MESTRE ZACHARIUS - Novela Fantástica - Júlio Verne
MESTRE ZACHARIUS
Júlio
Verne (1828 – 1905)
Tradução
de António Manuel da Cunha e Sá (1854-1909)
Ilustrações
de Jules Théophile Shuler (1821 – 1878)
Adaptação textual: Paulo Soriano
Adaptação textual: Paulo Soriano
I — Uma Noite de Inverno
A
cidade de Genebra está situada na extremidade ocidental do lago a que deu o
nome. O Ródano, que a atravessa ao sair do lago, divide-a em dois bairros
distintos, e ele mesmo é dividido, no centro da cidade, por uma ilha situada
entre as duas margens. Esta disposição topográfica reproduz-se muitas vezes nos
grandes centros do comércio ou da indústria. Decerto que os primeiros nativos
se sentiram tentados pela facilidade de transporte que lhes ofereciam as
rápidas correntes dos rios, essas estradas que caminham por si mesmas, segundo
a expressão de Pascal[1].
Com o Ródano, as tais estradas não caminham, correm.
No
tempo em que as construções regulares e ao gosto moderno não se elevavam ainda
nesta ilha, ancorada como uma galeota holandesa a meio do rio, a admirável
acumulação das suas casas empoleiradas umas sobre as outras oferecia à vista um
quadro a um tempo confuso e encantador. A limitada extensão da ilha tinha feito
com que algumas dessas construções se elevassem sobre estacas e se metessem
pelas águas revoltas do Ródano. Aqueles grossos madeiros, enegrecidos pelo
tempo, gastos pelas águas, pareciam as pernas de imenso caranguejo e produziam
fantástico efeito. Algumas linhas de pesca, amarelecidas pelo uso, verdadeiras
teias de aranha estendidas no seio deste alicerce secular, agitavam-se na
sombra, semelhando a folhagem daqueles velhos troncos de carvalho, e o rio,
engolfando-se no meio daquela floresta de estacas, escumava, mugindo de modo
lúgubre.
Uma
das habitações da ilha impressionava pelo seu aspecto de estranha vetustez. Era
a casa do velho relojoeiro, mestre Zacharius, de sua filha Gérande, de Aubert
Thun, seu aprendiz, e da sua velha criada Scholastique.
Que
homem extraordinário não era aquele Zacharius! A sua idade parecia
indecifrável. O velho mais idoso de Genebra não poderia dizer há quanto tempo a
sua cabeça magra e afilada lhe vacilava sobre os ombros, nem qual fora o dia em
que pela primeira vez o tinham visto andar pelas ruas da cidade, deixando
flutuar ao vento a sua longa cabeleira branca. Este homem não vivia. Oscilava à
maneira do pêndulo dos seus relógios. O seu todo, magro e cadavérico, tinha
toques sombrios. Como os quadros de Leonardo da Vinci, enegrecera com o tempo.
Gérande
habitava o mais belo aposento da velha casa, donde, passando por uma janela
estreita, o seu olhar ia melancólico demorar-se sobre os cumes nevados do Jura.
Porém, o quarto de dormir e oficina do velho ocupavam uma espécie de
subterrâneo, que tocava quase na superfície do rio e cujo sobrado se apoiava
sobre as próprias estacas. Desde tempos imemoriais, mestre Zacharius só de lá
saía às horas de comer ou quando ia regular os relógios da cidade. O resto do
tempo passava-o junto de uma mesa coberta de numerosos instrumentos de
relojoaria, que ele havia, na sua maior parte, inventado.
Porque
ele era um homem hábil, em toda a França e Alemanha as suas obras eram muito
estimadas. Os mais peritos operários de Genebra reconheciam francamente a sua
superioridade, o que era uma honra para esta cidade, cujos habitantes o
apontavam dizendo:
—
A ele cabe a glória de ter inventado o scapo!
Efetivamente,
desta invenção, que os trabalhos de Zacharius mais tarde farão compreender,
data a origem da verdadeira relojoaria.
Depois
de trabalhar habilmente e por muito tempo, Zacharius arrumava vagarosamente a
ferramenta, cobria com leves mangas de vidro as peças que acabava de ajustar, e
fazia descansar a roda ativa do torno; em seguida, levantava uma espécie de
alçapão aberto no sobrado do seu reduto, e, debruçado horas inteiras, enquanto
o Ródano se precipitava ruidosamente por baixo dele, embriagava-se aspirando-lhe
os caliginosos vapores.
Certa
noite de inverno, a velha Scholastique serviu a ceia, da qual, segundo costume
velho, participava o moço aprendiz. Apesar dos manjares cuidadosamente
preparados que tinha diante de si em bonita louça azul e branca, mestre
Zacharius não comeu. Mal respondeu às palavras meigas de Gérande, a quem a
taciturnidade mais sombria de seu pai preocupava visivelmente, e a própria
tagarelice de Scholastique passou-lhe tão despercebida como os bramidos da
torrente, a que já não prestava atenção. Depois desta refeição silenciosa, o
velho relojoeiro levantou-se da mesa sem abraçar a filha, sem dar a todos as
boas-noites do costume. Desapareceu pela porta estreita que ia ter ao seu
aposento, e, sob os seus passos pesados, a escada soltou profundos gemidos.
Gérande,
Aubert e Scholastique ficaram por alguns momentos sem falar. Naquela noite, o
tempo estava sombrio: as nuvens arrastavam-se com dificuldade ao longo dos
Alpes e ameaçavam desfazer-se em chuva; a temperatura inclemente da Suíça
enchia a alma de tristeza, e os ventos do sul vagueavam nos arredores e
soltavam agudos silvos.
—
Sabe, minha querida menina — disse por fim Scholastique —, que o nosso mestre
anda há uns dias muito introspectivo? Valha-me Nossa Senhora! Não me admira que
ele não tivesse fome, porque as palavras ficaram-lhe no ventre, e muito esperto
havia de ser o diabo para lhe apanhar alguma!
—
Meu pai tem algum pesar secreto que não posso sequer imaginar — redarguiu
Gérande, ao mesmo tempo que uma dolorosa inquietação manifestava-se em seu
rosto.
—
Menina, não se entregue à tristeza. Conhece os singulares costumes de mestre
Zacharius. Quem pode ler-lhe na fronte os seus pensamentos secretos? Teve
decerto algum motivo de aborrecimento, mas amanhã não se lembrará disso, e se arrependerá
deveras de ter causado algum desgosto à sua filha.
Era
Aubert quem assim falava, fitando os formosos olhos de Gérande. Auber era o
único empregado que mestre Zacharius admitiu à intimidade dos seus trabalhos,
porque lhe conhecera a inteligência, a discrição e a bondade natural. Aubert
afeiçoara-se a Gérande com a fé misteriosa que preside à dedicação heroica.
Gérande
tinha dezoito anos. O oval do seu rosto lembrava o das cândidas madonas que a
veneração suspende ainda nos cantos das ruas das velhas cidades da Bretanha. Em
seus olhos manifestava-se uma infinita ingenuidade. Inspirava amor, como a mais
suave realização de um sonho de poeta. Nos vestidos ostentava cores pouco
vistosas e o alvo corpete, que lhe velava o seio, tinha o tom e o cheiro
próprios das vestimentas de igreja. Gérande passava a existência mística
naquela cidade de Genebra, que ainda não se entregara naquele tempo à aridez do
calvinismo.
Ao
mesmo tempo que lia de manhã e de tarde as orações latinas no seu missal com fechos
de ferro, Gérande lera também o sentimento que se abrigava no coração de Aubert
Thun, e adivinhara a profunda dedicação que o mecânico lhe votava.
Efetivamente, aos olhos do jovem homem, o mundo todo resumia-se na velha casa
do relojoeiro, e, quando, acabado o trabalho, largava a oficina de mestre
Zacharius, ia passar o resto do tempo junto da jovem.
A
velha Scholastique via isto, mas não dizia palavra. A sua loquacidade
exercia-se de preferência sobre as desgraças do tempo e as pequenas misérias do
lar doméstico. Ninguém procurava fazê-la calar. Sucedia com ela o mesmo que
sucedia com as caixas de música que se fabricavam em Genebra: depois de lhe dar
corda, seria preciso quebrá-la para não tocar todas as suas árias.
Vendo
Gérande mergulhada numa dolorosa taciturnidade, Scholastique levantou-se da
velha cadeira de pau, pôs uma vela num castiçal, acendeu-a e colocou-a diante
de uma pequena imagem da Virgem abrigada no seu nicho de pedra. Era costume
ajoelharem-se diante desta madona padroeira do lar doméstico, pedindo-lhe a sua
graça protetora para a noite que se seguia; mas naquela noite Gérande
permaneceu silenciosa no seu lugar.
—
Ora bem, minha querida menina — observou Scholastique, com admiração —, a ceia
acabou e são horas de dar as boas-noites. Quererá cansar a vista com
prolongadas vigílias?... Valha-me Nossa Senhora! É tempo de dormir e de
procurar alguma alegria em sonhos agradáveis! Nestes tempos malditos em que
vivemos, quem pode contar com um dia feliz?
—
Não será preciso mandar chamar algum médico para meu pai? — perguntou Gérande.
—
Um médico! — exclamou a velha criada. — Mestre Zacharius deu alguma vez ouvidos
às suas invenções e sentenças? Para os relógios pode haver remédios, mas não
para o corpo!
—
Que se há de então fazer? — murmurou Gérande. — Ele iria trabalhar? Iria
descansar?
—
Gérande — acudiu Aubert com doçura —, alguma contrariedade moral magoa mestre
Zacharius; não é mais nada.
—
E conhece essa contrariedade?
—
Talvez, Gérande.
—
Conte-nos isso — acudiu Scholastique com vivacidade, apagando a vela por
economia.
