ASSASSINO? - Conto Clássico de Horror - Bernardo Couto Castillo
ASSASSINO?
Bernardo
Couto Castillo
(1880
– 1901)
Tradução: Paulo Soriano
Para Ciro B.
Ceballos
Silvestre
Abad, assassino, contava a seus amigos algumas de suas prozas. Seus olhos
injetados assumiam diversas expressões, de acordo com a narrativa. Eis o que ele, com voz agitada, dizia:
—
Somente uma vez, uma única vez, senti prazer em matar. E aconteceu tão rápido,
tão brevemente, que às vezes acho que foi um sonho. Eu era, então, muito jovem
e nunca havia matado. Há dias que eu vagava em busca de trabalho, mendigando um
pedaço de pão, arrastando-me, molhado de chuva, tostado pelo sol, morto de
fadiga e trazendo na alma uma destas raivas que inspiram tentações de destroçar
tudo quanto se vê e esfaquear todos quanto passam. Caminhava pensando em toda
negrura de minha sorte, no miserável que eu era. Feio, de uma fealdade
horripilante. Desde menino, os homens apontavam para mim, rindo, e, para
assustar as crianças, ameaçavam-nas com a minha presença. Uma mulher? Ignoro alguma
que me queira. Nem por dinheiro. Eu lhes
causo asco, provoco-lhes repugnância, e, em todos os lugares, as mulheres me repelem.
Naquele
dia, já era tarde. O campo se estendia ao meu redor: grande, imenso, cheio de
árvores, de plantas e de espigas, exuberante de vida, proclamando a abundância
e a riqueza. E eu morria de fome.
Não recordo o que aconteceu depois, nem para onde fui. Sim, creio que andei
muito e parei, muito cansado, em uma rua da vila onde todos dormiam. Era uma rua estreita, silenciosa e iluminada
pelo lampião pendente de um fio. Eu me sentia cansado, muito cansado e
com fome. Aproximei-me do lampião, esperando o primeiro transeunte para
assassiná-lo, para roubá-lo e comer alguma coisa.
Ninguém
passava. Tudo estava em silêncio e eu não tinha forças para dar um passo.
Apoiado na parede, contemplava a chama movediça do lampião e, para mim mesmo,
murmurava maldições. Os outros tinham casa, comida boa, calor nas noites frias.
Tinham família, esposa, filhos. Eu não comia há três dias, não tinha no mundo
mãe, irmãos ou amigos. Ao entrar nos
lugarejos, os cães se lançavam contra mim para morder-me e as crianças fugiam
quando me viam. A mim faltava-me tudo, eu nunca conhecera um prazer, e minhas
mãos nunca tinham tocado um objeto bonito.
Chegou
a mim, não sei de onde, uma música que se escutava com recolhimento, tal como
eu ouvia, quando era menino, durante o pouco tempo em que tive mãe, o órgão da
igreja no momento em que se elevava a hóstia. Pensem: deve ser tão lindo ter
nas noites uma mulher a tocar um instrumento, enquanto se descansa numa boa
poltrona ao abrigo do frio! E eu continuava escutando e pensava em mil coisas,
esquecendo a fome e os desejos criminosos.
Uma
porta se abriu. Vi avançar um pequeno vulto que, quando se aproximou de mim,
nele reconheci uma menininha. Levava nas mãos um cesto e avançava lentamente,
sem medo e, inocentemente, sem qualquer noção do perigo.
A
luz do lampião incidia sobre o seu pequeno, muito branco, muito suave e muito
fino pescoço. Eu nunca tivera em minhas mãos um destes pequerruchos que fazem a
delícia dos outros, dos afortunados, dos bem-aventurados deste mundo.
