UM CAVALEIRO NO CÉU - Conto Clássico - Conto Fantástico - Ambrose Bierce
UM CAVALEIRO NO CÉU
Ambrose Bierce
(1842 – 1914?)
Tradução de Renato Suttana
1
Por uma tarde ensolarada do
outono de 1861, um soldado jazia deitado em meio a uma moita de loureiros junto
a certa estrada no oeste de Virgínia. Estava deitado de bruços, as pontas dos
pés tocando o chão, a cabeça apoiada no antebraço esquerdo. A mão direita,
estendida, segurava frouxamente o rifle. Porém, dada a disposição algo metódica
de seus membros, e um vago movimento rítmico da cartucheira no dorso do
cinturão, se poderia pensar que estivesse morto. Dormia em seu posto de
vigilância. No entanto, se detectado, morreria imediatamente, sendo a morte a
penalidade legal para esse crime.
A moita de loureiros na qual
jazia o criminoso situava-se no ângulo de uma estrada que, após ascender a pino
em direção ao sul até aquele ponto, dobrava bruscamente para oeste, correndo
sobre a crista por talvez uma centena de jardas. Daí virava para o sul outra
vez e ziguezagueava para baixo através da floresta. Na saliência daquele
segundo ângulo havia uma grande rocha achatada, que se projetava para o norte
por sobre o vale profundo de onde subia a estrada. A rocha coroava um alto
precipício: uma pedra atirada de lá cairia por uns bons mil pés antes de
atingir o topo dos pinheiros. O ângulo onde se encontrava o soldado ficava na
outra ponta do precipício. Se estivesse desperto, teria uma ampla visão não só
do curto trecho de estrada e do rochedo eminente, mas também de toda a face do
abismo por baixo dele. Poderia ter uma vertigem ao olhar.
Árvores cobriam a paisagem por
toda parte, falhando apenas ao pé do vale, ao norte, onde havia um pequeno
descampado; através dele fluía um regato que mal se avistaria da orla do vale.
Essa área descoberta pareceria pouco maior que um pátio de entrada comum, mas
tinha de fato muitos acres de extensão. Seu verde era mais vivo do que o da
floresta circundante. Para além dele erguia-se uma linha de gigantescos
despenhadeiros, semelhantes àquele em que nos postamos agora para observar essa
cena selvagem, e em meio a eles a estrada, de algum modo, conseguia galgar até
o cimo. Com efeito, a configuração do vale era tal que, deste ponto de
observação, pareceria inteiramente enclausurado; e se poderia perguntar de que
maneira a mesma estrada que levava para fora dele penetrava nele, e de onde
vinham e para onde iam as águas do regato que atravessavam a campina a mais de
mil pés abaixo.
Cenário algum seria tão
selvagem e difícil, mas os homens farão dele um teatro de guerra. Ocultos na
floresta, ao pé daquela ratoeira militar, onde meia centena de homens
guarnecendo as saídas teriam obrigado um exército inteiro a se render por
inanição, havia cinco regimentos da Infantaria Federal. Tinham marchado durante
todo o dia e durante toda a noite anterior e agora descansavam. Ao cair da
noite retornariam à estrada, subiriam até o lugar onde sua sentinela
irresponsável estava dormindo e, descendo pelo outro lado, se lançariam sobre o
acampamento inimigo por volta da meia-noite. Depunham esperança na surpresa,
pois a estrada conduzia à retaguarda do acampamento. Em caso de fracasso, sua
posição teria sido perigosa em extremo. E certamente falhariam, se algum
acidente ou vigilância notificasse o inimigo a respeito desse movimento.
2
A sentinela adormecida na moita
de loureiros era um jovem de Virgínia, chamado Carter Druse. Era filho único de
pais ricos e tinha desfrutado das facilidades, do cultivo e do alto padrão de
vida que a riqueza e o gosto são capazes de proporcionar na região montanhosa a
oeste de Virgínia. Sua casa ficava a poucas milhas do local onde ele estava
agora. Certa manhã ele se levantou da mesa, após o café, e disse, em tom
compenetrado e grave:
– Pai, um regimento da União
chegou a Grafton. Vou me juntar a ele.
O pai ergueu a cabeça leonina,
olhou em silêncio para o filho durante um momento e respondeu:
– Bem, vá, meu senhor. E,
aconteça o que acontecer, faça aquilo que você concebe como sendo o seu dever.
A Virgínia, para a qual você é um traidor, deve passar sem você. Se vivermos
até o fim da guerra, falaremos mais tarde sobre o assunto. Sua mãe, como o
médico informou a você, se encontra numa situação bastante crítica. No máximo,
poderá estar entre nós por mais algumas semanas, mas esse tempo é precioso.
Seria melhor não perturbá-la.
Então Carter Druse, fazendo uma
reverência ao pai, que correspondeu à saudação com uma cortesia altiva em que
se ocultava um coração partido, deixou o lar de sua infância para se alistar.
Pela consciência e pela coragem, por atos de devoção e de audácia, ele logo se
tornou respeitado entre os camaradas e os oficiais. E era a essas qualidades e
a certo conhecimento da região que devia agora ter sido selecionado para a
presente e perigosa tarefa na posição extrema. Entretanto a fadiga foi mais
forte que sua resolução, e ele adormeceu. Que bom ou mau anjo veio num sonho
despertá-lo de seu estado criminoso, ninguém saberá. Sem o menor movimento, sem
um som, no profundo e lânguido silêncio da tarde, algum mensageiro invisível do
destino tocou com o dedo os olhos de sua consciência; sussurrou no ouvido de
seu espírito a misteriosa palavra do despertar que nenhum lábio humano jamais
pronunciou, nenhuma memória humana jamais recordou. Ele levantou devagar a
fronte, que se apoiara no braço, e olhou através da camuflagem dos ramos de
loureiro, fechando instintivamente a mão sobre a coronha do rifle.
Sua primeira sensação foi a de
um extremo deleite artístico. Num portentoso pedestal, o precipício – imóvel na
extremidade da rocha superior e nitidamente recortado contra o céu –, via-se
uma estátua equestre de impressionante dignidade. A figura do homem completava
a figura do cavalo, rígida e marcial, mas com o repouso de um deus grego
esculpido no mármore que limita a sugestão de atividade. O traje cinzento se
harmonizava com o fundo aéreo; o brilho metálico dos equipamentos e dos jaezes
era amenizado e suavizado pela sombra; a pele do animal não tinha pontos de luz
excessiva. Uma carabina drasticamente amputada estava presa ao cocuruto da
sela, segura em seu lugar pela mão direita que a sustinha pelo gatilho; a mão
esquerda, segurando a rédea, estava invisível. Silhuetado contra o céu, o
perfil do cavalo se recortava com a nitidez de um camafeu; olhava através das
alturas em direção aos precipícios lá adiante. O rosto do cavaleiro, voltado
para outra banda, deixava entrever apenas um princípio de têmpora e de barba.
Olhava para baixo até o fundo do vale. Aumentado pela sua elevação contra o céu
e pela sensação patente, que o soldado experimentou, da grandeza de um inimigo
próximo, o grupo pareceria de um tamanho heroico, quase colossal.
Por um instante Druse teve uma
sensação estranha, meio indistinta, de ter dormido até o fim da guerra e de
estar olhando para um nobre trabalho de arte erguido sobre aquele píncaro para
comemorar os feitos de algum passado heróico do qual ele teria sido um
participante inglório. A sensação foi dispersada por um sutil movimento do
grupo: o cavalo, sem mover as patas, afastara o corpo ligeiramente da borda,
sendo que o homem permaneceu imóvel como antes. Cada vez mais desperto e
consciente da situação, Druse apertou a coronha de seu rifle contra o queixo e
enfiou com cuidado o cano por entre os arbustos. Armou o cão, olhando através
da mira, e visou um ponto vital no peito do cavaleiro. Um toque no gatilho, e
tudo estaria bem com Carter Druse. Nesse instante, o cavaleiro voltou a cabeça
e os olhos na direção de seu adversário oculto – pareceu fitar mesmo em seu
rosto, em seus olhos, em seu coração bravo e apaixonado.
Será tão difícil matar um
inimigo na guerra – um inimigo que surpreendeu um segredo vital à segurança de
alguém e de seus camaradas – um inimigo mais formidável pelo que sabe do que
todo um exército por seus números? Carter Druse empalideceu: seus membros
tremeram, falharam; e ele viu o grupo escultural à sua frente, como figuras
negras que subiam, caíam, oscilavam em arcos de círculos sobre um céu de sonho.
Sua mão se afastou da arma, sua cabeça caiu lentamente até que o rosto repousou
sobre as folhas em meio às quais ele jazia. A intensidade da emoção quase fez
desmaiar esse soldado corajoso e robusto.
Não durou muito. No momento
seguinte seu rosto se ergueu da terra, suas mãos retornaram ao rifle, seu
indicador buscou o gatilho. Mente, coração e olhos estavam limpos, conscientes,
e a razão era clara. Não havia esperança de capturar aquele inimigo. Alarmá-lo
teria sido apenas remetê-lo de imediato ao acampamento com sua notícia fatal. O
dever do soldado era estrito: o homem tinha de ser alvejado por emboscada – sem
aviso, sem preparação espiritual, quando muito com uma prece tácita, antes de
ser liquidado. Mas não – há uma esperança: ele pode não ter descoberto nada,
talvez esteja apenas admirando a sublimidade do cenário. Se permitido, daria
meia volta e galoparia descuidado em direção ao lugar de onde viera. Com certeza,
será possível julgar, no instante de sua retirada, o quanto saberá. Pode até
ser que a fixidez de sua atenção – Druse voltou a cabeça e olhou para as
profunduras lá embaixo, como quem olha da superfície para o fundo de um mar
translúcido. Viu galgar através da campina verdejante uma linha sinuosa de
figuras de homens e de cavalos – algum comandante imbecil estaria permitindo
aos soldados de sua escolta dar água aos animais à vista aberta e plena de uma
dúzia de picos!
Druse desviou os olhos do vale
e os fixou outra vez sobre o grupo de homem e cavalo no céu, e outra vez
através da mira do rifle. Mas desta vez seu alvo estava no cavalo. Em sua
memória, como um mandado divino, soaram as palavras de seu pai quando partiu: “Aconteça
o que acontecer, faça aquilo que você concebe como sendo o seu dever.” Estava
calmo agora. Seus dentes se fecharam com firmeza, mas não rigidamente. Seus
nervos estavam tranquilos como os de um bebê que adormeceu; sequer um tremor
agitava um único músculo de seu corpo. Sua respiração, suspensa até então no
ato de mirar, tornou-se regular e lenta. O dever prevaleceu. O espírito disse
ao corpo: “Paz, fique quieto.” Atirou.
3
Um oficial da Força Federal, o
qual, num espírito de aventura ou de busca de conhecimento, tinha deixado o
bivaque escondido no vale e, um tanto a esmo, abrira caminho até a extremidade
mais baixa de um pequeno espaço aberto ao pé do precipício, considerava o que
teria a ganhar se levasse mais longe a exploração. À distância de um quarto de
milha em frente, mas aparentemente ao alcance de uma pedrada, elevava-se da
franja dos pinheiros a gigantesca face da rocha, atingindo uma altura tal que
lhe daria vertigem olhar para cima em direção à linha escarpada e aguda que se
recortava contra o céu. Seu perfil se apresentava claro e vertical contra o
azul do céu, indo até um ponto mais abaixo, acompanhado das colinas distantes,
pouco menos azuis, e daí seguia até os topos das árvores na sua base.
Levantando os olhos para a estonteante altitude do cimo, o oficial teve uma
visão estarrecedora – um homem montado a cavalo descia para o vale através do
ar!
O cavaleiro mantinha-se a
prumo, bem ao modo militar, sentado firme na sela, segurando com força as
rédeas para controlar sua montaria num salto tão impetuoso. De sua cabeça
desnuda flutuavam longos cabelos, saindo dela como fumaça. As mãos estavam
ocultas pela nuvem da crina levantada. O corpo do animal permanecia nivelado,
como se as quatro patas encontrassem o apoio da terra. Seus movimentos eram
como os de um galope selvagem, mas cessaram enquanto o oficial olhava, todas as
patas lançando-se para a frente, como no ato de pousar após um salto. Mas isso
era um voo!
Cheio de espanto e terror
devido à aparição do cavaleiro no céu – e quase se acreditando já o escriba
escolhido de algum novo Apocalipse –, o oficial se viu subjugado pela
intensidade de suas emoções. Suas pernas falharam, e ele caiu. Quase no mesmo
instante, ouviu o ruído dos galhos se partindo – um som que não produziu eco –,
e tudo se aquietou.
O oficial se levantou,
tremendo. A sensação familiar de uma canela esfolada lhe restituiu a faculdades
ofuscadas. Recompondo-se, correu para baixo, afastando-se do sopé do penhasco,
para um ponto onde esperava encontrar o homem, o que não adiantou. No instante
fugidio de sua visão, sua imaginação fora de tal maneira arrebatada pela graça,
facilidade e intencionalidade aparente da maravilhosa performance que não lhe
ocorreu que a linha de marcha da cavalgada aérea era diretamente para baixo e
que os objetos de sua busca poderiam ser encontrados bem ao pé do penhasco.
Meia hora depois ele retornou ao acampamento.
Esse oficial era um sábio, que
conhecia muito bem a hora de não contar uma verdade incrível. Não disse nada
sobre o que vira. Mas, quando o comandante lhe perguntou se, em sua batida,
descobrira qualquer coisa de vantajosa para a expedição, respondeu:
– Sim, senhor, não existe
estrada para este vale a partir do sul.
O comandante, que bem sabia,
sorriu.
4
Depois de atirar, o soldado
Carter Druse recarregou o rifle e retomou a vigilância. Mal se passaram dez
minutos, e um sargento dos federais engatinhou com cautela até ele. Druse não
se voltou, nem olhou para ele, mas permaneceu imóvel, sem dar sinal de
reconhecimento.
– Você atirou? – murmurou o
sargento.
– Sim.
– Em quê?
– Num cavalo. Estava sobre
aquela pedra – bem ali. Mas não está mais lá. Voou para o precipício.
A cara do homem estava branca,
mas ele não mostrava outros sinais de emoção. Tendo respondido, desviou os
olhos e não disse mais nada. O sargento não entendeu.
– Olhe aqui, Druse – disse,
depois de um silêncio –, é melhor não fazer mistério. Ordeno que dê o relato.
Havia alguém sobre o cavalo?
– Sim.
– Então?
– Meu pai.
O sargento se levantou e se
afastou.
– Deus do céu! – disse.
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