—
Há alguns dias, Gérande — começou o jovem operário —, que se dá um fato
absolutamente incompreensível. Todos os relógios que seu pai tem feito e
vendido param de repente. Têm-lhe trazido um grande número deles. Desmanchou-os
com cuidado: as molas estavam em bom estado e as rodas perfeitamente colocadas.
Tornou a montá-los com mais cuidado, mas, apesar da sua habilidade, os relógios
conservaram-se parados.
—
Isso é coisa do diabo! — exclamou Scholastique.
—
O que quer dizer com isso? — perguntou Gérande. — O fato parece-me natural.
Tudo na Terra tem um limite, e o infinito não pode ser obra dos homens.
—
Entretanto, nem por isso deixa de ser verdade que anda nisto o que quer que
seja de extraordinário, misterioso — redarguiu Aubert. — Eu mesmo ajudei mestre
Zacharius a procurar a causa do desarranjo dos seus relógios. Não a pude achar,
e, mais de uma vez, desesperado, os instrumentos me caíram das mãos.
—
Também — replicou Scholastique — para que se entregar a um trabalho de réprobos?
Pois é natural que um pequeno instrumento de cobre possa caminhar sozinho e
marcar precisamente as horas? Deviam ter-se contentado com o quadrante solar.
—
Não há de falar desse modo, Scholastique, quando souber que o quadrante solar
foi invenção de Caim. — Meu Deus! O que está me dizendo?
—
Parece-lhe — perguntou Gérande com ingenuidade — que se pode pedir a Deus que
restitua a vida aos relógios de meu pai?
—
Sem dúvida alguma — respondeu o jovem operário.
—
Bom, aí temos rezas inúteis — resmungou a velha —, mas Deus há de perdoar em
vista da intenção.
Tornou-se
a acender a vela. Scholastique, Gérande e Aubert ajoelharam-se sobre as lajes
do quarto, e a jovem rezou pela alma de sua mãe, pela santificação da noite,
pelos presos e os viajantes, pelos maus e pelos bons, e, principalmente, pelos
desconhecidos pesares de seu pai.
Em
seguida, estas três devotas criaturas levantaram-se com alguma confiança no
coração, porque tinham depositado as suas mágoas no seio de Deus.
Aubert
recolheu-se ao seu quarto, Gérande sentou-se, muito pensativa, ao pé da janela,
ao tempo que a última claridade do dia de todo se apagava na cidade de Genebra,
e Scholastique, depois de ter deitado um pouco d’água sobre os tições e corrido
os dois enormes ferrolhos da porta, meteu-se na cama, onde não tardou a sonhar
que morria de medo.
Entretanto,
o horror dessa noite de inverno aumentava. De quando em quando, de envolta com
os vagalhões do rio, o vento engolfava-se por entre a estacaria, e a casa
tremia toda. Mas a jovem, absorta na sua tristeza, só pensava em seu pai.
Depois das palavras que ouvira a Aubert Thun, a doença de mestre Zacharius
tomara a seus olhos proporções fantásticas, e parecia-lhe que aquela existência
tão querida, tendo-se tornado puramente mecânica, só com dificuldade se movia
nos eixos já gastos.
De
repente o guarda-vento, violentamente impelido pela ventania, bateu na janela
do quarto. Gérande estremeceu e levantou-se sobressaltada, sem compreender a
causa do ruído que a fazia sair do seu torpor.
Depois
de se tranquilizar um pouco, abriu a vidraça. As nuvens tinham rebentado, e uma
chuva torrencial ressaltava sobre os telhados vizinhos. A jovem debruçou-se
para agarrar o postigo balouçado pelo vento, mas teve medo. Pareceu-lhe que as
águas do rio e do céu, confundindo-se tumultuosamente, submergiam aquela frágil
casa, cujo vigamento rangia por todos os lados. Quis fugir do seu quarto, mas
notou por baixo dele a reverberação de uma luz que devia vir do quarto de
mestre Zacharius, e, num momento em que os elementos se calavam, chegaram-lhe
aos ouvidos alguns queixumes. Tentou fechar a janela, mas não pôde. O vento
empurrava-a com violência, como um malfeitor que se introduz numa casa.
Gérande
julgou que enlouquecia de terror! Que estaria seu pai a fazer? Abriu a porta,
que lhe escapou das mãos e bateu ruidosamente, impelida pela tempestade.
Gérande achou-se então na sala onde havia ceado, que estava às escuras, e,
conseguindo às apalpadelas chegar à escada que ia dar à oficina de mestre
Zacharius, desceu por ela, pálida e meio morta de susto.
O
velho relojoeiro estava em pé no meio daquele aposento onde ecoavam os mugidos
do rio. Os cabelos eriçados davam-lhe um aspeto sinistro. Falava, gesticulava
sem ver, sem ouvir! Gérande ficou junto do limiar da porta.
—
É a morte! — dizia mestre Zacharius com voz cava. — É a morte!... Que tempo me
resta agora de vida, depois de haver dispersado a minha existência pelo mundo?
Porque eu, mestre Zacharius, sou na verdade o criador de todos os relógios que
fabriquei! Foi uma parte da minha alma que encerrei nessas caixas de ferro, de
prata ou de ouro! De cada vez que para um desses relógios malditos, conheço que
o meu coração cessa de bater, porque eu os regulei pelas minhas pulsações!
E,
falando deste modo estranho, o velho dirigiu a vista para a sua mesa de
trabalho. Achavam-se ali todas as peças de um relógio que ele tinha
cuidadosamente desmanchado. Pegou um cilindro oco, chamado tambor, no qual está
metida a mola, e tirou para fora a espiral de aço, que, em vez de se desenrolar,
segundo as leis da elasticidade, ficou enrolada como uma víbora adormecida.
Parecia paralisada, como esses velhos impotentes cujo sangue afinal se
enregelou. Em vão o mestre Zacharius procurou distendê-la com os seus dedos
emagrecidos, cuja sombra se alongava desmedidamente sobre a parede, mas não o
conseguiu, e, instantes depois, soltando uma imprecação terrível, arremessou-a
pelo alçapão aos vagalhões do Ródano.
Gérande,
como que pregada no chão, estava sem fôlego, sem movimento. Queria e não podia
aproximar-se de seu pai. Apoderava-se dela uma alucinação vertiginosa. De
súbito ouviu uma voz na escuridão murmurar-lhe ao ouvido:
—
Gérande, minha cara Gérande! A dor ainda a conserva de pé? Recolha-se. A noite
está fria.
—
Aubert! — murmurou a jovem, a meia voz. — Aqui?
—
Não devia inquietar-me com o mesmo que a inquieta? — redarguiu Aubert.
Estas
meigas palavras fizeram reviver a jovem. Encostou-se ao braço do mecânico e
disse-lhe:
—
Meu pai está bastante doente, Aubert! Só o senhor o poderá curar, porque aquela
doença da alma não cederá às consolações da filha. Tem o espíro afetado por um
acidente muito natural, e o senhor, trabalhando com ele no conserto dos seus
relógios, conseguirá restituir-lhe a razão. Aubert, não é verdade — ajuntou
ainda impressionada pelo que vira —, não é verdade que a vida de meu pai se
confunde com a dos seus relógios?
Aubert
não respondeu.
—
Mas a ocupação que meu pai exerce não será condenada pelo céu? — exclamou
Gérande, estremecendo.
—
Não sei — respondeu o artífice, aquecendo com as suas mãos as mãos geladas da
jovem. — Mas volte para o seu quarto, minha pobre Gérande, e com o repouso
recupere alguma esperança!
Gérande
voltou vagarosamente para o seu quarto e aí permaneceu até ao romper do dia,
sem que o sono lhe fizesse cerrar as pálpebras, enquanto mestre Zacharius, mudo
e imóvel, via o rio correndo ruidosamente a seus pés.
II — O Orgulho da Ciência
É
proverbial a severidade do mercador genebrês em matéria de negócio. É um
mercador de rígida probidade e excessiva retidão. Qual não foi, pois, a
vergonha de mestre Zacharius quando viu os relógios, que ele tinha fabricado
com tamanha solicitude, serem-lhe devolvidos de todos os lados!
Ora,
ele estava certo de que aqueles relógios paravam de súbito, sem nenhuma razão
aparente. As rodas achavam-se em bom estado e perfeitamente colocadas, mas as
molas haviam perdido toda a elasticidade. O relojoeiro debalde procurou
substituí-las. As rodas conservaram-se imóveis. Estes transtornos inexplicáveis
fizeram um mal imenso a mestre Zacharius. As suas magníficas invenções tinham
levantado contra ele suspeitas de bruxaria, que então tomaram corpo. O boato
chegou até ao conhecimento de Gérande, e muitas vezes ela receou pela sorte de
seu pai, quando olhares mal-intencionados se fixavam nele.
Entretanto, no dia que se seguiu
a esta noite de angústias, mestre Zacharius pôde entregar-se ao trabalho com
alguma confiança. O Sol matutino restituiu-lhe em parte a coragem. Aubert não
tardou a reunir-se a ele na oficina e recebeu dele um bom-dia cheio de afabilidade.
—
Estou melhor — declarou o velho relojoeiro. — Não sei que esquisitas dores de
cabeça ontem me molestavam, mas o Sol afugentou-as juntamente com as nuvens da
noite.
—
Palavra, mestre — redarguiu Aubert —, nem por mim nem pelo senhor eu gosto da
noite!
—
E tens razão, Aubert. Se vieres a ser um homem superior, compreenderás que o
dia te é tão necessário como o sustento! Um sábio de grande mérito deve-se às
homenagens do resto dos homens.
—
Mestre, olhe o pecado do orgulho que está consigo outra vez.
—
Do orgulho, Aubert! Destrói o meu passado, aniquila o meu presente, dissipa o
meu futuro, e então me será permitido viver na obscuridade! Pobre rapaz, que
não compreende as coisas sublimes a que a minha arte se liga intimamente. Não
serás tu, então, mais do que um instrumento nas minhas mãos?