Meus
pés me conduziram a ela instintivamente. Virei o rosto para a criança, quis
sorrir, mas, quando eu sorrio, o que resulta é um gesto que mais ainda repugnante
torna a minha fealdade. Compreendi isto, mas, apesar de meus esforços, não
consegui afastar-me. Sentia o desejo de tocá-la, de sentir o contato de seus
bracinhos, de tê-la em minhas mãos por um momento, como se fosse minha. Levantei-a
em meus braços. Ela quis gritar, mas o espanto
impediu o seu grito. Trouxe-a para perto do lampião. Como era linda! Como era branca, branca como a luz, como as
flores. Tinha os cabelos dourados e deixava adivinhar um sorriso, como dever
ser o dos anjos. Em seu terror, era bela, e seus olhos grandes, muito abertos, miravam-me
assustados. Depois, a levei aos meus lábios, mas as pontas crispadas e sujas de
minhas barbas machucaram o seu rosto. Então, ela gritou, enquanto golpeava o
meu ventre com seus pés.
Eu ia deixá-la,
deixá-la, ficando triste como nunca!
Jamais
poderia acariciar uma criança. Ia deixá-la, mas a luz do lampião incidiu em cheio
sobre o seu pescoço macio e fino. Experimentei, então, o afã de estreitá-la, de
tocá-la e sentir mais uma vez o contato de sua suavíssima pele. Desde então,
tenho sentido muitos desejos, mil vezes tenho querido apoderar-me de alguma
coisa; mas nunca a tentação foi tão forte, tão imperiosa, tão irresistível
quanto naquele dia. Não conseguindo dominar-me, cedi e a acariciei, sentindo um
estranho prazer ao passar, várias vezes, minha mão áspera e calosa por seu
pescoço liso como uma luva. Ela estava muda de pavor. Seus olhinhos se abriam
cada vez mais, cresciam, e me olhavam aterrorizados. Mas eu não podia, era-me
impossível decidir por deixá-la, então continuava a passar minha mão sobre a
sua pele. Depois, apertei um pouco, não procurando machucar, mas apenas
experimentar em meus dedos a morna maciez que nunca havia sentido. Apertava e
afrouxava, sentindo um inefável prazer.
A
música cessou. Ouvi o ruído de uma porta se abrindo e tive medo — ou melhor,
senti ter que deixar a menininha. Aquele pequeno pescoço branco! Aquela suavidade
sob meus dedos. Aquele prazer! Ter de deixá-los para fugir, para continuar a
caminhada, o mendigar e nada receber... Mas, ao mesmo tempo, continuava
apertando, continuava apertando, continuava apertando a pele e sentindo contra
o meu peito os arrebatados golpes de seu coração... Os passos se aproximavam. Estavam
prestes a surpreender-me, a me encarcerarem para sempre em uma prisão sem que
eu pudesse voltar a sentir aquele gozo! Minha mão não mais se recrearia ao
contato de um corpo suave e macio.
Continuei
apertando com ansiedade, querendo, ao comprimir pela última vez, obter toda a
delícia que pudera sentir apertando... Senti seus músculos, uma dureza e, como
os passos já estavam muito perto de mim, apertei com todas as minhas forças,
desejando sentir sua última palpitação, seu último estremecimento, desejando
arrancar-lhe tantos outros que poderia dela desfrutar, enquanto nunca, nunca
poderia sequer acariciá-la.
E
senti este último estremecimento. Senti que o frêmito percorreu todo o seu
corpo, ao passo em que o seu coração parava de bater. O pescoço parecia um
trapo. Esfriou... Uma mão me agarrou. Mas eu, com um golpe seco, a repeli,
desvencilhando-me para lançar fora a menina e fugir.
Ainda
hoje sinto prazer quando sonho e creio que estou a apertar, a apertar-afrouxar.
Esta foi a única delícia de minha vida! Quando vejo uma criança, sinto o
impulso de arrojar-me sobre ela e de roubá-la para levá-la sempre comigo; e
apertar o seu pescoço, afundar nele os meus dedos. Sim — continuou, enquanto levava um copo aos
lábios —, foi uma grande delícia... Apertar! Afundar os dedos! Sentir aquela
maciez estremecer. Agitar-se em estremecimentos tão pequenos como o corpo
imóvel e os dedos apertando sempre, sempre!
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