MUSOFOBIA - Conto de Horror - Kauan Sueo
MUSOFOBIA
Kauan Sueo
O estado em que a casa me foi entregue não era um dos melhores; era um edifício antigo, muito grande — principalmente se comparado ao cubículo que alugava no centro de Londres — e, claro, muito aterrador.
No dia em que pisei em minha mais nova residência, percebi que o seu antigo dono (que possuía um grau de parentesco comigo, que eu, entretanto, nem mesmo tive a chance de conhecer) não cuidava de seu imóvel fazia muito tempo. Pelo que me disseram, morreu de velhice naquela mesma residência; era do tipo solitário, que sofria de uma persistente depressão, que muito provavelmente colaborou para seu falecimento.
Além do tempo que demorou para ser encontrado (por volta de uma semana após o falecimento), também houve as semanas que se seguiram depois: os processos legais... ah, me dói a cabeça só de lembrar. Bom, o resultado disso é claro, um abandono do imóvel, que estava lá acumulando poeira por um bom tempo antes que eu pudesse ocupá-lo de fato. No começo, admito que não demonstrei interesse — meu apartamento era pequeno, apertado e sufocante, mas era suficiente para mim —, mas depois pensei melhor sobre o assunto e senti algum entusiasmo para ocupar o imóvel, pois descobri que era ainda mais próximo de meu escritório, além de não precisar mais pagar o aluguel, e, deste modo, me acostumei perfeitamente com o ambiente solitário e melancólico do edifício. Agora, quero que você faça um exercício e tente se imaginar morando em uma casa como essas — um edifício grande e antigo, cuja construção ultrapassa em muito os seus anos de vida, repleto de quartos, salas e antessalas — sem ser casado ou ter filhos. Eu posso afirmar: é uma experiência, no mínimo, estranha, e arrisco dizer que, para alguns, até mesmo insuportável — mas, acima de tudo, fui capaz de me acostumar, pois, na maioria das vezes, me contento com minhas meditações solitárias.
Duas semanas depois, havia deixado a casa em um estado apresentável e recebi a visita de Edgar. Devia ser por volta das 17 horas quando ele chegou; o ocaso se aprofundava cada vez mais, e mesmo que ainda houvesse sol, a penumbra invadia a casa por todos os lados. A sala de estar, em especial, ficava alocada bem no interior do edifício, por isso a penumbra a sufocava, de modo que tive de acender uma lareira antes mesmo de escurecer. Ao ouvir Edgar bater à porta, levantei-me de minha poltrona próxima ao fogo, atravessei a sala e rapidamente abri a porta principal. Cumprimentei Edgar com uma cortesia leve que temos para com os amigos — quase informal, mas nunca vulgar —, depois nos apressamos para entrar. Conhecendo meu colega desde os tempos do colégio, sei que ele ia se esforçar ao máximo para não demonstrar interesse ou surpresa, mas até eu consegui sentir em seu semblante uma certa admiração — não sei se pelo edifício em si ou pela minha mudança; antes disso, havia me encontrado muitas vezes em meu claustrofóbico apartamento.
Meneando com a cabeça, ele disse enquanto atingia a sala de estar:
— Uma grande evolução, se comparado com o seu antigo apartamento.
— Heh, e não é? O bairro é mais próximo de onde eu trabalho, também.
— É mesmo? — Edgar riu, sentando-se na poltrona de frente para a minha. — Comentou que era de um parente seu.
— Isso mesmo. Algum tio-avô, não sei ao certo, não conhecia o velho.
Nesse momento, meu convidado desabou em risadas. Conseguia entender perfeitamente o motivo das risadas — era uma situação inusitada demais —, e até eu ri um pouco antes de voltarmos à seriedade.
— É meio inusitado, eu sei. Sabe que minha família é um tanto bagunçada.
— Sim, já me contou suas histórias. O seu parente não tinha nenhuma esposa ou filhos?
— A esposa morreu; acho que nem chegaram a ter filhos. Como era o único que sobrou, bem, ficou para mim.
— Sem esposa e filhos? Em um lugar desses? Imagine a solidão que não sentiu. É uma casa grande e bem…
— Velha?
— Eu ia dizer “antiga”. — Edgar disse antes de rir mais uma vez.
— Não poupe as palavras, Edgar. É uma casa velha mesmo. Meus familiares viveram aqui por muitas gerações, na época em que ainda eram abastados.
Cruzou os braços e observou as chamas na lareira. Conversamos sobre algumas outras futilidades, jogamos uma partida demorada de xadrez. Um tempo depois, havia me levantado junto de Edgar; decidi que iria mostrar para ele outros detalhes sobre a casa. Levei-o ao segundo andar, mostrei os quartos que tinha, até cheguei a comentar algo como “Talvez pudesse alugar esses quartos, ou contratar empregados”, depois a cozinha, relembrando sobre a condição financeira de meus antepassados pelo seu tamanho. O último cômodo que mostrei foi um que nem eu havia dado a devida atenção, mas, como conhecia bem Edgar, sabia que era um apreciador de antiguidades; o local em questão era uma biblioteca, nos fundos da casa. Com a chave em uma mão e uma lanterna na outra, adentramos o cômodo.