—
Entretanto, mestre Zacharius, mais de uma vez tenho merecido os seus
cumprimentos pela forma como ajusto as peças mais delicadas dos seus relógios e
pêndulas.
—
Sem dúvida alguma, Aubert — volveu mestre Zacharius —, tu és um bom operário a
quem eu estimo. Mas, quando trabalhas, não julgas ter entre os dedos senão
cobre, ouro, prata, e não sentes estes metais, que o meu gênio anima,
palpitarem como carne viva! Por isso hás de morrer da morte das tuas obras!
Mestre
Zacharius ficou silencioso após estas palavras; mas Aubert procurou reatar a
conversa.
—
Por minha fé, mestre — continuou ele —, gosto de vê-lo trabalhar assim sem
descanso! O mestre há de estar preparado para a festa da nossa corporação,
porque vejo que o trabalho deste relógio de cristal avança rapidamente.
—
Certamente, Aubert — exclamou o velho relojoeiro —, e não será para mim pequena
honra o ter podido cortar e talhar esta matéria que tem a dureza do diamante!
Ah! Louis Berghem[2]
fez bem em aperfeiçoar a arte dos lapidários, que me permitiu polir e furar as
pedras mais duras!
Mestre
Zacharius tinha neste momento na mão pequenas peças de relojoaria feitas de
cristal e delicadamente trabalhadas. As rodas, os eixos, a caixa deste relógio
eram da mesma matéria, e neste artefato da maior dificuldade tinha manifestado
um talento incrível.
—
Não é verdade — acrescentou ele, ao mesmo tempo que as suas faces se faziam
purpúreas — que será belo ver palpitar este relógio através do seu invólucro
transparente, e poder contar as palpitações do seu coração!
—
Aposto, mestre, que ele não há de variar um segundo por ano!
—
E hás de ganhar a aposta, decerto! Não empreguei eu nele a mais pura essência
de mim mesmo? Por acaso o meu coração varia?
Aubert
não se atreveu a levantar os olhos para o mestre.
—
Fala-me francamente — tornou o velho com melancolia. — Nunca me tomaste por um
louco? Não me julgas entregue às vezes a deploráveis alucinações? É verdade,
não é? Nos teus olhos e nos de minha filha tenho muitas vezes lido a minha
condenação. Oh — exclamou ele com mágoa —, não ser mesmo compreendido dos entes
a quem mais se ama no mundo! Mas, diante de ti, Aubert, provarei que tenho
razão! Não abanes a cabeça, rapaz, porque vais ficar estupefato! No dia em que
souberes escutar-me e compreender-me, verás que descobri os segredos da
existência, os segredos da misteriosa união da alma e do corpo!
Assim
falando, mestre Zacharius mostrava-se sublime de orgulho. Seus olhos brilhavam
com um fogo sobrenatural, e a soberba fazia-lhe tumultuar o sangue. E na
verdade, se alguma vez a vaidade tivesse justificação, seria a do mestre
Zacharius a mais respeitável de todas.
De
fato, até o seu tempo, a relojoaria permanecera na infância da arte. Desde o
dia em que Platão, quatrocentos anos antes da era cristã, inventou o relógio
noturno, espécie de clepsidra que indicava as horas da noite pelo toque duma
flauta, a ciência ficou quase estacionária. Os mestres cuidaram mais da arte do
que da mecânica, e foi então a época dos belos relógios de ferro, de cobre, de
madeira, de prata, delicadamente esculpidos como um gomil de Cellini[3].
Obtinha-se uma obra-prima de lavor que media o tempo de um modo muito
imperfeito, mas era uma obra-prima. Quando a imaginação do artista se desviou
do lado da perfeição plástica, aplicou-se a fabricar relógios com personagens
que mexiam ao som de toques melodiosos, e cuja apresentação em cena era
regulada de um modo muito divertido. Além do mais, quem se inquietava nessa
época em regular a marcha do tempo? As delongas em questões judiciais não se
tinham ainda inventado. As ciências físicas e astronômicas não estabeleciam os
seus cálculos sobre medidas de tempo escrupulosamente exatas. Não havia nem
estabelecimentos que fechassem a uma hora certa, nem trens que partissem com
uma exatidão levada até os segundos. Ao cair da noite, tocava-se o sino de
correr, e depois diziam-se as horas em altos gritos no meio do silêncio. Se a
existência se regula pela quantidade de negócios realizados, com certeza que se
vivia menos tempo, mas vivia-se melhor. O espírito enriquecia-se com os nobres
sentimentos, filhos da contemplação das obras-primas, e a arte não se fazia de
carreira. Edificava-se uma igreja em dois séculos. Um pintor só fazia alguns
quadros na sua vida, um poeta só compunha uma obra sublime, mas eram outras
tantas obras-primas que os séculos se encarregavam de apreciar.
Quando,
finalmente, as ciências exatas fizeram progressos, a relojoaria seguiu o seu
impulso, se bem que sempre sopeada por uma dificuldade que parecia invencível:
a medida contínua e regular do tempo.
Ora,
foi no meio desta estagnação que mestre Zacharius inventou o scapo, que lhe permitiu obter uma
regularidade matemática, submetendo o movimento do pêndulo a uma força
constante. Esta invenção transtornara, porém, a cabeça do velho relojoeiro. O
orgulho, subindo-lhe no coração, como o mercúrio sobe no termômetro, atingira a
temperatura das loucuras transcendentes. Por analogia, deduzira consequências
materialistas, e, fabricando os seus relógios, imaginava ter surpreendido o
segredo da união da alma com o corpo.
Por
isso, naquele dia, vendo que Aubert o escutava com atenção, disse-lhe num tom
simples e convicto:
—
Sabes o que é a vida, meu filho? Compreendeste já a ação dessas molas que
produzem a existência? Olhaste já para dentro de ti mesmo? Não. Todavia, com os
olhos da ciência, podias ter visto a íntima relação que existe entre a obra de
Deus e a minha, porque foi da sua criação que eu copiei a combinação das rodas
dos meus relógios.
—
Mestre — replicou Aubert com vivacidade —, pode porventura comparar-se uma
máquina de cobre e aço com esse sopro de Deus chamado alma, que anima os corpos
como a brisa comunica o movimento às flores? Podem acaso existir rodas
imperceptíveis que façam mover as nossas pernas e os nossos braços? Que peças,
por bem combinadas que fossem, podiam gerar pensamentos em nós?
—
A questão não está nisso — redarguiu Zacharius com doçura, mas ao mesmo tempo
com a teimosia do cego que caminha para o abismo. — Para me compreenderes,
lembra-te do destino do scapo que
inventei. Quando vi a irregularidade da marcha de um relógio, compreendi que o
movimento encerrado nele não bastava e que era preciso submetê-lo à
regularidade de uma outra força independente. Entendi por isso que o pêndulo
podia prestar-me esse serviço, se chegasse a regular-lhe as oscilações! Ora não
foi uma ideia sublime, a que eu tive, de lhe restituir a sua força perdida pelo
próprio movimento do relógio que ele estava encarregado de regular?
Aubert
fez um sinal de aprovação.
—
Agora, Aubert — continuou o velho relojoeiro, animando-se —, lança um olhar
sobre ti mesmo! Não compreendes que há duas forças diferentes em nós: a da alma
e a do corpo, isto é, um movimento e um regulador? A alma é o princípio da
vida, logo é o movimento. Quer seja produzido por um peso, por uma simples
mola, ou por uma influência material, não deixa por isso de residir no coração.
Mas, sem o corpo, esse movimento seria desigual, irregular, impossível! Por
isso, o corpo serve de regulador da alma, e, como o pêndulo, está submetido a
oscilações certas. E é tão verdade isto que a gente passa mal quando o beber, o
comer e o dormir —numa palavra, as funções do corpo — não são convenientemente
reguladas! Também nos meus relógios, a alma restitui ao corpo a força perdida
pelas suas oscilações. Ora bem, quem produz então essa união íntima da alma e
do corpo senão um scapo maravilhoso,
por meio do qual as rodas de um vêm endentar-se nas rodas do outro? Eis aí o
que eu adivinhei e apliquei, e já para mim não há segredos nesta vida, que não
passa, afinal, de uma engenhosa mecânica!
Mestre
Zacharius estava sublime nesta alucinação, que o transportava até aos mais
profundos mistérios do infinito! Porém, sua filha Gérande, parada no limiar da
porta, tudo ouvira. Precipitou-se nos braços do pai, que a apertou
convulsivamente contra o peito.
—
Que tens, minha filha? — perguntou mestre Zacharius.
—
Se eu só tivesse aqui uma simples mola — afirmou ela, levando a mão ao coração
—, não o amaria tanto, meu pai!
Mestre
Zacharius fitou a filha e não respondeu.
De
repente, soltou um grito, levou precipitadamente a mão ao coração e caiu
desfalecido sobre a sua velha poltrona de couro.
—
Que tem, meu pai?
—
Socorro! — bradou Aubert. — Scholastique!
Mas
Scholastique não apareceu logo. Tinham batido à porta. Fora abrir e quando
voltou para a oficina, antes de abrir a boca, o velho relojoeiro, que tornara a
si, dizia-lhe:
—
Adivinho, minha velha Scholastique. Trazes-me mais um desses malditos relógios
que param!
—
Jesus! É verdade — confirmou Scholastique, entregando um relógio a Aubert.
—
O meu coração não podia se enganar! — disse o velho, soltando um suspiro.
Aubert
tornara a dar corda ao relógio, mas este continuou imóvel.
III — Uma Estranha Visita
Se não
fosse a afeição por Aubert, que a prendia ao mundo, a vida de Gérande
extinguir-se-ia ao mesmo tempo que a de seu pai.
O
velho relojoeiro definhava gradualmente. As suas faculdades tendiam
evidentemente a enfraquecer, concentrando-se num só pensamento. Por uma funesta
associação de ideias, tudo relacionara com a sua monomania, e a vida terrestre
parecia tê-lo abandonado para dar lugar à existência extranatural das potências
intermediárias. Por isso alguns rivais mal-intencionados fizeram reviver os boatos
diabólicos que tinham corrido a respeito dos trabalhos de mestre Zacharius.
