A SURTIDA - Conto Clássico Cruel - Máximo Gorki
A SURTIDA
Máximo Gorki
(1868 - 1936)
Tradução:
Faustino da Fonseca
(1871 - 1918)
Pela
rua da aldeia, entre as alvas casinhas da Ucrânia, com um bramido selvagem, se
move uma esquisita procissão.
Uma
chusma de gente do povo caminha, apertada e vagarosa, adianta-se como uma
enorme vaga e, na frente, a passo, vai um sendeiro[1] comicamente
hirsuto, com a melancólica cabeça abaixada. Quando levanta uma das patas
dianteiras, sacode a cabeça arrepiada de uma maneira singular, como se batesse
com ela na poeira da estrada; quando remove a perna de trás, a anca toda se
abaixa para o chão e parece que ele vai cair.
No
jogo dianteiro da carroça, está solidamente amarrada pelas mãos uma pequena
mulher — quase uma mocinha — completamente nua.
Caminha
de um modo extravagante, de banda. A sua cabeça, dotada de cabelos de um louro
carregado, está erguida, um pouco voltada para trás. Olhos estão
desmesuradamente abertos, e fitam um ponto qualquer ao longe. Seu olhar é
estúpido e sem expressão: neles, nada há de humano... Todo o corpo está coberto
de manchas azuladas e vermelhas, redondas e alongadas. O rijo peito esquerdo da
mocinha está navalhado e dele o sangue escorre, formando delgados córregos que
se unem numa linha vermelha no ventre. O a tira sanguínea desce ao longo da
perna esquerda e se estende até o joelho, onde a poeira, mesclada ao sangue,
produz uma crosta escura e repugnante. Parece que no corpo da mulher está
cortada uma tênue e comprida tira de pele; e que, por muito tempo, sem dúvida,
bateram-lhe com uma acha de lenha sobre o ventre: o abdômen está monstruosamente
inchado e horrorosamente azulado.
Os
pés, delicados e pequenos, pisam custosamente sobre o chão. Todo o corpo está
medonhamente torcido e vacila, e é impossível compreender por que e como se
conserva ainda sobre as pernas, completamente cobertas de manchas azuis. Do
mesmo modo, não se pode saber por que todo o seu corpo não cai ao chão e,
dependurada pelos braços, não se deixa arrastar pela carroça por cima do chão
quente e poeirento.
E
em cima da carroça se mantém de pé um rapagão de camisa branca, gorro de
astracã[2],
por debaixo do qual está caída, cortando-lhe a testa, uma mecha de cabelos de
um ruivo brilhante. Com uma das mãos, segura as rédeas; com a outra, um
chicote. E, metodicamente, açoita uma vez o lombo do animal e outra o corpo da
mulher, já pisado a ponto de perder a aparência humana. Os olhos do rapagão
ruivo estão injetados de sangue e brilham num triunfo feroz.
Os
cabelos fazem sobressair a sua tez esverdeada. As mangas da camisa, arregaçadas
até o cotovelo, deixam ver braços fortes, musculosos, cobertos de um pelo
ruivo. A boca está aberta, cheia de dentes alvos, pontudos e, de vez em quando,
o rapagão solta gritos roucos:
—
Xô, feiticeira! Bruxa! Bruxa! Hop! Eh! Eh! Lá vai uma! Filha de uma... Está bem
assim, irmãos?
E
atrás da carroça e da mulher que está amarrada a ela, a multidão — uma onda imensa
— desliza e, também ela, grita, berra, silva, ri-se, brada, exclama, excita...
Os garotos correm. Alguma vez, destaca-se um deles, e grita na cara da mulher
palavras cínicas. Então uma gargalhada da multidão abafa os outros rumores e o
silêncio agudo do chicote no ar...
As
mulheres vão com o semblante excitado, os olhos cintilantes de prazer. Os
homens vão e bradam alguma coisa nauseabunda à criatura que está em pé em cima
da carroça e que se volta para ele e ri-se, com a boca escancarada.
Uma
chicotada sobre o corpo da mulher. O chicote, comprido e fino, enrosca-lhe ao
redor dos ombros e ei-lo preso sob a axila... Então, o aldeão que chicoteia
puxa-o com toda força. A mulher dá um grito estridente e, dobrando-se para
trás, cai com as costas sobre o chão... Do meio da multidão, muitos se
precipitam e escondem-na com os seus corpos, ao se debruçarem sobre ela.
O
cavalo para, mas um momento depois caminha de novo, e a mulher, inteiramente
machucada, quase moribunda, continua a caminhar com a carroça, como antes. E o mísero sendeiro, a cada passada vagarosa,
sacode sempre a cabeça arrepiada, como se quisesse dizer:
—Eis
por que é mesquinho ser uma alimária! Podem obrigar-nos a tomar parte em não
sei que horrores abomináveis.
E
o céu meridional está perfeitamente sereno — nem a mais pequena nuvem —, e para
além das excelsas alturas, o sol estival derrama generosamente os seus raios
ardentes.
Não
é uma pintura alegórica da perseguição e tortura de um profeta ingratamente
desconhecido no seu país! Isto chama-se “A surtida”. Assim punem os maridos a
infidelidade de suas mulheres. É um quadro de gênero. Um costume... eu o
presenciei no dia 13 de junho de 1891, na aldeia de Kandibovka, no governo de
Kerson.
Fonte: Pacotilha, São Luís/MA.
12 de agosto de 1902
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