— Ainda não tive tempo de limpar o lugar, não se importe com a poeira — esclareci para Edgar.
Mal sabia que a poeira não seria a pior coisa que havia naquele lugar.
Tomando a lanterna de minhas mãos, meu amigo analisou os arquivos que havia nas prateleiras velhas. Alguns eram tão velhos que as páginas desmanchavam, mas os que estavam inteiros chamaram a atenção de Edgar, pois a biblioteca era feita de partes iguais de romances, artigos científicos e arquivos velhos. Entretanto, nosso transe foi quebrado quando ouvimos as pequenas patas arranhando o chão.
Apontamos a lanterna para o outro lado, e quando compreendi o que vi, senti um calafrio me atingir até os ossos.
— Meu Deus! — exclamei.
Os ratos enxameavam o chão do cômodo. Eles não estavam ali antes, e eram muitos, surgindo de lugar nenhum e invadindo minha residência de forma fervorosa. Senti as entranhas torcerem — sempre odiei ratos — e não demorei para disparar para fora da biblioteca, e, num surto de raiva irracional, espantei as criaturas — isto só serviu para espalhar mais a presença das pragas por toda a casa!
O dia terminou de modo lamentável. Nem preciso dizer que não dormi em casa naquele dia, e nem nos dois dias que se seguiram. Logo pela manhã do dia seguinte, eu e Edgar fomos atrás de um exterminador de pragas, e eu retornei assim que ele concluiu seu trabalho. A situação melhorou durante algumas semanas, e isso até poderia ser uma história engraçada se não fosse o que aconteceu depois.
II
Os ratos continuaram a aparecer. Estranhamente, estavam confinados na biblioteca que havia apresentado a Edgar semanas antes, e um ou outro dava um jeito de escapar, saindo para a casa principal. Decidi que arrumaria uma solução prática para o meu problema: adotar um gato. O felino branco me ajudou o bastante, embora tenha me irritado quando trazia para o meu quarto a metade de um rato fedorento, como se me presenteasse — agradecia os presentes que me trazia à golpes de vara.
Os ratos não apareciam mais pela casa principal, mas eu ainda conseguia ouvi-los rastejando pela biblioteca. Pode parecer irracional, mas ouvir seus guinchos e rangidos me atormentava de modo inexplicável; a minha vontade era de atear fogo no cômodo! O pior era o seguinte: não havia nenhum acesso para o quarto senão pela porta, e o cômodo que abrigava a biblioteca era praticamente ao lado da sala de jantar.
Toda noite era atormentado pelos animais e cheguei ao ponto de chamar mais vezes um exterminador de pragas. Mas eles sempre voltavam! Havia algo naquele quarto, naquela maldita biblioteca, que simplesmente fazia os animais surgirem, como se houvesse uma maldição ancestral naquela casa. Foi em uma noite dessas que eu descobri o segredo que havia naquele edifício.
Estava deitado em minha cama depois de um dia exaustivo de trabalho; decidi que ia jantar fora e o fiz, e não demorou muito para eu cair no sono quando deitei na minha cama. Acordei por volta das 2 da noite; alguma coisa tinha me acordado, e quando vi o que era, tive um sobressalto.
Lá estava um imenso e gigantesco rato farejando minha mão! Ergui a palma e bati com toda a minha força na criatura, de modo que ela caiu no chão com um baque, depois levantou-se desnorteada e correu em suas quatro patas andar abaixo. Já estava esgotado, e acredito que tive um acesso de raiva intenso, de tal modo que corri atrás da criatura, tentando pisoteá-la. Desci a escada abaixo, atravessei a sala de estar atrás da criatura, que se apressou, correndo pela casa e me fazendo de tolo, mas no fim ela recuou de volta para sua fortaleza — a biblioteca —, através de um buraco na parede que não consegui distinguir na escuridão.
Furioso, acendi uma vela, deixando que pingasse cera em meus dedos, então alcancei a chave para o cômodo e adentrei. Os pequenos moradores do cômodo correram para fora quando eu invadi, e vi o vulto branco de meu gato os perseguindo ao lado de fora. Acho que quando Edgar e eu adentramos, estávamos focados demais nos livros para perceber, mas, diferente daquele momento semanas atrás, eu estava focado demais em descobrir a fonte da infestação em minha casa. A luz da vela era fraca, mas percebi que, de toda a casa, aquele era o lugar mais antigo e que menos havia recebido atenção; o chão de madeira parecia velho, cheirava a mofo e havia muitos buracos.