A
confirmação dos inexplicáveis desarranjos que se deram nos seus relógios fez
prodigioso efeito entre os próprios relojoeiros de Genebra.
O
que significava aquela súbita inércia das suas rodas, e qual a razão das
extraordinárias relações que elas pareciam ter com a vida de Zacharius? Eram
mistérios desses que nunca se encaram sem um particular terror. Nas diversas
classes da cidade, desde o humilde aprendiz até ao fidalgo, que se serviam dos
relógios do velho relojoeiro, não houve ninguém que não pudesse ajuizar por si
mesmo da singularidade do fato. Quiseram, mas debalde, aproximar-se de mestre
Zacharius. O relojoeiro caiu gravemente doente — o que permitiu à filha
subtraí-lo às incessantes visitas que degeneravam em censuras e recriminações.
Os
médicos e os remédios nada puderam contra aquele definhamento orgânico, cuja
causa não descobriram. Parecia por vezes que o coração do velho cessava de
bater e, em seguida, as suas palpitações tornavam a começar com inquietadora
irregularidade.
Estabelecera-se
por aquele tempo o costume de submeter as obras dos mestres à apreciação do
populacho. Os mestres dos diferentes ofícios procuravam distinguir-se pela
novidade ou pela perfeição das suas obras, e foi entre eles que o estado de
mestre Zacharius encontrou a mais ruidosa piedade, mas piedade interessada. Os
seus rivais lastimavam-no tanto mais quanto menos o temiam. Lembravam-se ainda
dos triunfos do velho relojoeiro, quando ele expunha aqueles magníficos
relógios com figuras que se moviam, aqueles relógios com música que causavam
geral admiração e obtinham preços tão elevados nas cidades da França, da Suíça
e da Alemanha.
Entretanto,
graças aos cuidados constantes de Gérande e de Aubert, a saúde de mestre
Zacharius pareceu restabelecer-se um pouco, e, no meio do sossego que lhe dava
a convalescença, conseguiu subtrair-se aos pensamentos que o absorviam. Assim
que pôde andar, a filha o fez sair de casa, à qual os fregueses descontentes afluíam
continuamente. Aubert, esse ficava na oficina, desmanchando e armando
inutilmente aqueles relógios rebeldes, e o pobre rapaz, nada compreendendo,
apoiava muitas vezes a fronte nas mãos com receio de enlouquecer como seu
mestre.
Gérande
dirigia sempre os passos do pai para os lugares mais aprazíveis da cidade.
Amparando mestre Zacharius pelo braço, encaminhava-se para Santo Antônio, de onde
a vista se alonga pela colina de Coligne e pelo lago, e de onde às vezes, nas
manhãs puras, se chegam a distinguir os gigantescos morros do monte Buet
erguendo-se no horizonte. Gérande indicava pelos seus nomes todos estes lugares
quase esquecidos de seu pai, cuja memória parecia apagada, e o relojoeiro
achava um prazer infantil em reaprender todas estas coisas, cuja lembrança se
obliterara no seu cérebro.
Mestre
Zacharius encostava-se à filha, e aquelas duas frontes, uma branca e outra
loura, confundiam-se banhadas pelo mesmo raio do Sol.
Sucedeu
também que afinal o velho relojoeiro notou que não estava só no mundo. Vendo a
filha tão jovem e formosa, ele, velho e alquebrado, lembrou-se de que depois da
sua morte ela ficaria só, sem proteção, e olhou em volta de ambos. Muitos e
jovens mecânicos de Genebra tinham já feito a corte a Gérande, porém nenhum
tivera admissão no retiro impenetrável onde vivia a família do relojoeiro.
Foi
natural, portanto, que, neste momento lúcido do seu cérebro, a escolha do velho
recaísse em Aubert Thun. Logo que esta ideia se apoderou dele, notou que os
dois jovens tinham sido educados nas mesmas crenças e nas mesmas ideias, e as
oscilações daqueles dois corações pareciam-lhe “isócronas”, como disse um dia a
Scholastique.
A
velha criada, seduzida com a palavra, que aliás não compreendia, jurou pela
santa da sua devoção que a cidade em peso o havia de saber em menos de quinze
minutos. Mestre Zacharius encontrou grande dificuldade em detê-la, e obteve
dela afinal a promessa de guardar segredo sobre o assunto, promessa que ela não
cumpriu.
De
modo que, sem Aubert e Gérande saberem coisa alguma, em toda a Genebra não se
falava de outra coisa senão da sua próxima união. Mas sucedeu também que,
durante estas conversações, se ouvia muitas vezes uma singular exclamação de
rancor, e uma voz que asseverava:
— Gérande não casará com Aubert.
Se
os conversadores se voltavam, achavam-se em presença de um velho que não
conheciam.
Que
idade teria esta singular criatura? Ninguém o poderia dizer. Adivinhava-se
apenas que poderia existir havia grande número de séculos. A sua grande cabeça
achatada descansava nuns ombros cuja largura igualava a altura do corpo, que
não passava de três pés. Esta personagem faria boa figura sobre a caixa de um
relógio de pêndulo, porque o mostrador acomodar-se-ia perfeitamente no seu
rosto e o pêndulo oscilaria à vontade na vastidão do seu peito. Facilmente se
tomaria o nariz daquele homem pelo ponteiro de um quadrante solar, tão delgado
e agudo ele era; os dentes, ralos e de superfície epicicloide, lembravam o
dentado de uma roda e rangiam-lhe sob os lábios; a voz tinha o som metálico de
uma campainha, e era possível sentir-lhe o coração bater como o tique-taque de
um relógio. Tinha uns braços que se moviam à maneira de ponteiros, e caminhava
de um modo incerto, sem nunca olhar para trás. Se seguiam aquele homem,
observavam que fazia uma légua por hora e que a sua marcha era quase circular.
Havia
pouco tempo que esta extraordinária criatura assim vagueava ou antes girava
circularmente pela cidade; mas tinha-se podido já observar que todos os dias,
no momento em que o relógio passava pelo meridiano, parava em frente da
Catedral de S. Pedro, e, depois de darem as doze badaladas do meio-dia,
continuava o seu caminho. Afora este momento exato, parecia surgir no meio de
todas as conversas em que se tratava do velho relojoeiro, e todos perguntavam
com terror que relação podia existir entre ele e mestre Zacharius. Além disso,
notava-se que não perdia de vista o velho e a filha durante os seus passeios.
Um
dia, na Treille, Gérande reparou naquele monstro que olhava para ela. Chegou-se
muito para o pai, assaltada pelo terror.
—
Que tens, minha Gérande? — perguntou mestre Zacharius.
—
Não sei — respondeu a jovem. — Acho-te mudada, minha filha! — observou o velho
relojoeiro. — Irás também agora adoecer? Ora bem — acrescentou, sorrindo com
tristeza —, será preciso que eu cuide de ti, e hei de cuidar bem.
—
Oh! meu pai, não, isto não há de ser nada. Tenho frio, e parece-me que é...
—
O quê, Gérande?
—
A presença deste homem que nos segue constantemente — respondeu ela em voz
baixa.
Mestre
Zacharius voltou-se para o velho.
—
Palavra, regula bem — disse ele, com ar de satisfação —, porque são exatamente
quatro horas. Nada receies, minha filha: não é um homem, é um relógio!
Gérande
olhou para o pai com terror. Como é que mestre Zacharius tinha podido ler as
horas no rosto daquela singular criatura?
—
A propósito — prosseguiu o velho relojoeiro, sem se ocupar mais daquele
incidente —, não vejo Aubert há alguns dias.
—
Mas ele não nos abandonou, meu pai — redarguiu Gérande, cujos pensamentos
tomaram uma direção mais agradável.
—
O que está fazendo ele, então?
—
Está trabalhando, meu pai.
—
Ah — exclamou o velho —, anda se ocupando no conserto dos meus relógios, não é
verdade? Mas nunca os conseguirá nunca pôr em ordem, porque não é uma reparação
de que eles precisam, mas de uma ressurreição!
Gérande
ficou silenciosa.
—
É preciso que eu saiba — acrescentou o velho — se não trouxeram mais alguns
desses malditos relógios entre os quais o Diabo espalhou uma epidemia.
Em
seguida, mestre Zacharius recaiu num silêncio absoluto. Por fim, bateu à porta
de casa e, pela primeira vez depois da sua convalescença, enquanto Gérande se
dirigia para o seu quarto, desceu à oficina.
No
momento em que ali entrava, um dos numerosos relógios suspensos na parede deu
cinco horas. Ordinariamente, os diferentes toques daquelas máquinas,
admiravelmente reguladas, faziam-se ouvir simultaneamente e o seu acorde
regozijava o coração do velho; mas, naquele dia, tocaram todos uns depois dos
outros, de modo que durante um quarto de hora os seus sons sucessivos foram de
ensurdecer.
Mestre
Zacharius padecia de um modo horrível; não podia estar quieto, andava de uns
relógios para os outros, e batia-lhes o compasso como um diretor de orquestra
que já não pudesse ser senhor dos seus músicos.
Quando
o último som se extinguiu, a porta da oficina abriu-se, e mestre Zacharius
estremeceu dos pés até à cabeça ao ver diante de si o velho baixo que,
fitando-o, lhe perguntou:
—
Mestre, poderei conversar alguns instantes com o senhor?
—
Quem é você? — perguntou o relojoeiro com modo sacudido.
—
Um companheiro de trabalho. Sou eu que estou encarregado de regular o Sol.
—
Ah, é quem regula o Sol? — volveu mestre Zacharius com vivacidade. — Pois não
lhe dou os meus parabéns por isso! O seu Sol regula mal e, para nos pormos de
acordo com ele, somos obrigados ora a adiantar os nossos relógios, ora a
atrasá-los.
