A ANTIGA CRENÇA - Conto de Terror - Bruno Torresan
A
ANTIGA CRENÇA
(Bruno Torresan - 15º Lugar no Concurso
Bram Stoker de Contos de Terror)
— Eu não
acredito em vampiros — disse Lucinda, pousando com estrondo o copo de cerveja
meio vazio de volta na mesa de madeira.
A
frase não soou como um desafio. Estava mais para aquelas coisas que pessoas
céticas dizem para si mesmas dia sim, dia não, só para conseguirem manter a
ilusão de que o mundo ainda está sob seu controle.
Mas
as palavras atraíram os olhares de quase todo mundo no bar, curiosos, mas também
reticentes.
— O quê?! —
Tornou a moça, levantando novamente o copo e se servindo de um gole bastante
generoso.
Alfredo,
o companheiro de viagem — e de quase tudo, nos últimos vinte anos pelo menos —,
estava tentando segurar a própria risada, ao se dar conta da atenção que eles
estavam atraindo para si.
— Você se lembra de onde estamos? — Questionou ele, indicando de leve com a cabeça o enorme
brasão que estava pendurado a apenas alguns centímetros da porta do bar.
Lucinda
deu de ombros.
— Ninguém na
Romênia acredita nisso — insistiu ela, embora começasse a duvidar do que estava
dizendo. — Bem, não hoje em dia, pelo menos.
— E no que você
acredita? — Continuou Alfredo. — E não me venha com aquele papo de método
científico e...
— Eu acredito — começou ela, interrompendo o amigo — que são mais de
dez horas da noite e eu não deveria estar sóbria no meu mochilão pelo
leste europeu com meu melhor amigo!
O
outro sorriu e levantou o copo.
— Um brinde
aos vampiros! — Propôs, com sarcasmo.
Perto
da meia-noite, os dois turistas brasileiros eram praticamente os últimos
clientes que ainda estavam no bar. Tirando uns dois ou três beberrões locais e
habituais — que, na certa, passariam a noite ali, desmaiados — todas as outras
pessoas já tinham ido embora. Não, é claro, sem lançar olhares curiosos na
direção dos mochileiros.
— Nós já
estamos fechando.
Era
o garçom. Com seus vinte e tantos anos, cabelo longo e um avental cinza escuro
que parecia grande demais para o corpo esguio, ele procurou não ser ríspido com
os dois.
— Já estamos
indo — se adiantou Alfredo, enquanto Lucinda admirava o rapaz como quem olha
para uma pintura, algo que jamais teria coragem de fazer se estivesse sóbria.
Depois
de um último gole na sua cerveja — que esvaziou o copo —, e com algum grau de
dificuldade em se equilibrar, o amigo levantou. Assim que o mundo parou de
girar, ele foi até o caixa.
E
então o garçom se acomodou no lugar vago, de frente para Lucinda.
— Eu ouvi o
que você disse antes — falou ele.
A
moça franziu o cenho, como se estivesse tentando entender o que estava
acontecendo. Aquele cara bonito sentado ali...
— Hã? — Foi
tudo o que ela conseguiu verbalizar.
O
rapaz sorriu.
— Sobre os
vampiros — explicou ele, baixinho, como se fosse um segredo. — Você não
acredita mesmo neles?
Lucinda
suspirou.
Essa
era, sem dúvida, a pior cantada que ela tinha recebido na viagem.
— E você? —
Questionou ela.
O
garçom levantou a sobrancelha.
— Eu acredito
em todo o tipo de coisas — respondeu ele, sem refletir muito. — Inclusive, eu
acredito que...
— Vamos?! — A
voz de Alfredo pareceu ter surgido do nada. E depois, olhando bem para o
garçom, ele acrescentou: — Vocês já estão fechando, não é?
Sem
dizer palavra, o rapaz levantou e foi recolher as garrafas vazias da mesa ao
lado.
E
algum tempo depois, os dois amigos saíram dali em direção ao hostel.
O
bar não ficava na região mais turística da cidade. Lucinda havia insistido em
fugir dos pacotes enlatados das agências de viagens. O que ela queria — e, em
consequência, o que Alfredo acabou tendo que aceitar — era conhecer realmente
o que cada lugar tinha para oferecer, nos menores detalhes. Conversar com as
pessoas, conhecer a raiz da cultura local, experimentar os temperos e os
cheiros que ficavam de fora de qualquer suíte de hotel de luxo. Nessa resolução
estava incluído o passeio noturno até o quarto coletivo que ela e o amigo
dividiam com outras quatro pessoas — três mochileiros dos Estados Unidos e um
cara procurando emprego, que não falava muito.
— A rua está
vazia — constatou Alfredo, alguns minutos depois de deixarem o bar. — É verão,
achei que ia ter mais gente por aqui. E está uma noite tão bonita...
Mas
a amiga não respondeu.
Ela
estava pensando nele. No garçom.
— E olha essa
lua — tornou ele, decidido a chamar a atenção da moça de alguma maneira. — Olha
essas estrelas... Lá em casa a gente nunca consegue ver um céu tão bonito
assim.
Porém,
ao voltar os olhos para os prédios antigos que cercavam o caminho, o rapaz notou algo estranho.
— Todas as
janelas estão fechadas.
— Bem, já
passou da meia-noite, as pessoas devem estar dormindo — disse Lucinda,
maquinalmente.
Mas
ele não se convenceu.
