O FUNIL DE COURO - Conto Clássico de Terror - Arthur Conan Doyle
O FUNIL DE COURO
Arthur Cona Doyle
(1859 – 1930)
Tradução: Silveira de
Souza
Meu amigo,
Lionel Dacre, morava na Avenue de Wagram, em Paris.
Sua casa era
dessas comuns, tendo grades de ferro e um espaçoso gramado na frente, e ficava
no lado esquerdo se você viesse pelo Arco do Triunfo. Imagino que ela já
existia ali bem antes da construção da avenida, pois as telhas cinzas estavam
manchadas de liquens, e as paredes mostravam-se emboloradas e desbotadas pelo
tempo. Vista da rua, dava a impressão de ser uma casa pequena, com cinco
janelas na fachada, se estou bem lembrado, mas que se estreitava para o fundo
até reduzir-se a um único amplo aposento. Era ali que Dacre colocara a singular
biblioteca de literatura de ocultismo, e as fantásticas curiosidades que
consistiam, ao mesmo tempo, na sua paixão predileta e num divertimento para
seus amigos. Homem abastado, de gostos excêntricos e refinados, ele investira
boa parte da sua vida e da sua fortuna em reunir o que se dizia ser a única
coleção particular de obras cabalísticas, talmúdicas e de artes mágicas, muitas
das quais de grande raridade e valia. Suas preferências inclinavam-se para o
maravilhoso e o monstruoso, e tenho ouvido dizer que os experimentos que fazia
no campo do desconhecido haviam transposto todos os limites do civilizado e do
decente. Ele jamais fez referências sobre esses assuntos a seus amigos
ingleses, assumindo sempre a postura do estudioso e do especialista; mas um
francês, cujos gostos eram da mesma natureza que os de Dacre, assegurou-me que
os piores excessos da missa negra haviam sido perpetrados naquele amplo e alto
salão, que se alongava entre as estantes de livros e os mostruários de seu
museu.
A aparência de
Dacre era suficiente para mostrar que seu acentuado interesse nesses assuntos
psíquicos era de ordem intelectual antes que espiritual. Não havia o menor
vestígio de ascetismo naquela face robusta, e sim muita energia mental no
volumoso crânio em formato de abóbada, que se elevava em curva por entre
delgados anéis de cabelo, como um pico nevado acima da orla de abetos. Seu
conhecimento era maior que sua cautela, e suas faculdades eram bem superiores
ao seu caráter. Os pequenos olhos claros, afundados no rosto carnudo,
cintilavam com inteligência e uma inabalável curiosidade pela vida, mas eram
olhos de alguém sensual e egotista. O que foi dito sobre esse homem é o
suficiente, pois agora já é morto, pobre coitado, morto exatamente no momento
em que estava certo de haver finalmente descoberto o elixir da vida. Não é do
seu caráter complexo que irei me ocupar, mas com o incidente muito estranho e
inexplicável que ocorreu durante a visita que lhe fiz no início da primavera de
1882.
Conheci Dacre
na Inglaterra, porque minhas pesquisas no salão assírio do Museu Britânico
foram conduzidas ao mesmo tempo em que ele tentava estabelecer um significado
místico e esotérico a tabuinhas de argila com inscrições da Babilônia, e tal
coincidência de interesses foi a causa da nossa aproximação. Comentários
casuais converteram-se em conversações diárias, e essas foram nos conduzindo a
algo próximo da amizade. Prometi a ele que na seguinte viagem que fizesse a
Paris, iria visitá-lo. Quando foi possível cumprir a promessa, eu estava
morando numa pequena casa em Fontainebleau, e como os trens noturnos eram
inconvenientes, ele me convidou a passar a noite em sua casa.
- Tenho somente
aquela peça disponível – disse ele, apontando para um largo sofá em sua ampla
biblioteca. - Espero que possa ficar confortável ali.
Era um singular
quarto de dormir, com as altas paredes cobertas de volumes encadernados de capa
marrom, mas não haveria mobília mais agradável para um rato de biblioteca da
minha espécie, e minhas narinas não sentiriam melhor perfume que o leve, sutil
cheiro característico que se exala de um velho livro. Disse a ele que não podia
desejar aposento mais encantador e ambiente mais apropriado.