—
E pela pata caprina do Diabo — exclamou a monstruosa personagem —, tem razão,
mestre! O meu Sol não indica sempre meio-dia, no mesmo momento em que o indicam
os seus relógios. Mas um dia virá a saber-se que isso provém da desigualdade do
movimento de translação da Terra, e será inventado um meio-dia médio que porá
em ordem essa irregularidade!
—
Viverei ainda nessa época? — perguntou o velho relojoeiro, cujos olhos se
animaram.
—
Decerto — replicou o velhinho, rindo. — Pois pode imaginar que está morrendo?
—
Ai, em todo o caso estou bem doente!
—
A propósito, falemos disso. Por Belzebu! Conduzir-nos-á ao assunto de que lhe
quero falar.
E
assim dizendo, aquela estranha criatura saltou sem cerimónia para a velha
poltrona de couro e cruzou as pernas, à maneira dos ossos descarnados que os
pintores de telas funéreas traçam por baixo das caveiras. Em seguida, redarguiu
num tom irônico:
—
Ora, vejamos, mestre Zacharius, que é que se passa nesta boa cidade de Genebra?
Dizem que a sua saúde se altera, que os seus relógios têm bastante necessidade
de médicos.
—
Ah, julga que há uma relação íntima entre a existência deles e a minha? —
exclamou mestre Zacharius.
—
Eu imagino que esses relógios têm defeitos, vícios até. Se esses maganões não
procedem de um modo muito regular, é justo que sofram o castigo do seu
desregramento.
—
A que o senhor chama defeitos? — replicou mestre Zacharius, corando em vista do
tom sarcástico com que aquelas palavras tinham sido proferidas. — Não têm eles
direito de se mostrarem ufanos da sua procedência?
—
Muito, muito, não! — redarguiu o velhinho. — Têm, é verdade, nome célebre. Sobre
o seu mostrador acha-se gravada uma assinatura ilustre, e gozam do privilégio
exclusivo de se introduzirem no seio das mais nobres famílias. Mas há um tempo
para cá, não regulam, mestre Zacharius não lhes dá remédio, e o mais
insignificante dos aprendizes de Genebra acha-lhes defeitos!
—
A mim, a mim, mestre Zacharius! — exclamou o velho com um terrível movimento de
orgulho.
—
Sim, a si, mestre Zacharius, que não pode restituir a vida aos seus relógios!
—
Mas é porque eu tenho febre e eles também a têm! — redarguiu o velho
relojoeiro, ao mesmo tempo que um suor frio lhe corria por todos os membros.
—
Bem, então morrerão com o senhor, visto que o mestre se vê impossibilitado de
restituir um pouco de elasticidade às suas molas!
—
Morrer! Não! — da sua própria boca o ouvi. — Não posso morrer, eu, o primeiro
relojoeiro do mundo; eu que, por meio dessas peças e dessas rodas diversas,
soube sujeitar o tempo a leis exatas e não posso dispor dele como soberano?
Antes de vir um gênio sublime regularizar essas horas desordenadas, em que
imensa indecisão não estava mergulhado o destino humano? Por que momento
determinado se podiam regular os atos da vida? Mas tu, homem ou Diabo, quem
quer que sejas, tu não refletiste na magnificência da minha arte, que chama
todas as ciências em seu auxílio? Não! Não! Eu, mestre Zacharius, eu não posso
morrer, visto que, tendo regulado o tempo, o tempo morreria comigo! Voltaria a
esse infinito de que o meu gênio o soube arrancar, e perder-se-ia irreparavelmente
no abismo do nada! Não, é tão impossível eu morrer como o Criador deste universo
submetido às suas leis. Tornei-me seu igual e partilhei do seu poder! Se Deus
criou a eternidade, mestre Zacharius criou o tempo.
O
velho relojoeiro parecia então o anjo caído, erguendo-se contra o Criador. O
velhinho afagava-o com o olhar e parecia inspirar-lhe toda aquela cólera ímpia.
—
Bem falado, mestre! — replicou. — Belzebu tinha menos direitos do que o mestre
de se comparar com Deus! Convém que a sua glória não pereça! Por essa razão, o
seu servo quer dar-lhe o meio de dominar esses relógios rebeldes.
—
Qual é, qual é esse meio? — exclamou mestre Zacharius.
—
Irá sabê-lo no dia seguinte àquele em que me houver concedido a mão de sua
filha.
—
Da minha Gérande?
—
Dela mesma!
—
O coração de minha filha não é livre — respondeu mestre Zacharius àquela
proposta, que não pareceu nem admirá-lo nem impressioná-lo.
— Ora... não é o menos formoso dos seus
relógios, mas há de por fim parar também.
—
Minha filha, a minha Gérande!... Não!...
—
Pois bem, mestre Zacharius! Volte para os seus relógios! Arranje-os e
desmanche-os! Prepare o casamento de sua filha e do seu oficial! Tempere as
molas feitas do seu melhor aço! Abençoe Aubert e a formosa Gérande, mas
lembre-se bem de que Gérande não casará com Aubert!
E,
dito isto, o velho saiu, mas não tão depressa que mestre Zacharius não pudesse
ouvir dar-lhe seis horas no peito.
IV — A Igreja de S. Pedro
Entretanto, o
espírito e o corpo de mestre Zacharius enfraqueciam de dia para dia, com a
diferença apenas de que uma sobre-excitação extraordinária o fez aplicar-se
mais profundamente que nunca aos seus trabalhos de relojoaria, dos quais a
filha não conseguiu distraí-lo.
O
orgulho criara nele novos alentos, depois daquela crise à qual o seu estranho
visitante o havia traiçoeiramente levado, e resolveu dominar, à força de gênio,
a influência maldita que pesava sobre ele e as suas obras. Visitou
primeiramente os diferentes relógios da cidade confiados ao seu cuidado.
Certificou-se com escrupulosa atenção de que as rodas se achavam em bom estado,
os eixos sólidos, os contrapesos exatamente equilibrados. Nem mesmo os sinos e
mais instrumentos de dar horas deixaram de ser auscultados, o que mestre
Zacharius efetuou com o reconhecimento de um médico examinando o peito de um
doente. Nada indicava que aqueles relógios estivessem em vésperas de ser
atacados de inércia.
Gérande
e Aubert acompanhavam muitas vezes o velho relojoeiro nestas visitas. O mestre
devia ter encontrado prazer em vê-los tão interessados em segui-lo e, por certo,
ele não se preocuparia tanto com o seu próximo fim se refletisse que a sua
existência devia ser prolongada pela daqueles entes queridos, se compreendesse
que nos filhos fica sempre alguma coisa da vida de um pai!
Voltando
para casa, o velho relojoeiro prosseguia os seus trabalhos com febril assiduidade.
Apesar de muito convencido de que nada podia conseguir, parecia-lhe impossível
que assim devesse ser, e armava e tornava a desarmar os relógios que lhe
levavam à oficina.
Por
sua parte, Aubert se esforçava, em vão, por descobrir as causas do mal.
—
Mestre — sugeriu ele —, isto não pode ser senão de estarem já gastos os eixos e
as rodas dentadas!
—
Achas então prazer em me
matar a fogo lento? — redarguiu-lhe violentamente mestre Zacharius. — Estes
relógios são obra de alguma criança? Por acaso, com receio de ferir os dedos,
modelei ao torno as peças de cobre de que eles se compõem? Não fui eu mesmo que
as forjei para obter maior dureza? Não são essas molas temperadas com rara
perfeição? Pode alguém empregar óleos mais finos para as umedecer? Tu mesmo
concordas em que é impossível, e confessas afinal que o Diabo anda metido
nisto!
E
depois, desde pela manhã até à meia-noite, os fregueses descontentes afluíam
cada vez em maior número à oficina, e conseguiam chegar até ao velho
relojoeiro, que não sabia a quem dar ouvidos.
—
Este relógio atrasa-se sem que eu possa acertá-lo! — queixava-se um.
—
Este outro — prosseguia uma voz diferente — é de uma teimosia incrível, e parou
nada mais nada menos como o Sol de Josué!
—
Se é verdade que a sua saúde — repetia a maior parte dos descontentes — influi
na dos seus relógios, mestre Zacharius, cure-se quanto antes!
O
velho punha-se a olhar para toda aquela gente com ar espantado e só respondia
meneando a cabeça ou proferindo tristes palavras.
—
Esperem pelos primeiros dias bonitos, meus amigos! É a estação em que a
existência revive nos corpos fatigados! É preciso que o Sol nos venha aquecer a
todos nós.
—
Que grande vantagem, se os nossos relógios têm de estar doentes todo o inverno!
— retorquiu-lhe um dos mais desesperados. — Sabe, mestre Zacharius, que o seu
nome está inscrito com todas as letras no mostrador? Valha-o Deus! O mestre não
honra a assinatura!
Afinal,
aconteceu que o velho, envergonhado daquelas censuras, tirou algumas peças de
ouro do seu velho cofre e começou a comprar os relógios estragados. A esta
notícia, os fregueses acudiram em grande número e o dinheiro daquela pobre casa
consumiu-se bem depressa; porém, a probidade do relojoeiro ficou ilibada.
Gérande aplaudiu calorosamente aquela delicadeza de sentimentos, que
irremediavelmente a arruinava, e não tardou que Aubert tivesse de oferecer as
suas economias a mestre Zacharius.
—
Que será da minha filha? — suspirava o velho relojoeiro, agarrando-se, por
vezes, neste naufrágio ao sentimento do amor paternal.
Aubert
não se atreveu a responder que sentia bastante coragem para o futuro e grande
dedicação por Gérande. Naquele dia mestre Zacharius ter-lhe-ia dado o nome de
genro, desmentindo as funestas palavras que ainda lhe zumbiam aos ouvidos:
“Gérande não desposará Aubert”.