Caminhando
para o lado, ele chegou mais perto de uma daquelas casas e esticou as mãos para
tocar a janela.
— Alho —
disse ele, curioso. — Tem alho nas janelas.
Lucinda
riu.
— É, eu acho
que estava errada. As pessoas aqui acreditam nesse tipo de coisa. O garçom...
— Ahhh —
interrompeu o amigo, rindo. — Tenho certeza que é sobre isso que vocês estavam
falando mesmo...
Lucinda
ficou vermelha, mas antes que pudesse responder, os dois ouviram latidos que
pareciam estar por todos os lados.
— Será que
algum deles está solto? — Questionou ela, receosa.
— Eu não sei.
Mas é melhor a gente voltar logo, só por precaução.
Alguns
metros à frente no caminho, eles viraram na rua que levava para o hostel.
Estava escuro, mas o caminho ainda era perfeitamente visível com a luz da lua.
E
tinha alguém parado ali.
Os
dois trocaram olhares desconfiados.
Mas
não tinham alternativa, a não ser dar uma volta maior por uma cidade que não
conheciam e acabar se perdendo. Ou pior, dar de cara com uma matilha de cães
soltos.
Sem
opção, eles caminharam, então, na direção do estranho que estava encostado na
parede de pedras que compunha a fachada de uma casa que deveria ter, pelo
menos, uns cem anos.
Quando
se aproximaram o suficiente, o coração de Lucinda deu um salto ao perceber que
era uma figura conhecida.
— Você deu o
maior susto na gente — ralhou ela, depois de um longo suspiro de alívio.
O
garçom deu um sorriso sarcástico.
— Eu achei
que você não acreditava em vampiros — provocou.
— Mas nós
acreditamos em assaltantes — interveio Alfredo, que claramente não estava feliz
em ver o rapaz.
— Vocês estão
indo para o hostel, certo? — Tornou o garçom, ignorando completamente a
provocação do outro. — Tomem cuidado.
— Cuidado? —
Repetiu a moça.
O
rapaz assentiu.
— Lua cheia —
disse ele. — Vocês não ouviram os latidos?
E
antes que um dos dois pudesse responder, o rapaz deu as contas e saiu andando
na direção oposta.
Sem
ter o que comentar sobre aquela atitude no mínimo peculiar, Lucinda e Alfredo
apenas trocaram olhares apreensivos e apertaram o passo, sabendo que o que quer
que estivesse acontecendo, eles estariam seguros dentro das quatro paredes
cheias de turistas.
Mais
portas e janelas trancadas no caminho. Mais dentes de alho pendurados nas casas
como tenebrosos enfeites de Natal. Mais latidos furiosos. E a lua brilhando
alta no céu.
— Chegamos —
disse Alfredo, aliviado, fitando a fachada de pedra do hostel, majestosa, do
outro lado de uma praça.
Mas
Lucinda agarrou seu braço com força.
— O que foi?
— Quis saber o amigo.
A
moça, tremendo, apontou para a rua ao lado do prédio, na qual um vulto negro
parecia encará-los.
— É só um
cachorro — arriscou Alfredo.
Mas
a criatura se mexeu.
Os
dois amigos ficaram congelados no lugar, enquanto o enorme animal preto
caminhava lentamente na direção deles, com um rosnado que contrastava com o
silêncio que parecia ter se instalado ali.
Os
dois deram alguns passos para trás.
E
então Lucinda bateu em alguma coisa.
Era
uma pessoa.
Ao
se virar, lentamente, ela se deparou novamente com o rapaz que havia ido para o
lado oposto da cidade minutos antes.
— Você não
acredita em vampiros — de novo, a provocação. Mas dessa vez, ele não estava
sorrindo.
Lucinda
engoliu em seco.
— O quê...
Nós... não... — Começou Alfredo, confuso, enquanto dividia sua atenção entre o
estranho rapaz e o animal que estava perto o suficiente para mostrar seus
enormes dentes brancos.
— Eu nunca
cheguei a contar para você no que eu acredito, cheguei? — Tornou o garçom, se
dirigindo novamente à moça.
— Não... —
Disse ela, lentamente, com a estranha sensação de que não queria ouvir a
resposta.
O
garçom sorriu e mostrou enormes dentes, muito parecidos com os do cachorro lá
atrás.
— Nós não
permitimos vampiros aqui — disse ele, enquanto uma camada de pelos escuros
começava a cobrir seu rosto e suas mãos, que já lembravam mais as garras de um
animal. — Não tem espaço suficiente para todos nós, sabem?
Ressoando na noite, o apavorante uivo se misturou aos gritos
desesperados dos dois mochileiros que não partilhavam da antiga crença.
Bruno Torresan (peseudônimo de Bruno Ercole), nasceu em Curitiba
no final dos anos 1980. Desde cedo se interessou pela leitura e pela escrita
literária, tendo criado a sua primeira história aos oito anos de idade. Com
predileção pelos temas do oculto e do imaginário — como vampiros, bruxas,
dragões e objetos mágicos —, procurou sempre envolvê-los em suas histórias.
Como acadêmico na área de História, seguiu também esta vertente, publicando
trabalhos que versam sobre seres do imaginário que eram representados nas obras
medievais. Atualmente vive em Curitiba com a família e os três cachorros,
Fenrir, Pandora e Dana — nomes derivados dos mitos, como não podia deixar de
ser.
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