- Se as
armações não são nada convenientes nem convencionais, são pelo menos valiosas –
disse ele, olhando as estantes em torno. - Investi cerca de um quarto de milhão
em dinheiro nesses objetos que o cercam. Livros, armas, joias, esculturas,
tapeçarias, imagens – dificilmente haverá aqui algo que não tenha a sua
história, geralmente digna de ser contada.
Enquanto dizia
essas coisas, ele estava sentado a um lado da espaçosa lareira e eu do outro
lado. A mesa de leitura ficava a sua direita e o forte candeeiro acima dela
lançava um vívido círculo de luz. No centro da mesa, um palimpsesto
semienrolado tinha ao redor vários e estranhos artigos de antiquários. Um deles
era um volumoso funil, como aqueles usados para encher tonéis de vinho. Parecia
ser feito de madeira negra, com as bordas revestidas de latão descorado.
- Eis ali uma
coisa curiosa – observei. - Qual é a sua história?
- Ah! – disse
ele – é exatamente a pergunta que mais de uma vez tive ocasião de fazer a mim
mesmo. Gostaria muito de saber a resposta. Vamos, pegue o funil, examine-o.
Foi o que fiz,
descobrindo que aquilo que eu imaginara ser madeira era na realidade couro,
embora o tempo o tivesse endurecido ao extremo. Era um enorme funil, e deveria
conter pouco mais de um litro quando cheio. O latão recobria as bordas do
círculo maior, mas a ponta do funil era também revestida de metal.
- O que você
acha disso? – perguntou Dacre.
- Poderia
imaginar que pertenceu a algum negociante de vinho ou fabricante de malte da
Idade Média – respondi. - Já vi na Inglaterra jarros de couro do século
dezessete, para servir bebidas – eram chamados de black jacks. Tinham a mesma
cor e solidez dessa peça.
- Arrisco
afirmar que esse funil é mais ou menos da mesma data – disse Dacre – e, sem
dúvida, também era usado para encher recipientes com líquidos. Se as minha
suspeitas forem corretas, contudo, um estranho vinhateiro foi quem o usou e o
recipiente a ser enchido, bastante singular. Você não observa nada fora do
comum na extremidade mais estreita?
Quando o
levantei próximo da luz, pude verificar que numa estreita faixa, cinco
polegadas acima do bico de metal, o gargalo de couro do funil estava todo
esfolado e riscado, como se alguém tivesse feito cortes ao redor com uma lâmina
cega. Somente nessa faixa ocorria isso; a parte restante da superfície negra e
fosca não apresentava qualquer aspereza.
- Alguém
experimentou cortar o gargalo.
- Você chamaria
a isso de corte?
- Está lacerado
e esfiapado. Foi preciso alguma força para deixar essas marcas em material tão
resistente, qualquer que tenha sido o instrumento utilizado. Mas, e você, o que
pensa disso? Acho que você sabe mais do que está dizendo.
Dacre sorriu e
seus olhinhos experientes piscaram.
- Você incluiu
a psicologia dos sonhos entre os seus assuntos de estudo? – indagou.
- Eu nem mesmo
soube até agora da existência de tal psicologia.
- Meu caro
senhor, aquela prateleira acima da vitrine de joias está repleta de livros, de
Alberto Magno e outros autores. Tratam exclusivamente desse assunto que, em si
mesmo, é uma ciência.
- Uma ciência
de charlatães.
- O charlatão é
sempre o pioneiro. Do astrólogo surgiu o astrônomo, do alquimista o químico, do
mesmeriano o psicólogo experimental. O impostor de ontem é o professor de
amanhã. Mesmo coisas tão sutis e impalpáveis como os sonhos serão, no devido
tempo, submetidas a sistema e ordem. Quando chegar esse tempo, as pesquisas de
nossos amigos daquela prateleira de livros deixarão de ser divertimento dos
místicos para se tornarem os fundamentos de uma ciência.
- Supondo que
isso seja verdadeiro, que relação pode existir entre a ciência dos sonhos e um
funil enorme, negro, com as bordas revestidas de latão?