Entretanto,
com este sistema, o velho relojoeiro chegou a empobrecer-se completamente. Os
seus velhos vasos, curiosos pela antiguidade, passaram para mãos estranhas e
desfez-se das magníficas almofadas de carvalho, delicadamente esculpidas, que
lhe revestiam as paredes da casa. Algumas singelas pinturas dos primeiros
pintores flamengos deixaram bem depressa de recrear a vista de sua filha, e
tudo, inclusive as preciosas peças de ferramenta que o seu gênio tinha
inventado, foi vendido para indenizar os reclamantes.
Só
Scholastique não queria conformar-se com aquele modo de proceder. Os seus
esforços, porém, não podiam impedir que os importunos se aproximassem de seu
amo e saíssem depois com algum objeto precioso. Então a sua tagarelice fazia-se
ouvir em todas as ruas do seu bairro, onde há muito a conheciam. Ocupava-se em
desmentir os boatos de bruxaria e magia que corriam a respeito de Zacharius. Mas,
como no fundo estava convencida da verdade desses boatos, fartava-se de rezar
grande número de orações para que lhe fossem perdoadas aquelas piedosas
mentiras.
Notara-se,
havia algum tempo, que o relojoeiro deixara de cumprir os seus deveres
religiosos. Antigamente, acompanhava sempre Gérande às solenidades da igreja, e
parecia achar na oração o encanto intelectual que esta derrama nas
inteligências elevadas, dado que é o mais sublime exercício da imaginação. Este
afastamento voluntário do velho quanto às práticas religiosas, coincidindo com
o proceder particular da sua vida, justificava até certo ponto as acusações de
sortilégio levantadas contra o seu trabalho. Por esta razão, com o duplo fim de
reconduzir o pai para a graça de Deus e para a graça do mundo, Gérande resolveu
chamar a religião em seu socorro. Pensou que o catolicismo podia de algum modo
restituir a vitalidade àquela alma moribunda. Mas os dogmas da fé e da
humildade tinham de lutar na alma de mestre Zacharius com uma soberba
invencível, e tropeçavam naquele orgulho da ciência que tudo atribui a si, sem
remontar à origem infinita donde derivam os primeiros princípios.
Foi
nestas circunstâncias que Gérande empreendeu a conversão de seu pai, e teve
tanta influência que o velho relojoeiro prometeu ir no domingo próximo assistir
à missa cantada da catedral. A jovem teve um momento de êxtase, como se o céu
se entreabrisse diante dela. A velha Scholastique não pôde conter a alegria e
achou afinal argumentos irreplicáveis contra as más-línguas que acusavam o amo
de impiedade. Falou nisto às suas vizinhas, às suas amigas e inimigas, tanto a
quem a conhecia como a quem não a conhecia.
—
Palavra, não acreditamos, senhora Scholastique, no que está para aí a anunciar
— responderam-lhe todos. — Mestre Zacharius procedeu sempre de combinação com o
Diabo!
—
Vocês não metem em conta — tornava a boa mulher — os belos campanários onde dão
horas os relógios de meu amo. Quantas vezes não têm feito tocar a hora da
oração e a da missa.
—
Decerto — respondiam-lhe todos. — Mas não inventou ele as máquinas que andam
sozinhas e que chegam a fazer o que parece feito por um homem verdadeiro?
Mas
a senhora Scholastique replicava, cheia de cólera:
—
Também o demônio teria podido fabricar aquele belo relógio de ferro do Castelo
de Andernatt, que a cidade de Genebra não teve meios bastantes para comprar? A
cada hora que dava aparecia uma bela sentença, e qualquer cristão que se
conformasse com todas elas iria direitinho para o paraíso. Pois isso é trabalho
do Diabo?
Esta
obra-prima, fabricada havia vinte anos, tinha certamente levado às nuvens a
glória de mestre Zacharius. Mas mesmo naquela ocasião as acusações de bruxo
haviam sido gerais. Entretanto, a volta de mestre Zacharius à Igreja de S.
Pedro devia reduzir as más-línguas ao silêncio.
Sem
se lembrar decerto da promessa feita à filha, mestre Zacharius voltara para a
oficina. Depois de ter visto a sua impotência quando procurara restituir a vida
aos relógios, resolveu ver se poderia fabricar novas máquinas.
Abandonou
todos aqueles corpos inertes e entregou-se ao acabamento do relógio de cristal
que devia ser a sua grande obra. Mas debalde se cansou, debalde se serviu da
sua ferramenta mais perfeita e empregou o rubi e o diamante próprios para
resistirem às fricções: o relógio estalou-lhe nas mãos à primeira vez que quis
dar-lhe corda!
O
velho ocultou aquele acontecimento a toda a gente, até à filha. Mas desde então
a sua vida começou a declinar rapidamente.
Já
não eram as oscilações derradeiras de um pêndulo que vão diminuindo quando nada
lhes restitui o movimento primitivo. Parecia que as leis da gravitação, atuando
diretamente sobre o velho relojoeiro, irresistivelmente o arrastavam para o
túmulo.
O
domingo tão ardentemente desejado por Gérande chegou afinal.
O
tempo estava muito belo e a temperatura vivificante.
Os
habitantes de Genebra caminhavam tranquilamente pelas ruas da cidade,
discursando alegremente a respeito da volta da primavera. Gérande, tomando
carinhosamente o braço do velho, dirigiu-se para os lados de S. Pedro, seguidos
ambos de Scholastique, que levava o livro das orações. Viram-nos passar com
curiosidade. O ancião deixava-se conduzir como uma criança, ou antes como um
cego. Foi quase com um sentimento de terror que os fiéis de S. Pedro o viram
transpor a limiar da igreja, e fingiram até que se retiravam quando ele se
aproximou.
Os
cânticos da missa solene já se ouviam. Gérande dirigiu-se para o seu banco do
costume e ajoelhou-se no mais profundo recolhimento. Mestre Zacharius ficou
junto dela, em pé.
As
cerimônias da missa decorreram com a solenidade majestosa daquelas épocas de
crença, mas o velho em nada cria.
Não
implorou a piedade do céu com os gritos de dor do Kyrie; com o Gloria in
Excelsis não cantou as magnificências das alturas celestes; a leitura do
Evangelho não o tirou das suas meditações materialistas, e esqueceu-se de se
associar às homenagens católicas do Credo.
Aquele
velho orgulhoso permanecia imóvel, insensível e mudo como uma estátua. E até no
momento solene em que a campainha anunciou o milagre da transubstanciação, não
se curvou, e olhou arrogantemente para a hóstia consagrada que o padre elevava
acima dos fiéis.
Gérande
fitou o pai, e lágrimas copiosas molharam o seu livro de missa.
Naquele
momento, o relógio de S. Pedro deu onze horas e meia. Mestre Zacharius
voltou-se com vivacidade para o velho campanário que ainda falava. Pareceu-lhe
que o mostrador da banda de dentro o fitava, que os algarismos das horas
brilhavam como se tivessem sido gravados com traços de fogo e que os ponteiros
dardejavam faíscas pelas agudas extremidades.
A
missa acabou. Era costume rezar-se o Angelus
ao meio-dia. Antes de sair da capela-mor, os celebrantes esperavam que desse a
hora no relógio do campanário. Mais alguns instantes, e aquela oração ia subir
aos pés da Virgem.
Mas,
de repente, um ruído estridente fez-se ouvir. Mestre Zacharius soltou um
grito...
O
ponteiro grande do mostrador, ao chegar ao meio-dia, parara de súbito, e não se
ouviram as doze badaladas.
Gérande
correu em socorro de seu pai, que caíra sem sentidos e fora transportado para
fora da igreja.
—
É o golpe da morte! — disse Gérande, soluçando.
Levado
para casa, mestre Zacharius foi deitado no leito, em completo estado de
aniquilamento. A vida só nele existia à superfície do corpo, como as últimas
nuvens de fumo que vagueiam em redor de uma lâmpada apagada há pouco.
Quando
tornou a si, Aubert e Gérande curvaram-se sobre ele. Naquele momento supremo, o
futuro tomou a seus olhos a forma do presente. Viu a filha, só, sem apoio.
—
Meu filho — disse ele a Aubert —, dou-te minha filha — e estendeu a mão para os
dois jovens, que foram assim unidos junto daquele leito de morte.
Mas,
no mesmo instante, mestre Zacharius levantou-se num impulso de raiva.
Acudiram-lhe à mente as palavras do velho.
—
Não quero morrer! — exclamou ele. — Não quero morrer! Eu, mestre Zacharius, não
devo morrer... Os meus livros... as minhas contas!...
E,
dizendo isto, saltou para fora da cama, dirigindo-se a um livro onde se achavam
inscritos os nomes dos seus fregueses, assim como o objeto que lhes tinha
vendido.
Folheou-o
com avidez e pousou o dedo descarnado numa das folhas.
—
Eis aqui!... — disse ele. — O velho relógio de ferro vendido àquele
Pittonaccio! É o único que ainda não
me trouxeram. Existe! Anda! Vive ainda! Ah... Eu o quero! hei de encontrá-lo
outra vez! Cuidarei dele tão bem que a morte não terá poder sobre mim.
E
perdeu os sentidos.
V — A Hora da Morte
Decorreram alguns dias, e mestre Zacharius,
aquele homem quase morto, levantou-se da cama e voltou à vida graças a uma
excitação sobrenatural. Vivia do orgulho. Mas Gérande não se iludiu. A alma e o
corpo de seu pai estavam para sempre perdidos.
Viram,
então, o velho ocupado em reunir os seus últimos recursos, sem se importar com
a família. Desenvolvia uma energia incrível, caminhando, esquadrinhando e
murmurando misteriosas palavras.
Certa
manhã, Gérande desceu à sua oficina. Mestre Zacharius não se achava ali.
Esperou-o
todo o dia. Mestre Zacharius não voltou.
Gérande
chorou o mais que se pode chorar, mas seu pai não tornou a aparecer.
