GIL BRALTAR - Conto Clássico Insólito - Júlio Verne


GIL BRALTAR

Tradução de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda (1853-1930).
Adaptação textual: Paulo Soriano


Eram uns setecentos a oitocentos, pelo menos. De estatura média, mas robustos, ágeis, flexíveis, feitos para os saltos prodigiosos, cabritando, aos derradeiros clarões do Sol, que se punha para além das montanhas escalonadas, ao oeste da montanha. O disco avermelhado desapareceu em seguida, e a escuridão começou a fazer-se no meio dessa bacia emoldurada pelas longínquas serras de Sanorra, de Ronda e do desolado país do Cuervo.
De súbito, todo o bando se tornou imóvel. Acabava de aparecer o seu chefe nessa espécie de magro costado de burro, que forma a crista do monte. Do lugar onde estavam postados os soldados, na extrema sumidade do enorme rochedo, absolutamente nada se podia ver do que se passava debaixo das árvores.
 — Sriss!... Sriss!... — fez o chefe, cujos lábios, erguidos em forma de cauda de galinha, deram a este assobio uma intensidade extraordinária.
— Sriss!... Sriss!... — repetiu aquele bando estranho, como num conjunto perfeito.
Era um ser singular, esse chefe, de estatura elevada, vestido de pele de macaco, com a lã da banda de fora, a cabeça eriçada de uma cabeleira inculta; no rosto uma barba curta; os pés nus, duros por baixo, como cascos de cavalo.
Levantou o braço direito e estendeu-o para a crista inferior da montanha. Todos repetiram imediatamente esse gesto com uma precisão militar ou, para melhor dizer, mecânica, verdadeiras marionetes movidas pela mesma mola. Abaixou o braço; e eles abaixaram-no também. Curvou-se para o chão e eles curvaram-se, na mesma atitude. Ele levantou e brandiu um sólido pau; eles fizeram o mesmo e executaram um moulinet igual — um movimento que os jogadores de pau chamam "rosa coberta".
Depois, o chefe voltou costas, insinuou-se por entre as ervas, foi de rastos por debaixo das árvores. O bando seguiu-o, de rastos também.
Em menos de dez minutos, os atalhos do monte, cavados pela chuva, foram transpostos, sem que o deslocar de um seixo tivesse denunciado a presença dessa massa em movimento.
Um quarto de hora depois o chefe parou; todos pararam também, como se ficassem pregados ao chão. Duzentos metros acima, aparecia a cidade, ao longo da sombria enseada. Numerosas luzes estrelavam o grupo confuso dos quartéis. Além, os faróis dos navios de guerra, as luzes dos navios mercantes e pontões ancorados ao largo refletiam-se na superfície das águas tranquilas. Mais adiante, no extremo da Ponta da Europa, o farol projetava o seu feixe de luz sobre o estreito.
Nesse momento, rebentou um tiro de peça, o First gum fire, dado de uma das baterias rasantes. E, então, ouviu-se de repente o rufo dos tambores, acompanhado do agudo som dos pífanos.
Era a hora do recolher.
Nenhum estrangeiro podia, então, percorrer a cidade sem ser escoltado por um oficial da guarnição. As equipagens dos navios tinham ordem para recolher a bordo antes que se fechassem as portas. De quinze em quinze minutos circulavam patrulhas, que conduziam à casa da guarda os retardatários e os ébrios. Depois, tudo se calou.
O general MacKackmale podia dormir a sono solto.
Não parecia que a Inglaterra tivesse nada a recear, naquela noite, para o seu rochedo de Gibraltar.

CAPÍTULO II

Todos sabem o que é esse rochedo formidável, da altura de quatrocentos e vinte metros, sobre uma base da largura de duzentos e quarenta e cinco, por quatro mil e trezentos de comprimento. Parece-se algo com um leão deitado, com a cabeça do lado de Espanha e a cauda metida no mar. O rosto mostra os dentes — setecentos canhões assestados por entre as canhoneiras —, dentes de velha, como costumam chamar-lhes. Mas uma velha que mordia duro, se a irritavam. E a Inglaterra está ali solidamente estabelecida, como em Perin, em Adem, em Malta, em Pulo-Pinang, em Hong-Kong, outros tantos rochedos, os quais, qualquer dia, com os progressos da mecânica, ela converterá em fortalezas girantes.
Entretanto, Gibraltar assegura ao Reino Unido um domínio incontestável sobre dezoito quilômetros daquele estreito que a maça de Hércules abriu entre Abila e Calpe, no mais profundo das águas mediterrâneas.
Teriam os espanhóis renunciado a reaver esse pedaço da sua península? Sim, decerto, porque parece ser inatacável por terra e por mar. Contudo, havia um a quem obcecava a ideia de reconquistar aquele rochedo ofensivo e defensivo. Era o chefe do bando, um ser estranho, pode mesmo dizer-se doido. Esse fidalgo chama-se precisamente Gil Braltar, nome que, decerto, na sua ideia, o predestinava para aquela conquista patriótica. O seu cérebro não tinha resistido a isso e o seu lugar deveria ser no hospital de doidos. Conheciam-no muito bem: contudo, havia dez anos que não se sabia bem o que era feito dele. Talvez andasse errante por esse mundo! Mas a verdade é que ele não tinha deixado o seu domínio patrimonial. Vivia uma vida de troglodita, no meio dos bosques, metido nas cavernas, e especialmente no fundo desses redutos inacessíveis das grutas de S. Miguel, que, segundo dizem, comunicam com o mar. Reputavam-no morto. E, contudo, ele vivia à maneira desses homens selvagens, destituídos de razão, que não obedecem senão aos instintos da animalidade.