- Vou
contar-lhe. Você sabe que tenho um agente que está sempre atento em relação às
raridades e curiosidades de interesse para a minha coleção. Alguns dias atrás
ele ouviu falar que um negociante do cais do Sena havia adquirido algumas
velhas quinquilharias encontradas num armário de uma casa antiga, aos fundos da
rua Mathurin, no Quartier Latin. A sala de jantar dessa velha residência era
decorada com um escudo de armas, que continha insígnias, e listas vermelhas
sobre um fundo prateado, o que, após investigações, foi comprovado ser o escudo
de Nicolas de la Reynie, alto funcionário do rei Luís XIV. Não resta nenhuma
dúvida de que os demais artigos encontrados no armário datavam-se de antes do
início desse reinado. A inferência é que, por conseguinte, todos os artigos
eram propriedade desse Nicolas de la Reynie, que foi, pelo que sei, o
cavalheiro que se ocupou com a manutenção e execução das draconianas leis da
época.
- E daí?
- Eu pediria a
você para segurar uma vez mais o funil e examinar a borda superior, revestida
de latão.
Havia por certo
alguns arranhões sobre ela, quase apagados pelo tempo. O efeito geral era o da
existência de diversas letras gravadas; a última delas mostrava certa
semelhança com um B.
- Trata-se de
um B, não é?
- Acho que sim.
- Penso também
desse modo. Na verdade, não tenho dúvida alguma de que se trata de um B.
- No entanto o
nome do aristocrata que você mencionou tinha R por inicial.
- Exatamente!
Eis a beleza da coisa. Ele possuía este curioso objeto e, entretanto, o objeto
tinha as iniciais de outra pessoa gravadas nele. Por que o guardava?
- Não posso
imaginar. Você pode?
- Bem, talvez
possa ter uma hipótese. Você consegue ver algum desenho um pouco adiante, nessa
mesma borda?
- Eu diria que
é o desenho de uma coroa.
- É de fato uma
coroa; mas se você examiná-la sob uma boa luz, vai ficar convencido de que não
é uma coroa qualquer. É uma coroa heráldica – um emblema de distinção, e esse
aí se compõe alternadamente de quatro pérolas e quatro folhas de morangueiro, o
emblema representativo de um marquês. Podemos inferir, portando, que a pessoa
cujas iniciais terminam com a letra B possuía o título que lhe dava direito ao
uso desse diadema.
- Então, esse
vulgar funil de couro pertenceu a um marquês?
Dacre sorriu de
modo peculiar.
- Ou a algum
membro da família de um marquês – disse ele. – Isso é tudo que podemos
claramente reunir a propósito dessa borda gravada.
- Mas o que
tudo isso tem a ver com sonhos?
Eu não sei se
era algo na expressão do rosto de Dacre, ou qualquer sutil sugestão advinda de
seus gestos, mas um sentimento de repulsa, de horror irracional tomou conta de
mim, enquanto olhava aquele antigo e rugoso volume de couro.
- Mais de uma
vez tenho recebido informações importantes por intermédio de meus sonhos –
disse meu companheiro, com o didatismo característico em sua maneira de falar.
- Agora faço disso uma norma: sempre que duvido das informações obtidas sobre
qualquer objeto, lembro de colocá-lo próximo a mim, quando vou dormir, e fico
na expectativa de algum esclarecimento a seu respeito. Tal procedimento não me
parece absurdo, embora não tenha ainda merecido as benções da ciência ortodoxa.
De acordo com minha teoria, um objeto associado intimamente a qualquer
paroxismo da emoção humana, seja de alegria ou de sofrimento, conservará uma
certa atmosfera ou ligação com esse evento, capaz de ser comunicada a uma mente
sensível. Quero significar, por mente sensível, não uma sensibilidade fora do
normal, mas uma inteligência treinada e educada como a sua ou a minha.
-Você quer
dizer que, por exemplo, se eu dormir junto daquela velha espada, que está ali
na parede, posso sonhar com algum episódio sangrento do qual aquela mesma
espada fez parte?
- É um
excelente exemplo, pois, a bem da verdade, eu próprio usei aquela espada com
esse propósito, e vi no meu sonho a morte de seu possuidor. Morreu durante uma
movimentada escaramuça, que não fui capaz de identificar, mas que ocorreu na
época das guerras frondistas.
Se você pensar
a respeito desse assunto, algumas de nossas lendas populares mostram que esse
fenômeno já era reconhecido por nossos ancestrais, embora nós, com a nossa
sabedoria, as tenhamos classificado entre as superstições.
- Por exemplo?