Aubert
correu a cidade e obteve a certeza de que o velho saíra para fora do seu
recinto.
—
Tratemos de encontrar nosso pai! — exclamou Gérande quando o jovem lhe trouxe
estas dolorosíssimas notícias.
—
Onde ele poderá estar? — perguntou Aubert.
Uma
inspiração iluminou-lhe subitamente o espírito.
Lembrou-se
das últimas palavras do mestre Zacharius. O relojoeiro só vivia da lembrança
daquele velho relógio de ferro que não lhe tinham restituído! Mestre Zacharius
devia ter-se posto à procura dele.
Aubert
comunicou este pensamento a Gérande.
—
Vejamos o livro de meu pai — propôs ela.
Ambos
desceram à oficina. O livro estava aberto sobre a mesa de trabalho. Todos os
relógios feitos pelo velho relojoeiro, e que lhe tinham sido restituídos em
razão do seu desarranjo, estavam riscados, menos um.
“Vendido
ao Sr. Pittonaccio um relógio de ferro, com música e personagens moventes,
depositado no seu Castelo de Andernatt”.
Era
o relógio “moral”, de que a velha Scholastique falara com tantos elogios.
—
Meu pai deve lá estar! — exclamou Gérande.
—
Corramos — decidiu Aubert. — Podemos ainda salvá-lo!...
—
Não nesta vida — murmurou Gérande —, mas ao menos na outra!
—
Com o auxílio de Deus, Gérande! O Castelo de Andernatt está situado nos
desfiladeiros dos Dents-du-Midi, a vinte horas de distância de Genebra.
Partamos!
Naquela
mesma tarde, Aubert e Gérande, seguidos da velha criada, caminhavam a pé pela
estrada que costeia o lago de Genebra. Andaram cinco léguas naquela noite, não
se tendo demorado nem em Bessinge, nem em Ermance, onde se eleva o célebre
Castelo dos Mayor. Atravessaram a vau, não sem alguma dificuldade, a torrente
do Dranse. Em todos os lugares perguntavam com inquietação por mestre
Zacharius, e bem depressa obtiveram a certeza de que lhe seguiam o rastro.
No
dia seguinte, ao entardecer, depois de passarem o Thonon, chegaram a Elvian, de
onde se avista território suíço numa extensão de doze léguas. Mas os dois
enamorados nem sequer notaram aqueles lugares encantadores. Caminhavam
impelidos por uma força sobrenatural. Aubert, encostado a um bordão nodoso,
oferecia o braço, ora a Gérande, ora à velha Scholastique, e procurava no
coração uma energia suprema para amparar as suas companheiras.
Falavam
todos três dos seus pesares, das suas esperanças, e seguiam a formosa estrada à
beira de água, sobre a estreita planura que liga as margens do lago às elevadas
montanhas do Chalois. Bem depressa se acharam em Bouveret, no ponto em que o
Ródano desagua no lago de Genebra.
A
partir desta cidade deixaram o lago, e então, no meio daquela região
montanhosa, a jornada tornou-se mais fatigante. Vionnaz, Chesset, Colombay,
aldeias meio perdidas naquelas solidões, bem depressa lhes ficaram para trás.
Entretanto os joelhos dos viajantes dobravam, os pés rasgavam-se nas agudas
arestas de que o solo se eriça como de silvestre e rasteira vegetação de
granito, e nem um só vestígio de mestre Zacharius!
E
era preciso encontrá-lo. Por isso, os dois jovens não perderam um momento a
repousar nas cabanas isoladas, nem no Castelo de Monthey, o qual, com as suas
dependências, constituía o apanágio de Margarida de Saboia. Finalmente, quase
no fim do dia, alcançaram, meio mortos de fadiga, o Eremitério de Nossa Senhora
du Sex, situado na base dos Dents-du-Midi, seiscentos passos acima do Ródano.
O
eremita recebeu-os ao cair da noite. Não podiam dar nem mais um passo, e
tiveram forçosamente de descansar ali um pouco.
O
religioso não lhes deu notícia de mestre Zacharius. Mal o podiam esperar vivo
no meio daquelas tristes solidões.
A
noite estava tenebrosa, o vendaval assobiava na montanha e os turbilhões de
neve precipitavam-se do cume das rochas abaladas pelo choque.
Os
dois jovens, agachados diante da lareira do eremita, contavam-lhe a sua
dolorosa história. Os mantos, impregnados de neve, enxugavam a um canto, e do
lado de fora o cão do eremitério soltava uivos lúgubres que se confundiam com
os uivos da tormenta.
—
O orgulho — disse o eremita aos seus hóspedes — perdeu um anjo criado para o bem. É o obstáculo onde tropeçam os
destinos do homem. Ao orgulho, origem de todos os vícios, não se podem opor raciocínio
algum, pois que, por sua própria natureza, o orgulho não lhes dá ouvidos...
Nada mais resta do que orarem por vosso pai!
Ajoelharam-se
todos quatro, quando os latidos aumentaram e alguém bateu à porta do
eremitério.
—
Abram, em nome do Diabo!
A
porta cedeu após violentos esforços e apareceu um homem desgrenhado, de faces
cavadas e meio nu.
—
Meu pai! — exclamou Gérande.
Era
mestre Zacharius.
—
Onde estou eu? — exclamou. — Na eternidade!... O tempo acabou... Já não soam as
horas... os ponteiros param!
—
Meu pai! — repetiu Gérande, com uma comoção tão dilacerante que o velho pareceu
voltar ao mundo dos vivos.
—
Tu aqui, minha Gérande! — exclamou ele. — E tu, Aubert!... Ah, meus queridos
filhos, vêm casar-se na nossa velha igreja!
—
Meu pai — pediu Gérande, agarrando-o pelo braço —, volte para a sua casa de
Genebra, volte conosco!
O
velho soltou-se dos braços da filha e correu para a porta, no limiar da qual a
neve se acumulava em montões.
—
Não abandone seus filhos! — exclamou Aubert.
—
Por que — redargiu com tristeza o velho relojoeiro —, por que hei de voltar a
esses lugares que a minha vida já abandonou ou onde uma parte de mim mesmo está
para sempre enterrada?
—
A sua alma não morreu! — exclamou o eremita com voz grave.
—
A minha alma!... Oh... não!... As suas rodas são boas!... Sinto-a bater a
tempos iguais...
—
A sua alma é imaterial! A sua alma é imortal! — replicou o eremita com energia.
—
Sim... como a minha glória! Mas está encerrada no Castelo de Andernatt e quero
vê-la!
O
eremita persignou-se. Scholastique estava inanimada. Aubert amparava a sua
futura noiva nos braços robustos.
—
O Castelo de Andernatt é habitado por um condenado — observou o eremita —, um
condenado que não se descobre diante da cruz do meu eremitério!
—
Meu pai, não vá lá!
—
Quero a minha alma, porque a minha alma pertence-me!...
—
Detenham-no, detenham meu pai! — suplicou Gérande, no auge da aflição.
Mas
o ancião transpusera o limiar da porta e deitara a correr no meio das trevas,
bradando:
—
A mim, a mim, a minha alma!...
Gérande,
Aubert e Scholastique precipitaram-se atrás dele. Caminharam por atalhos
intransponíveis, sobre os quais mestre Zacharius deslizava como a tempestade,
impelido por força irresistível. A neve redemoinhava em torno deles e misturava
os seus alvos flocos com a escuma das torrentes que transbordavam dos leitos.
Ao
passarem diante da capela levantada em memória da carnificina da legião tebana,
Gérande, Aubert e Scholastique persignaram-se precipitadamente. Mestre
Zacharius não se descobriu.
Finalmente,
a aldeia de Evionaz apareceu no meio daquela região inculta. O coração mais
insensível ficaria comovido ao ver a aldeia assim perdida em tão horrível
solidão.
O
velho continuou o seu caminho. Dirigiu-se para a esquerda e internou-se no mais
profundo dos desfiladeiros dos Dents-du-Midi, que parecem morder no céu contra
os seus agudos picos.
Dentro
em pouco, umas ruínas, vetustas e sombrias como os rochedos que lhes serviam de
base, ergueram-se diante dele.
—
É ali... ali! — exclamou, precipitando-se novamente na sua carreira desatinada.
Naquela
época, o Castelo de Andernatt era apenas uma ruína. Uma grande torre, derruída,
meio desmantelada, dominava-o e parecia ameaçar com a sua queda os velhos
telhados acoruchados que se erguiam aos seus pés. Aqueles imensos montões de
pedras infundiam horror. Pressentia-se, no meio de tais destroços, a existência
de salas sombrias com tetos arrombados, e de imensos receptáculos de
peçonhentas víboras.
Um
postigo baixo e estreito, que deitava para um fosso cheio de entulho, dava
acesso ao Castelo de Andernatt.
Dizia
a lenda que, nas noites de inverno, Satanás vinha dirigir as suas tradicionais
sarabandas à beira dos profundos desfiladeiros onde mergulhava a sombra daquelas
ruínas!
Mestre
Zacharius não se aterrou com o seu aspecto sinistro. Chegou ao postigo. Ninguém
lhe impediu a entrada. Achou-se num pátio grande e tenebroso. Ninguém obstou
que o atravessasse. Trepou por uma espécie de plano inclinado, que ia ter num
dos extensos corredores, cujas arcadas pareciam esmagar a claridade do dia sob
as suas pesadas abóbadas. Ninguém se opôs à sua passagem.
Gérande,
Aubert e Scholastique continuavam a segui-lo.
Como
se o guiasse mão invisível, mestre Zacharius parecia muito seguro do seu
caminho e andava com passo rápido. Chegou a uma porta velha e carunchosa que
cedeu, sacudida por ele, ao mesmo tempo que os morcegos descreviam círculos
oblíquos em redor da sua cabeça.