CAPÍTULO III

Dormia a sono solto o general MacKackmale. Com as orelhas maiores do que determina o regulamento; com os braços de um tamanho desmedido; os olhos redondos, metidos nas órbitas, entre as ásperas sobrancelhas; o rosto emoldurado numa barba rija; a sua fisionomia cheia de caretas; com os seus gestos de antropopiteco; com o prognatismo extraordinário do seu queixo, era de uma fealdade notável — mesmo num general inglês. Um verdadeiro macaco, excelente militar, aliás, apesar do seu feitio simiesco.
Sim! Dormia na sua confortável habitação de Mainstreet, essa rua sinuosa que atravessa a cidade, desde a Porta do Mar até à Porta da Alameda. Talvez ele estivesse a sonhar que a Inglaterra se apoderava do Egito, da Turquia, da Holanda, do Afeganistão, do Sudão, do Transval: numa palavra, de todos os pontos do Globo, ao seu bel-prazer e isso no momento em que estava em risco de perder Gibraltar.
A porta do quarto abriu-se bruscamente.
— O que há? — perguntou o general MacKackmale, erguendo-se num pulo.
— Meu general — respondeu o ajudante de campo, que acabava de entrar como uma granada-torpedo —, a cidade está invadida!
— Pelos Espanhóis?
— Naturalmente!
— Pois eles atreveram-se!...
O general não concluiu. Pôs-se em pé; deitou fora o lenço que lhe atava a cabeça, enfiou as calças, envergou a jaqueta, calçou as botas, pôs o chapéu, pendurou à cinta a espada, dizendo:
— Que bulha é esta que eu ouço?

— É o ruído dos rochedos que caem sobre a cidade, como avalanches.
— São muitos, esses patifes?
— Devem ser.
— Para isso reuniram-se então todos os bandidos que andam na costa: os contrabandistas de Ronda, os pescadores de S. Roque, os refugiados que pululam nas aldeias?
— É para recear, meu general!
— E o governador foi avisado?
— Não! E impossível ir até a sua casa, na Ponta da Europa. As portas estão ocupadas, as ruas cheias de assaltantes.
— E o quartel da Porta do Mar?
— Não há meio de lá chegar! Os artilheiros devem estar cercados no seu quartel.
— Quantos homens traz consigo?
— Uns trinta, meu general, de infantaria, do 3.º regimento, que conseguiram safar-se.
— Por S. Dunstan! — exclamou MacKackmale. — Gibraltar arrancada à Inglaterra por esses vendedores de laranjas!... Não há de ser!... Não! Não há de ser! No mesmo instante a porta abriu-se, dando passagem a um ser estranho que saltou aos ombros do general.

CAPÍTULO IV

 — Renda-se! — exclamou ele, com voz rouca, que tinha mais de rugido do que de voz humana.