- Bem, o
costume de colocar gulodices de noiva debaixo do travesseiro, de modo que, ao
dormir, tenha ela sonhos agradáveis. Este é um dos diversos exemplos que você
poderá encontrar num folheto que eu mesmo escrevi sobre o tema. Mas, voltando
ao que interessa, dormi certa noite com esse funil ao meu lado, e tive um sonho
que sem dúvida projetou uma curiosa luz sobre seu uso e sua origem.
- O que sonhou
você?
- Eu sonhei...
– Ele fez uma pausa e uma compenetrada expressão de interesse surgiu em seu
rosto imponente - Por Júpiter, é uma ótima ideia! – exclamou. - Realmente vai
ser uma experiência muitíssimo interessante. Você é um indivíduo dotado de
psiquismo, com nervos que respondem prontamente a qualquer impressão.
- Nunca fiz
testes comigo mesmo nessa direção.
- Pois vai
testar hoje à noite. Seria demasiado pedir-lhe, como um grande favor, para
colocar o velho funil ao lado de seu travesseiro, quando você for deitar-se no
sofá?
Tal solicitação
pareceu-me grotesca; mas devo admitir que, na complexidade da minha natureza,
existe um fascínio para tudo que é bizarro e fantástico. Não acreditava nem um
pouco na teoria de Dacre, nem esperava qualquer êxito nesse tipo de
experiência; entretanto, seduzia-me o fato de que ela pudesse ser realizada.
Dacre, com muita seriedade, levou uma banqueta à cabeceira do sofá e colocou o
funil sobre ela. Depois disso, após uma breve conversação, desejou-me boa-noite
e saiu da sala.
Fiquei algum
tempo ali, sentado, fumando, ao calor da lareira, enquanto revolvia mentalmente
o incidente ocorrido e a estranha experiência que parecia ainda me aguardar
adiante. Cético que eu fosse, havia alguma coisa impressiva no comportamento
confiante de Dacre, e aquele ambiente extraordinário que me cercava, o espaço
enorme com objetos incomuns, sinistros, espalhados ou suspensos em torno dele,
tudo isso criava uma aura de solenidade em meu espírito. Por fim, desvesti-me
e, apagando o candeeiro, deitei-me no sofá. Após revolver-me por longo tempo,
adormeci. Vou tentar descrever do modo mais exato possível o drama que surgiu
em meus sonhos. Ele agora está fixado na minha memória mais claramente do que
tudo que eu tenha visto com os olhos despertos. Havia um quarto que tinha a
aparência de uma abóbada. Quatro arcos de base triangular levantavam-se dos
quatro cantos na altura que seria do forro do quarto e reuniam-se num ponto
mais acima, criando um teto na forma de taça. A arquitetura era tosca, mas
visivelmente sólida. Com certeza, fazia parte de uma grande construção.
Três homens de
vestes negras, que usavam esquisitos chapéus de veludo também negro, mais
amplos no topo, sentavam-se numa linha tapetada de vermelho de um estrado. Os
rostos eram bastante solenes e melancólicos.. À esquerda, de pé, viam-se dois
homens, de longas togas, segurando nas mãos porta-fólios que pareciam atulhados
de papéis. No lado direito, olhando na minha direção, estava uma mulher de
baixa estatura, cabelos louros e olhos azul-claros, expressivos – os olhos de
uma menina. Já ultrapassara a primeira juventude, mas não se podia dizer que
estivesse na meia-idade. Seu corpo tendia à gordura, mas o porte era altivo e
confiante. O rosto, pálido e sereno. Era um rosto interessante, gracioso e no
entanto felino, com uma tênue sugestão de crueldade em torno da pequena boca,
reta, firme e do maxilar rechonchudo. Vestia uma espécie de camisola branca e
larga. De pé, ao lado dela, um sacerdote magro, de expressão ansiosa,
murmurava-lhe algo ao ouvido e continuamente elevava um crucifixo diante de
seus olhos. Ela voltava a cabeça e olhava fixamente, para além do crucifixo, os
três homens de preto que eram, eu senti, os seus juízes.
Enquanto eu
olhava, os três homens se levantaram e alguma coisa foi dita, mas não consegui
entender uma única palavra, embora percebesse que, dos três, era o homem do
centro quem estava falando.
Depois
abandonaram a sala, seguidos pelos dois homens com porta-fólios.
No mesmo
instante vários indivíduos de aparência rude, vestindo sólidas jaquetas,
entraram impetuosos e foram removendo, primeiro o assento tapetado de vermelho,
depois as armações do estrado, de modo a deixarem aquele espaço inteiramente
vazio. Quando a armação de fundo do estrado foi removida, vi alguns objetos
assustadores, peças de mobília, que estavam por detrás dela. Uma dessas peças
parecia uma cama com cilindros de madeira nas duas extremidades e um sarilho
manual para regular o seu comprimento. Outro objeto era um potro de madeira. E
assim havia diversas outras coisas igualmente estranhas e também um conjunto de
cordas suspensas que passavam por roldanas.
Tudo aquilo não
era diferente de uma moderna sala de ginástica.
Assim que o
estrado foi retirado, apareceu em cena um novo personagem. Era um homem alto,
magro, de roupagem negra, tendo um rosto descarnado e austero. O aspecto desse
homem me fez estremecer.
Suas roupas
brilhavam de tão engraxadas e estavam salpicadas de manchas. Movia-se com lenta
e impressionante dignidade, como quem sumisse o comando de tudo desde o
instante de sua entrada. A despeito da aparência rude e das vestes sujas,
aquela sala era agora sua responsabilidade, estava sob seu controle. Viam-se
cordas finas enroladas e dependuradas em seu antebraço esquerdo. A mulher
examinou-o de alto a baixo com os olhos, mantendo a expressão impassível. Sua
expressão era confiante, até mesmo de desafio. Mas foi muito diferente com o
sacerdote. O rosto deste tornou-se horrivelmente lívido e eu vi a umidade do
suor brilhar e deslizar pela sua fronte ampla e levemente inclinada. Ele ergueu
as mãos em gesto de prece e curvava-se continuamente para murmurar palavras
frenéticas no ouvido da mulher.
O homem de
vestes negras agora avançava e, tomando uma das cordas em seu braço esquerdo,
amarrou os pulsos da mulher, que ficou com as mãos unidas. Ela estendia os
braços sem resistência na direção dele, enquanto era amarrada. Então ele
segurou-a rudemente pelos ombros, empurrando-a na direção do potro de madeira,
cujo assento ficava um pouco acima da cintura dela. Por isso ergueram-na e
colocaram-na sobre o assento, deitada de
costas, com o
rosto voltado para o teto, enquanto o sacerdote, horrorizado e trêmulo, fugia
da sala.
A mulher movia
rapidamente os lábios, e, ainda que eu não pudesse ouvir nada, sabia que ela
estava rezando. Seus pés pendiam suspensos nos dois lados do potro e vi que
alguns lacaios grosseiros, sob ordem, haviam-lhe amarrado os tornozelos e
prendido a outra extremidade das cordas em anéis de ferro fixados sobre o chão
de pedra.
Senti que meu
coração afundava, enquanto eu via aqueles sinistros preparativos e ao mesmo
tempo me achava preso ao fascínio do horror e não conseguia afastar os olhos
daquele terrível espetáculo. Um homem entrara na sala carregando um balde de
água em cada mão Outro homem o seguia, trazendo um terceiro balde. Foram
deixados ao lado do cavalo de madeira. O segundo homem segurava na outra mão
uma grande concha de madeira – espécie de tigela com uma asa reta.
Entregou-a ao
homem de vestes negras. Nesse momento um dos lacaios se aproximou da mulher com
um objeto escuro nas mãos, o qual, mesmo em sonho, apoderou-se de mim,
originando um vago sentimento de familiaridade. Era um funil de couro. Com um
impulso enérgico e horrível, o lacaio enfiou-o na... – mas não pude mais
suportar. Meus cabelos se arrepiaram de pavor. Eu me estorci e debati,
conseguindo romper os limites do sonho, soltando o grito mais forte de toda minha
vida e fui encontrar-me, trêmulo de horror, no sofá de uma ampla biblioteca,
com raios de luar fluindo da janela e atirando arabescos sombreados e prateados
na parede oposta. Ah, que alívio abençoado sentir que estava de volta ao século
dezenove, e não sob uma abóbada medieval, que estava num mundo onde os homens
tinham corações humanos em seus peitos. Sentei-me no sofá, tendo os membros
ainda trêmulos, a mente dividida entre a gratidão e o horror. Pensar que coisas
tais foram um dia realizadas, que puderam ser realizadas sem que Deus houvesse
fulminado os vilões responsáveis. Foi tudo uma fantasia, ou foi algo que
realmente aconteceu nos dias negros, cruéis, da história do mundo? Mergulhei a
cabeça palpitante entre as mãos ainda trêmulas. E, então, repentinamente, tive
a impressão que cessavam as batidas de meu coração, e eu nem mesmo consegui
gritar, tão grande foi o meu medo. Alguma coisa se movimentava na minha
direção, na escuridão do quarto.
