os dedos aduncos, arrancou-lhe das órbitas os meigos olhos de veludo. Miguelita não podia nem mais verter lágrimas, mas o algoz não satisfizera de todo a sua ânsia destruidora.
—Infame! — gritou, por fim. — Vejo que poderás ainda correr a um convênio de amor!
E, cego de ira, serrou-lhe as pernas!
—Agora estou tranquilo — disse Don Álvaro, com fidalga altivez. — Agora serás sempre e unicamente minha; posso deixar-te só, na certeza de encontrar-te como te deixo.
Desceu ao pátio; encerrado o castelo e mandada subir a ponte levadiça, largou a galope para a caçada ao javali entre seus humildes vassalos.
Quando voltou, noite alta, carregado dos troféus da jornada, não encontrou Miguelita.
Ella havia fugido com o cigano do fundo de suas terras, proprietário de um circo ambulante onde se exibiam monstros humanos…
Fonte: “Fon-Fon”/RJ, 2 de setembro de 1933.
Ilustração: Frans van Mieris (1635 – 1681).

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