Entretanto, não eram dos buracos e fissuras que saíam os ratos; os buracos davam direto para o solo abaixo da casa… com exceção de uma única parte. No centro da sala, uma parte do chão parecia destacada e, assim como o restante do ambiente, também era esburacada, mas essas falhas não levavam ao solo, diferente das outras. Os buracos davam direto para o que parecia ser um espaço aberto, e percebi que era de lá onde os ratos saíam. Segurei nas bordas com uma mão e forcei para cima, e, para minha surpresa, ela abriu como uma espécie de alçapão, que dava direto para um buraco no chão, uma treva infindável, que inicialmente pensei tratar-se de um porão — mal sabia eu que havia encontrado ali o coração das trevas!. Com a vela em mãos, desci para o buraco. Possuía um pequeno lance de escadas de pedra, e, assim que atingi o fundo, senti o ambiente esfriar. A vela garantia a mim uma iluminação baixa, mas, pelo espaço ser apertado, cumpria bem seu propósito. Vez ou outra, um rato passava por entre meus pés, e até um morcego uma vez cruzou meu caminho voando, mas, de algum modo, eu parecia incapaz de parar.
III
Não me pergunte por quanto tempo caminhei, nem eu saberei responder. A cera formava uma cascata em meus dedos, iluminando o caminho daquele túnel que, primeiro, pensei se tratar de um porão; agora, parecia-se mais com uma masmorra.
Ora o caminho era irregular, apertado e estreito, ora era um espaço aberto. Mas havia uma estranha noção em minha cabeça de que era um caminho linear, e que conseguiria voltar para a casa. Talvez eu conseguisse mesmo, mas, quando atingi o ponto mais profundo do sistema de túneis… bom, não havia mais volta.
Não era uma masmorra, tampouco um sistema de túneis subterrâneos; era uma catacumba. Quando dei por mim, me encontrei em uma galeria relativamente maior, o frio me atingindo; parecia que havia dado um mergulho no Tâmisa em pleno inverno. A luz era insuficiente para iluminar todo o local, mas distinguia as paredes entre as sombras. Ergui a mão e caminhei, tentando tatear o que havia em meu caminho. Tamanha era a escuridão que minha mão tocou uma das paredes antes da luz chegar até ela, de modo que toquei uma superfície estranha, lisa, e que pareceu ceder assim que toquei. Acreditava ter batido numa porção de pedra solta, mas, quando vi o que caía diante de meus pés, senti um arrepio cruzar minha espinha: era um crânio.
A ossada era velha, amarelada, e teia se acumulava nas órbitas vazias de seus olhos. Não acreditava no que via, então me aproximei mais da parede e contemplei o ossuário. Inúmeros ossos estavam distribuídos nas paredes — crânios em linha reta, separados, com outros ossos alinhados entre eles, como tíbias, fêmures e tipos que não consegui distinguir na escuridão. Dei um passo em falso e escorreguei, deixando a vela cair no chão, partindo-se em dois e depois apagando. Eu mesmo caí em seguida, e minha memória falha nessa parte de minha narrativa. Acredito que tenha desmaiado, permanecido um tempo deitado em meio aos ratos, morcegos e outros seres das trevas, e por lá fiquei, na escuridão mais profunda que você pode imaginar e sem nenhuma fonte de luz. Depois que me coloquei no caminho de volta, não consegui distinguir as passagens. Acredito que tenha ficado por lá cerca de meia hora, mas, em minha memória, pareceram dias e dias tateando as sombras. Em dado momento, pensei ter ouvido passos ao redor, respirações irregulares e uma presença aterradora me cercando, como se os roedores não fossem a única coisa em meio àquela catacumba. Mas tenho certeza de que os passos não eram mais que a minha mente me pregando peças; não havia vivalma naquele canto esquecido pelos homens, à parte de mim mesmo e dos animais que rastejavam na umbra. Até consegui colocar-me no caminho de volta, ajoelhando-me e tateando o chão, conseguindo identificar pingos de cera de minha vela, que revelaram uma porção do caminho, mas a trilha sumiu, e ainda não havia sinal de luz nas sombras.
Fiquei prostrado e, embora não seja um homem religioso, rezei para Deus me revelar o caminho — e acredito que tenha atendido às minhas preces. Os guinchos e sons de dezenas de patas atravessando o meu caminho cortaram meus ouvidos, e observei sombras movendo-se entre as sombras. Eram ratos, que me contornavam, correndo pelos túneis, tão íntimos deles quanto os corredores de minha casa são para mim. A repulsa que sentia contra os animais sumiu naquele instante e, já sem esperanças, decidi seguir a rataria. Tateando os corredores, seguindo os sons das dezenas de minúsculas patas, os guinchos e as sombras dos roedores, finalmente vi a luz: encontrei-me novamente subindo o lance de escadas de pedra, de volta para a maldita biblioteca.
***
A partir daquele dia, decidi não mais dormir sob aquele teto, mas agora por um motivo diferente do anterior: era incapaz de descansar tranquilo sabendo que uma profundeza imensa estava abaixo de mim e, por mais cético que seja, havia o sentimento de que poderia existir algo muito pior que os ratos em meio às trevas.
Retornei ao apartamento de antes. Decidi que venderia o edifício, e assim o fiz. Nos dias de hoje, ele nem existe mais: foi convertido em uma espécie de museu, servindo de acesso para uma catacumba menor, há muito oculta abaixo daquele bairro.
Sobre os ratos, parei de sentir raiva dos roedores. Hoje, sinto uma indiferença tolerável e, vez ou outra, quando o gato me traz o corpo de um rato como presente, até olho com certa pena para o roedor trucidado.

Comentários
Postar um comentário