É uma sequência
de horrores que abate o espírito humano. Eu não conseguia raciocinar, nem podia
rezar; podia somente ficar sentado como uma imagem congelada, e olhar o sombrio
espectro que atravessava a ampla sala. Mas então ele se moveu sobre uma faixa
iluminada pelo luar e eu pude respirar aliviado uma vez mais. Era Dacre, e seu
rosto indicava que ele parecia tão assustado quanto eu.
- Foi você?
Pelo amor de Deus, o que houve? – perguntou ele com uma voz áspera.
- Como me
alegro em vê-lo, Dacre! Estive no inferno. Foi uma coisa medonha.
- Então foi
você quem gritou?
- Ouso dizer
que sim.
- Seu grito
ressoou por toda a casa. Os criados estão apavorados.
Dacre acendeu
um fósforo e levou-o ao candeeiro..
- Vamos atiçar
o fogo da lareira e aquecer de novo o ambiente – acrescentou, atirando algumas
achas de lenha sobre as brasas. – Por Deus, meu caro, como você está pálido! Dá
a impressão de ter visto um fantasma!
- Você tem
razão. Foram vários fantasmas.
- Quer dizer
que o funil de couro funcionou, afinal?
- Eu não
dormiria de novo ao lado dessa coisa infernal nem por todo o dinheiro que você
pudesse oferecer-me.
Dacre soltou
uma risadinha reprimida.
- Eu esperava
que você tivesse uma noite agitada – disse ele. - Mas você me deu o troco, pois
aquele grito não foi nada agradável, às duas horas da madrugada. Suponho pelo
que você está dizendo que você viu todo o terrível negócio.
- Que terrível
negócio?
- A tortura
pela água, o “interrogatório extraordinário”, como era chamado nos alegres dias
de Le Roi Soleil. Você aguentou até o fim?
- Não, graças a
Deus. Acordei antes que começasse de fato.
- Ah, você é um
felizardo! Eu suportei até o terceiro balde. Bem, é uma velha estória, e todos
os que dela participaram estão agora em suas tumbas, assim, de qualquer modo,
que importância tem sabermos como chegaram até ali? Suponho que você tenha
alguma ideia a propósito daquilo que viu?
- A tortura de
alguma malfeitora. A mulher deve ter sido uma terrivel malfeitora, na verdade,
se os seus crimes foram cometidos na proporção de sua penalidade.
- Bem, temos
esse pequeno consolo – disse Dacre, arrepanhando o roupão e acocorando-se mais
próximo da lareira. - Eles foram cometidos na proporção da penalidade. Quer
dizer, se estou correto sobre a identidade da mulher.
- Como pôde
saber a provável identidade dela?
Por resposta,
Dacre apanhou da prateleira próxima um antigo volume com capa de velino.
- Apenas escute
– disse ele. - Está escrito num francês do século dezessete, mas farei uma
tradução aproximada. Você julgará por si mesmo se matei ou não a charada: “A
prisioneira foi conduzida à presença das Grand Chambers e Tournelles do
Parlamento, em sessões de corte de justiça, acusada do assassinato do mestre
Dreux d’Aubray, o pai dela, e de seus dois irmãos, os senhores d’Aubray, um
deles tenente civil, e conselheiro do Parlamento o outro. Em pessoa, parecia
difícil de acreditar que ela realmente tivesse cometido ações de tal
perversidade, pois seu aspecto era meigo, e de baixa estatura, com uma pele
bonita e olhos azuis. Entretanto, a Corte, tendo averiguado a sua culpa,
condenou-a aos interrogatórios usual e extraordinário, de modo a obrigá-la a
confessar os nomes de seus cúmplices, depois do que seria conduzida numa
carreta até a Place de Grève, onde seria decapitada, sendo seu corpo
posteriormente queimado e as cinzas jogadas aos ventos. A data deste registro é
de 16 julho de 1676.”
- É
interessante – eu disse - mas não muito convincente Como você prova serem a
mesma essas duas mulheres?
- Já vou
fazê-lo. A narrativa prossegue, descrevendo a conduta da mulher ao ser
interrogada: “Quando o carrasco se aproximou, ela o reconheceu pelas cordas que
ele trazia nas mãos, e ela em seguida estendeu as próprias mãos para ele,
olhando-o de alto a baixo sem pronunciar uma palavra”. Que tal isso?
- Confere, de
fato.
- “Ela olhou
sem estremecer o potro de madeira e os anéis de ferro que tinham retorcido
tantos membros humanos e causado tantos gritos de angústia. Quando seus olhos
caíram sobre os três baldes com água, que estavam já preparados para ela, disse
com um sorriso, ‘toda essa água deve ter sido trazida aqui com o propósito de
afogar-me, monsieur. O senhor decerto não tem, confio eu, a menor ideia de
forçar uma pessoa da minha estatura a beber tudo isso”. Deverei ler os detalhes
da tortura?
- Não, pelo
amor de Deus, não!
- Eis um
parágrafo da sentença que vai lhe mostrar que o que está aqui registrado é uma
cena que, por certo, você presenciou esta noite: “O bom abade Pirot, incapaz de
contemplar os tormentos a que ia ser submetida a sua penitente, saiu correndo
da sala” Isso convence você?
-
Completamente. Não tenho mais dúvida de que se trata do mesmo evento. Mas, quem
era essa mulher de aparência tão atraente e cujo fim foi tão
horrível?
Sem responder,
Dacre cruzou-me à frente e trouxe, aceso, um pequeno lampião, colocando-o
depois sobre a banqueta que estava ao lado do sofá. Erguendo o funil agourento,
iluminou em cheio a orla de latão. Vistas assim, bem iluminadas, as gravações
na orla pareciam mais nítidas que na noite anterior.
- Já
concordamos que se trata do emblema de um marquês ou marquesa – disse ele.
Também acertamos que a última letra é B.
- Sem dúvida.
- Vou sugerir
agora a você que as outras letras, da direita para a esquerda, são M, M; um d
minúsculo, A, um d minúsculo e, então, finalmente, o B.
- Sim, Você tem
razão.Posso ver claramente os dois d minúsculos.
- O que eu li a
você esta noite – disse Dacre – é a cópia do registro oficial do processo de
Marie Madeleine d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, uma das mais célebres
envenenadoras e assassinas de todos os tempos.
Fiquei sentado
em silêncio, acabrunhado ante a natureza extraordinária do acontecimento. e
ante a inteireza das provas em relação às quais Dacre expusera o real
significado. De um modo vago, recordei alguns detalhes da carreira da mulher,
sua libertinagem desenfreada, o sangue-frio e a prolongada tortura a seu pai
doente, o assassinato dos irmãos motivado por lucros mesquinhos. Lembrei também
que a bravura de seu fim havia reparado de algum modo o horror de sua vida, e
que Paris em peso havia simpatizado com seus momentos finais, havendo-a
abençoado como mártir poucos dias depois de havê-la amaldiçoado como assassina.
Uma objeção, e apenas uma, passou-me pela mente.
- Como as
iniciais de seu nome e o emblema de sua categoria vieram a ser gravados no
funil? Por certo a admiração medieval à nobreza não chegava ao ponto de
ornamentar os instrumentos de tortura com os títulos de suas vítimas, não é
verdade?
- Essa questão
também me intrigou – disse Dacre –, mas ela admite uma explicação simples. O
processo provocou extraordinário interesse na época, e nada poderia ser mais
natural que La Reynie, o Chefe de Polícia, tivesse retido esse funil como
sinistro souvenir. Não era acontecimento frequente que uma marquesa de França
fosse submetida ao interrogatório extraordinário. Que ele tivesse mandado
gravar as iniciais dela sobre o funil, a título de informação para as demais
pessoas, era seguramente um procedimento comum em casos assim.
- E isto? -
perguntei, apontando para as marcas sobre o gargalo de couro do funil.
- Ela era uma
tigresa cruel – disse Dacre, enquanto se afastava dali. - Penso ser evidente
que, a exemplo das outras tigresas, essa também tivesse dentes fortes e
afiados.
Extraordinário!
ResponderExcluirSir Arthur Conan Doyle é um escritor que excede adjetivos.
Muito obrigada por disponibilizar estas obras.