Achou-se
numa sala mais bem conservada que as outras. As paredes estavam revestidas de
espaçosas almofadas esculpidas, sobre as quais larvas de diferentes espécies
pareciam agitar-se confusamente.
Algumas
janelas, altas e estreitas, semelhantes a seteiras, estremeciam sob a violência
da tempestade.
Chegando
ao meio da sala, mestre Zacharius soltou um grito de alegria.
Sobre
um pedestal de ferro, encostado à parede, achava-se o relógio onde
presentemente residia toda a sua vida. Aquela obra sem igual representava uma
velha igreja romana, com os seus botaréus de ferro forjado e o seu pesado
campanário, onde havia um mecanismo que tocava a antífona do dia, a Ave-Maria,
a missa, as vésperas completas e o Salve. Por cima da porta da igreja, que se
abria à hora dos ofícios divinos, via-se um florão, no centro do qual se moviam
dois ponteiros, e cuja arquivolta ostentava as doze horas do mostrador em
relevo. Entre a porta e o florão, como contara a velha Scholastique, aparecia
numa moldura de cobre, uma máxima relativa ao emprego de cada hora do dia.
Mestre Zacharius regulara outrora esta sucessão de divisões com solicitude
inteiramente cristã. As horas de reza, de trabalho, de refeição, de recreio, de
repouso, sucediam-se segundo a disciplina religiosa e deviam infalivelmente
fazer a salvação de um observador escrupuloso no cumprimento das suas
recomendações.
Ébrio
de alegria, mestre Zacharius ia apoderar-se do relógio, quando ouviu detrás de
si uma risada horrível.
Voltou-se,
e, à luz de uma lâmpada fumegante, reconheceu o velhinho de Genebra.
—
Aqui! — exclamou ele.
Gérande
teve medo e chegou-se muito para o seu prometido esposo.
—
Bom dia, mestre Zacharius — bradou o monstro.
—
Quem é que vejo?
—
O senhor Pittonaccio, para o servir! Vem dar-me a sua filha? Lembrou-se das
minhas palavras: “Gérande não casará com Aubert?”
O
moço operário lançou-se sobre Pittonaccio, que lhe escapou como uma sombra.
—
Suspende, Aubert! — exclamou mestre Zacharius.
—
Boa-noite — bradou Pittonaccio, que desapareceu.
—
Meu pai — exclamou Gérande —, fujamos destes lugares malditos!... Meu pai!...
Mestre
Zacharius já não se achava ali. Perseguia, subindo pelos andares arruinados, o
fantasma de Pittonaccio. Scholastique, Aubert e Gérande ficaram como que
aniquilados naquela sala imensa. A jovem caíra numa cadeira de pedra. A velha
criada ajoelhou junto dela e pôs-se a rezar. Aubert ficou em pé, a velar pela
sua prometida. Pálidos clarões rasgavam as sombras, e o silêncio era apenas
interrompido pelo labor daqueles animaizinhos que roíam as madeiras antigas e
cujo ruído marca o tempo do “relógio da morte”.
Aos
primeiros raios do dia, aventuraram-se todos três pelas intermináveis escadas
que circulavam sob aquele montão de pedras. Durante duas horas, vaguearam assim
sem encontrar ninguém e só ouvindo o eco longínquo responder aos seus gritos.
Ora se achavam cem pés abaixo do chão, ora dominavam aquelas agrestes
montanhas.
O
acaso reconduziu-os afinal à vasta sala que os abrigara durante aquela noite de
angústias. Já não estava deserta. Mestre Zacharius e Pittonaccio ali
conversavam juntos, um de pé e rígido como um cadáver, o outro acocorado sobre
uma mesa de mármore.
Avistando
Gérande, mestre Zacharius foi buscá-la pela mão e conduziu-a para junto de
Pittonaccio, dizendo:
—
Eis o teu mestre e senhor, minha filha! Gérande, eis o teu esposo!
Gérande
estremeceu da cabeça até aos pés.
—
Nunca! — exclamou Aubert —, porque ela é a minha prometida esposa.
—
Nunca! — redarguiu Gérande, como um eco plangente.
Pittonaccio
pôs-se a rir.
—
Querem a minha morte? — exclamou o velho. — Ali, naquele relógio, de todos os
que saíram das minhas mãos o único que ainda anda, está encerrada a minha vida,
e este homem disse-me: “Quando eu possuir a tua filha, possuirás tu este
relógio”. E aquele homem não quer dar-lhe corda! Pode despedaçá-lo e
arremessar-me ao nada. Ah, minha filha, já não me amas!
—
Meu pai! — murmurou Gérande, recuperando os sentidos.
—
Se tu soubesses quanto tenho sofrido longe do princípio da minha existência! —
volveu o velho. — Talvez não tratassem deste relógio! Talvez deixassem gastar
as suas molas, embaraçarem-se as suas rodas! Mas agora, com as minhas próprias
mãos, vou sustentar aquela saúde tão cara, porque é preciso que eu não morra,
eu, o grande relojoeiro de Genebra! Olha, minha filha, como os ponteiros
avançam com firmeza! Olha, aí vão dar cinco horas! Escuta bem, e repara na bela
máxima que te vai aparecer.
Soaram
cinco horas no campanário do relógio com um estrondo que dolorosamente ecoou na
alma de Gérande e apareceram estas palavras em letras vermelhas:
É preciso comer os frutos da árvore
da ciência.
Aubert
e Gérande olharam um para o outro estupefatos. Já não eram as ortodoxas
sentenças do relojoeiro católico! O bafo maldito de Satanás devia por ali ter
passado. Mas mestre Zacharius não prestava nenhuma atenção àquilo e prosseguiu:
—
Ouves, minha Gérande? Eu vivo, vivo ainda!... Não! Tu não havias de querer
matar teu pai: aceitarás este homem para esposo, a fim de que eu me torne
imortal e alcance o poder de Deus!
A
estas ímpias palavras a velha Scholastique benzeu-se, e Pittonaccio soltou um
grito de alegria.
—
E depois, Gérande, serás feliz com ele! Vês este homem? É o tempo! A tua
existência será regulada com uma exatidão absoluta! Gérande! Visto que te dei a
vida, restitui a vida a teu pai!
—
Gérande — recordou Aubert —, eu sou teu prometido esposo!
—É
meu pai! — redarguiu Gérande, caindo sem forças.
—
Pertence-te! — disse mestre Zacharius. — Pittonaccio, cumprirás a tua promessa!
—
Eis a chave do relógio — volveu a horrível personagem.
Mestre
Zacharius apoderou-se da comprida chave, que semelhava uma cobra desenrolada,
e, correndo para o relógio, começou a dar-lhe corda com fantástica rapidez. O
ranger da mola incomodava os nervos. O velho relojoeiro girava, girava sem
cessar com a chave, sem que o braço parasse, e parecia que aquele movimento de
rotação era independente da sua vontade. Girou com ela cada vez mais depressa e
fazendo estranhas contorções até que caiu de cansaço.
—
Tem corda para um século! — exclamou.
Aubert
fugiu da sala como um doido. Depois de longos rodeios, achou a saída daquela
morada maldita, e correu para o campo. Voltou à Ermida de Nossa Senhora du Sex
e falou ao santo homem com palavras tão desesperadas que este consentiu em
acompanhá-lo ao Castelo de Andernatt.
Se
durante estas horas de angústia Gérande não chorou é porque não tinha lágrimas
para chorar.
Mestre
Zacharius não abandonara a imensa sala. A cada minuto vinha escutar o bater
regular do velho relógio.
Entretanto,
deram dez horas, e, com grande espanto de Scholastique, apareceram no mostrador
de prata estas palavras:
O homem pode tornar-se igual a
Deus.
Não
só o velho não se ofendia com tão ímpias palavras, como as lia com delírio e se
deleitava com estes pensamentos orgulhosos, enquanto Pittonaccio girava em
torno dele.
À
meia-noite devia assinar-se o contrato do casamento. Gérande, quase inanimada,
não via nem ouvia nada. O silêncio era apenas interrompido pelas palavras do
velho e os rugidos de Pittonaccio.
Deram
onze horas. Mestre Zacharius estremeceu e com voz vibrante leu esta blasfêmia:
O homem deve ser o escravo da
ciência e por ela sacrificar a família.
—
Sim! — exclamou ele—, neste mundo só há a
ciência! Os ponteiros giravam sobre o mostrador de ferro, assobiando como
víboras, e o movimento do relógio era precipitado.
Mestre
Zacharius não falava! Caíra por terra, agonizava, e do seu peito oprimido só
saíam estas palavras entrecortadas:
—
A vida! A ciência!
Esta
cena tinha então duas novas testemunhas: o eremita e Aubert. Gérande, mais
morta do que viva, junto do pai, rezava...
De
repente ouviu-se o ruído que precede o som das horas.
Mestre
Zacharius ergueu-se.
—
Meia-noite! — exclamou ele.
Mas
o eremita estendeu a mão para o velho relógio... e a meia-noite não soou.
Mestre
Zacharius soltou então um grito, que se deve ter ouvido no inferno, quando
estas palavras apareceram:
Aquele que tentar ser igual a Deus
ficará condenado para toda a eternidade.
O
velho relógio rebentou com o ruído de um raio, a mola desprendeu-se, fugiu pela
porta fora, saltando com mil contorções fantásticas. O velho correu atrás dela,
pretendendo debalde apanhá-la, gritando:
—
A minha alma! A minha alma!
A
mola saltava diante dele, de um lado para o outro, sem se deixar apanhar.
Afinal,
Pittonaccio agarrou-a e, proferindo uma horrível blasfêmia, desapareceu nas profundezas
da Terra.
Mestre
Zacharius caiu de costas. Estava morto.
*
O
corpo do relojoeiro foi enterrado no meio dos picos de Andernatt. Em seguida,
Aubert e Gérande voltaram para Genebra e, durante os muitos anos que Deus lhes
concedeu, diligenciaram remir pela oração a alma do réprobo da ciência.
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