Alguns homens, que tinham vindo com o ajudante de campo, iam lançar-se ao homem, quando, à luz da lâmpada do quarto, o reconheceram.
— Gil Braltar! — exclamaram.
Era ele, com efeito, o Hidalgo, em quem ninguém já pensava há muito tempo, o selvagem das grutas de S. Miguel.
— Renda-se! — rugia ele.
— Nunca! — respondeu o general MacKackmale.
De repente, no momento em que os soldados o rodeavam, Gil Braltar soltou o seu “sriss”, agudo e prolongado. Imediatamente, o pátio da habitação, e a habitação mesmo, estavam cheios de uma horda invasora.
E, hão de acreditar? Eram monos, eram macacos, e às centenas!
Viriam eles tomar aos ingleses esse rochedo de que são os verdadeiros proprietários, esse monte que ocupavam bem antes dos espanhóis, bem antes de Cromwell ter sonhado a sua conquista para a Grã-Bretanha? Era assim, realmente! E eram temíveis pelo número, esses macacos sem cauda, com os quais só se vivia de acordo consentindo-se nas suas pilhagens; esses seres inteligentes e audaciosos que todos fugiam de molestar, porque se vingavam — isso sucedeu muitas vezes —, fazendo rolar enormes rochedos sobre a cidade.
E agora esses macacos estavam feitos soldados de um doido, tão selvagem como eles: desse Gil Braltar que eles conheciam, que vivia a sua vida independente; desse Guilherme Tell quadrúmano, cuja existência toda se concentrava nesse pensamento: expulsar os estrangeiros do território espanhol.
Que vergonha para o Reino Unido se a tentativa vingasse! Os Ingleses, vencedores dos índios, dos abissínios, dos tasmanianos, dos australianos, dos hotentotes, de tantos outros, vencidos por mil macacos!
Se tal catástrofe se desse, o general MacKackmale não tinha outra coisa a fazer senão dar um tiro na cabeça! Não se sobrevive a tal desonra!
Contudo, antes que os macacos, chamados pelo assovio do seu chefe, tivessem invadido o quarto, alguns soldados teriam podido lançar-se sobre Gil Braltar. O doido, dotado de uma força extraordinária, resistiu e não foi sem custo que se conseguiu sujeitá-lo. Tendo-lhe sido arrancada na luta a sua pele de empréstimo, ele ficou, quase nu, para um canto, amordaçado, atado, sem se poder mexer ou dizer palavra. Pouco tempo depois MacKackmale partia pela casa fora, resolvido a vencer ou morrer, segundo a fórmula militar. Mas o perigo não era menor lá fora. Decerto alguns soldados de infantaria tinham podido reunir-se junto da Porta do Mar e marchavam para a habitação do general. Diversos tiros partiram na Main-street e na Praça do Comércio. Em todo o caso, o número de macacos era tal que a guarnição de Gibraltar estava em risco de ser em breve levada a ceder o lugar. E então, se os espanhóis fizessem causa comum com aqueles macacos, as fortalezas seriam abandonadas, as baterias desertas, as fortificações não contariam um único defensor e os ingleses, que tinham tornado aquele rochedo inexpugnável, não o tornariam a ocupar.
De súbito, operou-se uma reviravolta.
Com efeito, ao clarão de alguns archotes que alumiavam o pátio, viram os monos bater em retirada. À frente do bando marchava o chefe, brandindo o pau. Todos, imitando os seus movimentos de braços e pernas, o seguiram, no mesmo passo.
Teria então Gil Braltar podido libertar-se das suas prisões, fugido do quarto onde o guardavam? Era fora de dúvida! Mas aonde se dirigia ele agora? Iria à Ponta da Europa, ao palácio do governador, dar-lhe assalto, intimá-lo a render-se, como fizera ao general?
Não! O doido e o seu bando desciam a Main-street. Depois, tendo transposto a Porta da Alameda, todos tomaram obliquamente através do parque e subiram as escarpas da montanha.
Uma hora depois, não ficava na cidade um único dos invasores de Gibraltar.
Que se tinha passado?
Pouco depois vieram a sabê-lo, quando o general apareceu no extremo do parque. Fora ele que, tomando o lugar do doido, dirigira a retirada do bando, depois de se ter envolvido na pele de macaco do prisioneiro. Parecia-se por tal modo a um quadrúmano, esse bravo guerreiro, que os próprios monos se tinham enganado. De modo que lhe não fora preciso mais do que aparecer para os arrastar atrás de si.
Uma ideia genial, simplesmente, que lhe foi imediatamente recompensada com a cruz de S. Jorge. Quanto a Gil Braltar, o Reino Unido cedeu-o, em troca de especiarias, a um tal Barnum, que fez fortuna, mostrando-o nas diversas cidades do Antigo e do Novo Mundo. E Barnum diz, a quem o quer ouvir, que não é o selvagem de S. Miguel que ele exibe, mas o general MacKackmale em pessoa.
Todavia, esta aventura serviu de lição ao Governo de Sua Majestade Graciosa. Compreendeu que, se Gibraltar não podia ser tomada pelos homens, estava à mercê dos macacos. De modo que a Inglaterra, muitíssimo prática, resolveu não mandar para lá senão o mais feio dos seus generais, para que os monos pudessem ser enganados mais uma vez. Esta medida assegura-lhe, para sempre, a posse de Gibraltar. 

________________________________

Este conto está disponível em e-book, nos formatos PDF, e-PUB e MOBI em FREE BOOKS EDIÇÕES VIRTUAIS.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe