O CARRASCO DE JEAN-LUC CHIENDENUIT - Conto de Horror - Aldo Addobbati
O
CARRASCO DE JEAN-LUC CHIENDENUIT
Por Aldo
Addobbati
Se
tens disposição, embora não gostes nem um pouco de vinho tinto da Campanha,
batizado às escondidas por Pauline, a filha mais jovem de Madame Desmoulins (e
sob as ordens desta), bem podes abandonar a Praça da Revolução, onde o verdugo
acabara de exibir ao público a última cabeça decepada da tarde, e, quebrando
pela Rua de Mondovi, penetrar na obscura Taverna do Dragão.
É
claro que não é o vinho batizado o que te atrai, nem é a umidade das paredes de
pedra crua o que te impele ao inevitável. Não te seduz a escuridão implacável e
pegajosa que, poeticamente, abafa e suga o lume dos castiçais e candelabros de
ferro retorcido. Tudo isto, decerto, aprofunda o enlevo da doce melancolia de
um estudante apaixonado. Não estás, porém, neste antro pestilento, insalubre
até a alma, para embriagar-te do vinho aguado da Campanha, ou afogar-te nas trevas
de tão inspirador ambiente — cuja sórdida beleza só as almas mais taciturnas e
melancólicas como a tua podem admirar e dela comprazer-se —, mas para
inebriar-te na beleza rude e alucinante de Pauline. Nesta noite, todavia, não é
a jovem normanda quem atende às mesas enodoadas, de madeira quase podre, com a
sua habitual indiferença de musa inacessível. Quem o faz, para a tua loucura, é
mãe Desmoulins em pessoa. Mas a afabilidade campesina de Madame Desmoulins,
acentuada pelos sorrisos contidos de viúva recatada, ainda mais aprofunda a tua
decepção, ainda mais te exaspera a alma impaciente, e tenho certeza que já
estarias na soleira da porta, prestes a ir embora, se não fosse por aqueles
dois cavalheiros de meia idade, cujo ar respeitável contrasta vivamente com toda
esta atmosfera doce e pestilencial. Mas é inevitável, já não podes debandar: eles
fisgaram a tua atenção — assim como a minha — com as histórias mais tenebrosas
que já tiveste, jovem e trágico poeta, a oportunidade de escutar.
O
que parecia ser o mais velho dos cavalheiros — um homem pálido, extremamente magro,
de penetrantes olhos azuis e finíssimo nariz aquilino — escutava atentamente o
desfecho da caliginosa história que o amigo acabara de contar.
—
À tua história, Trésor — disse o senhor macilento —, não falta verossimilhança
alguma, embora eu não acredite que tenha ela realmente acontecido ou, se de
fato aconteceu, se passou conforme ma narraste. Mas eu posso contar-te uma
história sem sombra de dúvida verídica. Pela minha honra e pela honra de meus
pais — que Deus os tenha! — posso assegurar-te de que tudo aconteceu exatamente
na forma em que eu te irei narrar.
“Em
janeiro de 1794, um cidadão chamado Jean-Luc Chiendenuit, um brutamontes de
pavio curto e mãos de ferros, conhecido na vizinhança de Faubourg Saint-Marcel pela
extrema valentia e brutalidade, foi condenado à morte por ter assassinado, após
um rompante de incontrolável fúria, a mulher e dois de seus cinco filhos
pequenos.
“Conta-se
que, após ouvir o veredito, Chiendenuit desferiu um potente murro em seu
defensor, deixando o advogado desacordado, semimorto, sobre o tablado. Foram necessários
cinco ou seis gendarmes e meirinhos para subjugá-lo. Manietado e amordaçado —
se não lutava com os punhos, empregava perigosamente os dentes, por onde
escapavam impropérios não de todo audíveis a cada mordida —, foi o réu conduzido
à prisão de Bicêtre e metido, por imprescindível cautela, numa cela individual,
embora não fosse ele um prisioneiro político.
“Apesar
da injúria física, que lhe custou um nariz fraturado e dores lancinantes, o
defensor do brutamontes recorreu, debalde, a Robespierre, que presidia o Comitê
de Segurança Geral. O gesto magnânimo do advogado foi uma afronta à
susceptibilidade de sua própria família. Um de seus filhos, num arroubo típico
de um mancebo recém-saído de uma intranquila adolescência, jurou que, não fosse
a condenação de Chiendenuit à guilhotina, retalharia o seu peito com as
próprias mãos.
“Há
aqui, meu nobre Trésor, um quê de retribuição... de justiça divina.
“Passada
a ira, e percebendo a terrível dimensão de seu drama, Jean-Luc, o impávido
operário de pedreiras, que aterrorizava, com o seu olhar endemoninhado, a todos
que cruzavam o seu caminho, caiu numa brutal melancolia. O santo abade
Duplessis — nessa época, era ele o capelão das prisões —, seriamente advertido
pelos carcereiros da brutalidade de Chiendenuit, e do perigo que este
representava a quem ousasse defrontá-lo, surpreendeu-se, admirado, ao encontrar
na cela não um gigante iracundo e destemperado, mas uma criança amedrontada, encolhida
no canto mais tenebroso daquele cubículo infecto. O prisioneiro quase nada disse
e coisa alguma confessou, apesar da pacífica insistência do dedicado sacerdote.
Limitou-se o prisioneiro a lançar ao abade um olhar vazio e distante, no qual,
vez por outra, assomava, junto ao súbito despertar da consciência de uma
tragédia inexorável, a fugidia expressão de um terror repentino, cintilante como
um mísero instante, mas profundo e incompreensível como a eternidade da própria
morte. ‘Quando ele finalmente disse alguma coisa, concluí que a irremediável perda
da própria identidade’, afirmou, categoricamente, Duplessis ao defensor de
Chiendenuit, ‘parecia-lhe amesquinhada diante do inexaurível horror do perpétuo
vazio’.
“Quando,
na manhã seguinte, um gendarme anunciou que ele — o apavorado Chiendenuit — seria
conduzido imediatamente à guilhotina, uma síncope repentina e violenta o atirou
ao chão. Ao desmaio, seguiram-se convulsões incontroláveis. Estas, porém, pouco
duraram. Ao cabo de alguns segundos, o experiente gendarme, supondo que o
ataque não era mais uma farsa vulgar, tão comum aos condenados à morte, encostou
o ouvido ao peito do prisioneiro, e nada ouviu.”
—Meu
caro Barde — interrompeu o senhor moreno e de aparência
sossegada —, creio que este Chiendenuit, sem dúvida um homem de brutalidade
inexcedível, e que realmente merecia pagar pelos seus crimes, foi muito bem
dotado pela Providência. Morrer assim, provavelmente vítima de um ataque fulminante
do coração, parece-me uma alternativa bem mais aceitável que a de enfrentar os
horrores que precedem uma execução na guilhotina. A tão só contemplação da
máquina sanguinária, o simples e regelante lampejo daquele sombrio monumento de
morte — mais frio e taciturno
que um túmulo — significa um horror somente comparável com a horrenda
consciência de que, dali a poucos minutos — se tanto — a tua cabeça oscilante,
aspergida de sangue, indefesa como um pingente réprobo atado pelos cabelos às mãos
asquerosas de um carrasco inclemente, será exposta ao escárnio e à execração públicos,
enquanto o teu corpo ensaia, como o de uma galinha degolada, as últimas e
lastimáveis convulsões. Diante das circunstâncias, vejo Jean-Luc Chiendenuit como
um perfeito aventurado.
—Sem
dúvida, meu amigo Trésor, tens razão em tuas sábias premissas — disse Bard, sem
se importar com a interrupção do bom amigo. — Mas é preciso que eu conclua a
minha história. Somente assim, saberás se foi justa ou não a recompensa que os
céus — ou, quem sabe, os infernos — reservaram ao bruto assassino.
—
Sou todo ouvidos, então.
— O professor Beaufort, célebre anatomista, e, naquele dia, o médico visitante de Bicêtre, foi chamado, às pressas, para acudir o condenado. Examinou perfunctoriamente o paciente. Atestou, corriqueiramente, mais um óbito e recomendou que o corpo fosse imediatamente conduzido ao morgue da escola de Medicina. Como a sede de sangue da guilhotina era insaciável, nunca se viam, nas faculdades, cadáveres íntegros de condenados à morte. À família dos executados, a lei não admitia que reclamassem os corpos, ao contrário da dos miseráveis que, a cada dia, tombavam, às dezenas, de fome e frio, no fundo de seus casebres e nas ruelas imundas de Paris. A Ciência clamava pela raridade daqueles despojos numa aula de necropsia. Por isso, na manhã seguinte, o professor Beaufort, o seu auxiliar de necropsia, e alguns poucos alunos obstinados que, convocados às pressas, não temiam a gelada e persistente chuva de inverno, reuniram-se em torno do corpo de Jean-Luc Chiendenuit.
— O professor Beaufort, célebre anatomista, e, naquele dia, o médico visitante de Bicêtre, foi chamado, às pressas, para acudir o condenado. Examinou perfunctoriamente o paciente. Atestou, corriqueiramente, mais um óbito e recomendou que o corpo fosse imediatamente conduzido ao morgue da escola de Medicina. Como a sede de sangue da guilhotina era insaciável, nunca se viam, nas faculdades, cadáveres íntegros de condenados à morte. À família dos executados, a lei não admitia que reclamassem os corpos, ao contrário da dos miseráveis que, a cada dia, tombavam, às dezenas, de fome e frio, no fundo de seus casebres e nas ruelas imundas de Paris. A Ciência clamava pela raridade daqueles despojos numa aula de necropsia. Por isso, na manhã seguinte, o professor Beaufort, o seu auxiliar de necropsia, e alguns poucos alunos obstinados que, convocados às pressas, não temiam a gelada e persistente chuva de inverno, reuniram-se em torno do corpo de Jean-Luc Chiendenuit.
“Nu,
estendido sobre a laje, aquele corpo robusto de não mais de vinte e cinco anos
era um espécime raro. Os alunos sabiam que Beaufort não perderia a oportunidade
de fazer, ele mesmo, as primeiras incisões. Mas o professor, ao encostar na
carne lívida do paciente o bisturi, talvez porque acossado por um arrebatador e
urgente ditame de consciência, deteve-se.
“—Senhores
— disse ele —, eu vos prometi que era chegada a hora de vos passar o escalpelo.
Acabo de vencer a tentação de descumprir o meu solene voto.
“E,
dirigindo-se a um dos estudantes, a quem estendeu o escalpelo, disse:
“—
Honoré, tendo em vista a tua assiduidade e constante dedicação, a honra é tua.
“É
preciso que saibamos que este jovem era um dos mais promissores estudantes de
Medicina de Paris. Filho de um respeitável advogado parisiense, não hesitou em
frustrar as expectativas paternas, argumentando que não podia trair — e muito
menos sacrificar — a sua verdadeira e única vocação. Foi, portanto, com uma
certa empáfia que o jovem Honoré tomou o bisturi da mão do professor e,
dobrando-se sobre o corpo do condenado, com a destra segura e resoluta, e
decerto rancorosa, produziu uma profunda incisão ao longo do esterno. Devemos
dizer que não apenas por razões acadêmicas, mas também por motivos pessoais, o
jovem Honoré aprazia-se — sim, aprazia-se! — em talhar a carne do brutamontes
morto. Nada mais vunerável, mais indefeso que um facínora morto...
“O
que se seguiu a este profundo corte foi um terrível e inesperado grito de dor.
Um grito, um uivo pavoroso, lancinante, saído da boca escancarada de Jean-Luc Chiendenuit.
“Ficaram
todos gelados de terror.
“O
jovem estudante viu o horror nos olhos arregalados de sua vítima. Subitamente
ressurreto, ululando em resposta à avidez da dor excruciante, o homem sangrava
abundantemente por toda extensão do peito aberto. Honoré deixou cair o bisturi.
Trêmulo, não conseguiu esboçar o menor gesto em socorro daquele a quem ferira
mortalmente. O médico, o assistente e os demais alunos, recuperados do medonho susto,
tudo fizeram, inutilmente, para salvar o infeliz brutamontes. Quando viu a enormidade
do crime que acabara de perpetrar, o estudante, antes tão seguro de si, e tão
feliz em sua secreta vindita, desfaleceu, caindo de chofre sobre o corpo do
homem que acabara de matar.
“O
violento Jean-Luc Chiendenuit escapara, é certo, talvez em razão de uma
intervenção sobrenatural — se divina ou demoníaca, ninguém saberia dizer — ao
suplício na guilhotina. Mas encontrou a pavorosa morte numa sala de autópsia,
vitimado por um escapelo tão familiar ao douto homem que, precipitadamente, o
declarara morto.
“Então,
meu caro amigo, ainda crês que a Providência foi benéfica para com Chiendenuit ?
O que me dizes?” — indagou Bard, ao concluir a nefasta narrativa.
—Longe
disto, amigo! Longe disto! — respondeu Trésor, abanando desoladamente a
cabeça. —A catalepsia deixa intactos a percepção e os sentidos. Evito imaginar
os horrores pelos quais passou o infeliz condenado, os mesmos horrores que atormentaram,
injustamente, o pobre e talentoso Abade Prévost[1].
Melhor lhe teria sido a guilhotina. Não sei se a punição que a Providência lhe
reservou tenha sido proporcional ao crime cometido. Talvez, não... Mas, o que
aconteceu com o professor e o seu preferido aluno?
—Apesar
da indesculpável incúria, Beaufort era um homem íntegro. Participou o ocorrido
ao Dr. Luimère, diretor da escola de Medicina, e prontificou-se a apresentar-se
à polícia. Mas o diretor tentou dissuadi-lo, afirmando que a Universidade de
Paris não poderia perder um de seus mais doutos e ilustres docentes. Ante a
conscienciosa resistência de Beaufort, Lumière redarguiu, apelando ao bom senso
— a rigor, ao calcanhar de Aquiles — de seu subalterno: ‘O que será de tua
família, Beaufort? O que será de tua família se fores preso por homicídio
culposo e destituído de teu cargo?’. Todos sabem que o diretor Lumière pouco se
importava com a mulher e as filhas casadoiras de Beaufort. O que queria mesmo o
digno e revolucionário diretor, cujos escrúpulos eram tão frequentes quanto as
nossas etéreas sensações de déjà-vu, era
evitar um escândalo e, com isto, manter a sua bela cabeça burguesa sobre os
seus ombros não menos formosos e burgueses. E conseguiu. Não valia a pena
manchar o nome da renomada instituição, ou arriscar tão belo revolucionário
pescoço, por causa de um assassino — filicida e uxoricida — que, no final das
contas, não fosse a síncope, já estaria agora morto e sepultado. O caso foi
convenientemente abafado.
—Mas...
O que foi feito do jovem estudante?
—Garanto
que aquela experiência foi tão traumática, tão cruel, que o jovem estudante não
teve outra alternativa que não a de abandonar o sonho, acalentado desde a
infância, de tornar-se um médico talentoso. Para a alegria do pai, formou-se em
Direito e hoje é um advogado que angaria um certo respeito, apesar de não ser
um exemplo de talento e dedicação. Alguns dizem que é um fiel bonapartista,
embora eu não esteja inteiramente a par disto...
—
Mas, se é que me podes revelar, como se chama esse advogado, meu caro Barde?
—Ei-lo
aqui, Trésor, em tua presença: Jean-Gustave-Honoré de la Barde, filho do homem a
quem o condenado ferozmente agrediu em plena sala de audiências. Eu, meu
querido Trésor, fui, em toda esta história, o carrasco, o terrível e único verdugo
a serviço de Robespierre. Eu executei — sem que soubesse que o matava, mas com
inefável prazer em retalhá-lo — Jean-Luc Chiendenuit!
Ilustração de
François-Nicolas-Augustin Feyen-Perrin (1862 – 1888)
[1]
O médico português Francisco d’Assis e Souza Vaz, em artigo publicado na 1ª. edição
da Revista Médica Fluminense, de 1838, escreveu o que se segue: “Em 23 de
novembro de 1736, o Abade Prévost, tão conhecido por suas produções literárias,
teve um ataque de apoplexia atravessando a floresta de Chantilly. Julgado
morto, levaram-no à residência do Maire,
e a justiça fez proceder à autópsia. Um grito agudo lançado por este infeliz
provou que ele estava vivo. O operador e os assistentes ficaram gelados de
terror; e o desgraçado foi vítima do escalpelo!”. Antoine François Prévost (1697
– 1763) foi um escritor francês. A historiografia moderna não corrobora esta
suposta morte durante a necropsia que, certamente, assim como a passagem acima
descrita, inspirou o autor desta narrativa. (N. do E.)
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